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São Paulo, terça-feira, 25 de agosto de 2009

MARCOS NOBRE

A volta do militarismo
NÃO FOSSE por Janio de Freitas e José Meirelles Passos, nem sequer haveria
discussão pública sobre a aquisição de submarinos da França ao preço de 6,8 bilhões.
Apesar da oscilação das explicações e da visível má vontade do Ministério da Defesa
em prestar contas da decisão, o fato é que as justificativas apareceram.
Essa é uma discussão que precisa ir ainda mais longe. Porque uma escalada militarista
está em curso.
Não é casual que o contrato com a França vá ser assinado no próximo dia 7 de
setembro. Não é casual que o Brasil aposte no fortalecimento da Unasul e,
principalmente, em uma estratégia comum de defesa dos países sul-americanos.
Existe hoje uma ampla aliança de antiamericanismo e nacionalismo como talvez só se
tenha visto nos idos de 1960. Tudo indica que as Forças Armadas conseguiram fincar no
coração do sistema político a sua duradoura convicção: a da necessidade de dar ao
Brasil um poderio bélico que lhe garanta uma incontestável posição de hegemonia
militar na América do Sul.
Sempre quiseram uma indústria bélica nacional forte, embora não tenham conseguido
isso nem em 20 anos de ditadura militar. Os desenvolvimentistas fecham com a ideia. O
Itamaraty quer de qualquer maneira um assento no Conselho de Segurança da ONU.
A contrapartida institucional interna desse projeto está na nova Estratégia Nacional de
Defesa, em exame no Congresso. Segundo a proposta, Marinha e Aeronáutica passarão
a ter, em casos específicos, poderes de polícia. Mais significativo ainda, cria-se no
Ministério da Defesa uma nova secretaria dedicada exclusivamente à compra de
armamentos.
Nesse projeto de longo prazo, os recursos das jazidas de petróleo acabarão servindo
para aumentar de maneira espetacular o orçamento militar. O próprio Lula já disse que
parte do fundo que virá do pré-sal deve ir para a Marinha.
Se essa velha aliança tiver continuidade nos próximos governos, os problemas não vão
ser poucos.
Em relação ao passado, esse acordão vai brindar o aniversário de 30 anos da Lei de
Anistia com o enterro definitivo das atrocidades da ditadura militar, de que a encenação
patética da busca de corpos de guerrilheiros no Araguaia é apenas o começo.
No presente, ela significa, por exemplo, a infâmia de o Brasil se recusar a assinar o
tratado contra bombas de fragmentação.
No futuro, teremos uma América Latina pobre e instável diante de uma corrida
armamentista sem precedentes, que irá consumir recursos preciosos que deveriam ser
destinados a combater suas desigualdades.

nobre.a2@uol.com.br
Reforma das polícias na agenda da Conseg
LUIZ EDUARDO SOARES e MARCOS ROLIM

SERÁ REALIZADA nesta semana a Conferência Nacional de Segurança Pública


(Conseg), depois de um ano de debates.
A iniciativa do Ministério da Justiça, a despeito de seus limites -naturais em uma
experiência pioneira-, é um marco histórico, ao importar para o campo da segurança
uma dinâmica participativa bem-sucedida nas áreas da saúde, assistência e educação,
graças à qual os serviços oferecidos nesses setores passaram a ser definidos como
direitos universais.
Falta estender essa compreensão para a segurança, apesar de a letra constitucional já
afirmar essa perspectiva. Sem a dimensão universal, as posições se chocam, mesmo
quando são complementares.
Ou seja, o conflito político se perpetua, ainda que haja bases razoáveis para um
consenso mínimo, apto a sustentar uma política de Estado, supragovernamental, não
partidária, com amplo apoio da sociedade.
Movimentos de direitos humanos, com razão, denunciam a brutalidade policial e
chamam a atenção para os crimes do Estado e o processo perverso de criminalização da
pobreza.
Por outro lado, justificadamente, autoridades e amplos segmentos sociais denunciam a
violência difusa que produz a cada ano dezenas de milhares de mortos, entre os quais se
contam também muitos policiais.
Para que todas essas vozes se escutem e para que seja possível avançar na construção de
políticas de segurança efetivas, será preciso romper com as perspectivas parciais e/ou
ideológicas, incorporando a segurança como bem e direito universal: ou seja, como um
direito de todo e qualquer cidadão, de qualquer classe social, more ele em uma favela ou
em um condomínio, seja branco ou negro, esteja preso ou solto.
Entretanto, de nada adianta ter bons princípios e boas diretrizes se as instituições não
estiverem estruturadas de modo compatível com a realização deles. Segurança não se
reduz à polícia.
Envolve diagnósticos precisos, prevenção, políticas intersetoriais, monitoramento e
avaliação de resultados, entre outros desafios notavelmente menosprezados no Brasil.
O reconhecimento dessa complexidade, contudo, não pode continuar servindo de
pretexto para postergar a transformação de nosso modelo policial. Por isso, outro grande
desafio da Conseg será a busca de um novo modelo de polícia para o Brasil.
O modelo que temos -sem paralelo no mundo- é um Frankenstein, que começa pela
existência nos Estados não de duas polícias, mas de duas metades de polícia (cada uma
delas com metade do ciclo de policiamento -ou ostensividade, ou investigação).
Por isso, nossas "polícias pela metade" buscam se equilibrar, uma assumindo
prerrogativas da outra. Vivem intensa rivalidade, boicotam-se mutuamente e se
depreciam.
Além disso, internamente também há profundas divisões. Nas polícias militares, oficiais
e não oficiais constituem mundos à parte, assim como ocorre, nas polícias civis, com
delegados e não delegados -e isso até no plano salarial.
Baixos salários levam ao segundo emprego na segurança privada, o que gera conflito de
interesses, esgota os policiais fisicamente e impede a racionalização dos turnos de
trabalho -nenhum governo ousa inviabilizar os bicos, porque são eles que viabilizam
orçamentos insuficientes, evitando a explosão da demanda salarial.
Eis o "gato orçamentário", à sombra do qual prospera a corrupção e se agenciam
perversões mais graves, como as milícias, no Rio de Janeiro. É preciso que nossas
polícias tenham um ciclo completo. Contudo, uma simples unificação geraria um
problema maior ainda: correríamos o risco de perder as virtudes de cada instituição e de
somar seus defeitos.
Há alternativas, entretanto. Uma delas vem sendo defendida com coragem pelo
secretário nacional, Ricardo Balestreri: as duas polícias estaduais passariam a ter
competências diferentes, segundo tipos penais.
As polícias militares poderiam tratar dos crimes patrimoniais, agindo na prevenção e na
investigação, reservando-se às polícias civis os demais delitos, como os crimes contra a
vida e o tráfico de armas e drogas.
Em cada polícia deveríamos ter -como em todas as polícias do mundo civilizado-
apenas uma porta de entrada para assegurar aos profissionais uma carreira digna.
Sobretudo, ter-se-ia de oferecer bons salários para recrutar os mais qualificados e abolir
os bicos.
Tudo isso teria de vir associado às mudanças previstas no projeto Sistema Único de
Segurança Pública, que visa reordenar desde a formação até o controle externo.
Eis aí uma agenda para a Conseg: segurança como direito universal e um novo modelo
policial.

LUIZ EDUARDO SOARES , professor da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e da


Universidade Estácio de Sá, é assessor da Prefeitura de Nova Iguaçu (RJ). Foi secretário nacional de
Segurança Pública (2003).

MARCOS ROLIM , professor da Cátedra de Direitos Humanos do Centro Universitário Metodista


(IPA), é consultor em segurança pública. Foi presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara
dos Deputados.

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