Você está na página 1de 8

Bernunça: Esfinge feita boneco-máscara em Florianópolis

Pedro Heliodoro de Moraes Branco Tavares

O mito de Édipo, hoje lembrado na cultura particularmente pelo que serviu a


psicanálise como espécie de mito fundador da neurose, nos traz a enigmática e
monstruosa figura da Esfinge. Esta imagem do ser com corpo híbrido (parte
animal, parte humano) nos remete ao onírico, ao universo do fantástico, tão
presente nas construções totêmicas, máscaras, estátuas. Objetos sagrados;
adorados e temidos. Parente da esfinge que nos legou a tradição grega é a
conhecida e gigantesca estátua egípcia, que se diferencia da primeira pela
ausência das asas de águia, preservando somente a cabeça de mulher
(adornada) e o corpo de leão. As figuras híbridas são, aliás, a base do panteão
egípcio e a lendária Tebas de Édipo, narrada pelo grego Sófocles, localiza-se a
bem da verdade no país dos faraós.

Em Totem e Tabu, estudo sobre as bases da civilização, Freud elabora o


seu mito fundador da cultura humana demonstrando no princípio totêmico esta
passagem da condição bestial (animal) para uma condição humana pela
constituição de uma sacralização do Pai Primevo, ou pai da horda primitiva
(Urhorde) (FREUD, 1912). Desta forma, existe a necessidade de um terceiro, não-
humano, não-animal, excluído destes conjuntos para que possa fazer tal corte. No
ideário da religiões monoteístas, hoje dominantes, estes seres híbridos acabam
por se tornar as figuras demoníacas a serem temidas e evitadas.

Excluídos, banidos do ideário religioso que deve agora apontar ao


incorpóreo/celestial, a cultura seguiu presentificando estes entes em suas
manifestações menos eruditas e sacralizadas, reputadas pela igreja e pela cultura
oficial como menores e vulgares tais como os teatros amadores de praças
públicas, os fantoches e estatuetas artesanais, os folguedos folclóricos, os causos
contados nas rodas de fogo, nas cantigas. Este será o lugar para tratar do
grotesco e do cômico/burlesco, como alías tende-se a caracterizar os folguedos e
espetáculos populares de animação no ocidente (AMARAL, 2005 p.18)
Por falar em grotesco, sobre a questão do estranho / estrangeiro (Fremd- ξε
νοσ) e do familiar, Freud dedica uma ampla discussão em seu artigo Das
Unheimliche que poderíamos traduzir por A Inquietante Estranheza, ainda que
com isso se perca do significante alemão o morfema heim (lar). Perder-se-ia aí
também o prefixo de negação un, que Lacan assinala como a marca do recalque.
O estranhamento familiar, outra possibilidade de tradução, é o que nos demonstra
a emergência do desconhecimento de si, algo que tem consonância com o que
Freud chamará também de a “terra estrangeira interior”.

Mas esse Heim, componente do Unheimlich, que de modo abrangente


designaria lar, como o home em inglês, é o mesmo de Heimat, a “terra natal” ou
“terra mãe”, além de advir como sufixo em inúmeros nomes de cidades tais como
Bornheim, Hofheim, Rüsselsheim. Designar a cidade como o nosso lar é uma
metáfora interessante. Algo aí conta muito para os mitos de origem de um sujeito,
para a sua inclusão entre os iguais e para a exclusão do xénos, do diferente.

O conceito próprio de pólis traz em si a ética do burgo murado e protegido


da ameaça estrangeira. Tal como se de nosso lar, só cedemos a chave ao
estranho quando se mostra familiar e digno o suficiente. Assim é feito ainda em
cidades européias, quando o burgomestre-prefeito entrega ao estrangeiro a chave
da cidade em caráter simbólico.

Isso tudo nos é bastante familiar desde a apropriação pela Psicanálise do


mito de Édipo. Este, que ignora ter em Tebas sua terra-mãe chega a ela, ou
melhor, a ela retorna acreditando estar-se exilando para não cumprir o oráculo
parricida, ou seja, para não ter que matar quem acredita ser seu genitor, rei de sua
pátria (Vaterland / Terra-Pai). Acreditando estar fugindo de casa quando chega a
Tebas, o lar do qual ignora ter sido expulso ao nascer, após a consumação
inadvertida da profecia, depara-se com a Esfinge, o monstro que sentencia:
“Decifra-me ou te devoro”. Édipo não sabe que porta a chave deste enigma, o
saber in-sabido, mas, ao decifrá-la, não só livra Tebas da Esfinge, quanto é aceito
como cidadão-emérito e vem ocupar o lugar do rei por ele assassinado.
Mais tarde, porém, quando Édipo cumpre o restante da profecia
desposando sua mãe e com ela gerando filhos-irmãos, uma praga cai sobre a
Tebas que ele outrora “salvara”. Na busca implacável pelo responsável, vem saber
por Tirésias, vidente-cego hermafrodita, excluído da partilha dos sexos, que é ele
o culpado. Diante disso, o castigo: ele também se cega e condena-se ao desterro.
Édipo, o rei dos pés feridos, está condenado a vagar sem lar pelo mundo.

Vemos aí o quanto a esfinge representa o próprio enigma do ζοον πολιτικο


ν, o animal da pólis. A esfinge-cidade se apresenta monstruosa, sinistra
(unheimlich), com seu corps-morcélé (corpo esfacelado). Tal qual numa montagem
onírica ou surrealista, como Lacan compara à própria montagem pulsional
(LACAN, 1999), a esfinge se apresenta como um híbrido: com corpo leonino, asas
de águia, cabeça (e boca) de mulher. Essa impressão da cidade comparável à
esfinge ficou registrada pelo próprio Freud, em carta a sua fiancée Martha, quando
da chegada á Paris de Charcot:

De Paris tenho agora uma impressão completa e poderia me tornar muito poético:
compará-la, por exemplo, a uma gigantesca esfinge enfeitada que devora os
estrangeiros que não conseguem decifrar seus enigmas... A cidade e as pessoas
eu as sinto estranhas, parecem de um tipo absolutamente diferente do nosso; acho
que são todos possuídos por mil demônios (RICCI, 2005 p. 64).

E Florianópolis, que enigmas teria ela? Tomo aqui a liberdade de narrar um


episódio surgido na preparação do folder e cartaz de divulgação de um evento
internacional de Psicanálise. Pareceu-nos, aos organizadores, á época,
interessante utilizar as gravuras do ilustre folclorista Franklin Cascaes. O
reconhecimento de sua importância no resgate das lendas locais, envolvendo as
bruxas e benzedeiras, que colaboraram para o título turístico de Florianópolis
como Ilha-da-Magia, vem hoje com a homenagem ao darmos à principal fundação
cultural de Florianópolis o seu nome.
A gravura que ilustraria o folder seria uma muito semelhante à que serve de
logomarca para a própria Fundação Franklin Cascaes: uma bernunça, algo muito
familiar e heimlich para qualquer florianopolitano. Trata-se de um dos entes-
personagens do folguedo boi-de-mamão, o mais representativo de nosso folclore.
Trata-se de uma tradição onde membros da comunidade celebram a morte e
ressurreição do boi. As personagens “vestem” por assim dizer espécies de
“bonecos-máscara” na terminologia de Beltrame (2007 p. 162) numa espécie
peculiar de espetáculo com elementos de teatro de animação, dança e canto.

A bernunça, nossa esfinge, apresenta, porém, uma particularidade. É um


corpo coletivo. Lembrando o dragão chinês, ela foi incorporada posteriormente ao
folguedo (SOARES, 2002). Este boneco-máscara é formado por um longo corpo
de pano colorido sob os quais ficam seus atores-manipuladores. A sua frente fica o
responsável por abrir e fechar assustadoramente a sua bocarra. Tal como a
esfinge é também um corpo-montagem; tem boca de jacaré, corpo de cobra e, por
que não dizer, pés humanos. Esta aparência bizarra impregna o imaginário de
qualquer um que a veja, sobretudo quem a viu enquanto criança.

Outro dia, ainda tive oportunidade de ouvir um registro de áudio que meu
pai fez de mim e minhas irmãs: ali, já entoava a música da bernunça:

A bernunça é bicho brabo /

engoliu Mané João /

come tudo, tudo, tudo /

o que lhe dão.

E realmente os que conhecem a brincadeira sabem que é o que ela faz:


come gente! Abre sua bocarra e engole as pessoas inteiras. Mas, ao bom modo
antropofágico, na acepção modernista do termo, devolve alugns dos engolidos na
bernuncinha (seu filhote), processando e transformando o que fora devorado.
Pois que surpresa a nossa, organizadores do evento que levaria sua
imagem nos folders e cartazes quando esse monstro, já domado no nosso
imaginário, causou enorme mal-estar aos primeiros estrangeiros que viram o
cartaz com a boca insaciável da bernunça. E a isso somo algo bastante pessoal:
quão ferido não ficou meu “narcisismo ilhéu” ao termos que renunciar a esse
símbolo. Não que eu não possa entender o assombro dos outros. Lembro com
intensa nitidez, o horror e o desespero que me causava a bernunça.

Pois bem, Florianópolis e seus moradores possuem uma maneira curiosa


de lidar com seus enigmas. Isso se reflete inclusive n a maneira de se deixar
representar por um nome ou título. Portamos ou tentamos su-portar o nome do
terrível padrasto Floriano Peixoto, cuja odienta homenagem foi feita após ter
liquidado os mais ilustres filhos desta terra. Há até hoje os que preferem
preencher seus cheques e livros de visitas a museus usando o nome antigo da
cidade: Desterro. Cogitou-se, inclusive, retomar esse nome que ironicamente
evoca mais o exílio do que o pertencimento.

Pergunto-me se haveria nome mais apropriado a uma cidade como essa,


que desde sua origem só faz irrefreadamente acolher mais e mais, auto-exilados
de outras paragens: dos Açores, da Grécia, da África como outrora, ou de outros
estados e países vizinhos como hoje em dia. Donaldo Schüler, que com
freqüência nos brinda em Florianópolis com suas conferências, chegou até a
comentar o quanto o turismo que move, abastece e emprega a cidade de
Florianópolis parece não ser muito bem-vindo por seus cidadãos. Com isso, não
faz mais que repetir uma triste realidade dessa cidade de tão bela geografia: uma
nem sempre sutil xenofobia.

Para sentir-se mais igual que os outros desterrados, os nativos da cidade


proclamamo-nos: os ilhéus. Ainda que a geografia da cidade, que avança no
continente, não se confunda com a ilha, a fuga para o geográfico é uma boa
maneira de excluir da polis o diferente sem a necessidade das muralhas
tradicionais. Ficamos ilhados, isolados. Mas cabe aqui também a contrapartida: a
designação mané-da-liha. Originalmente pejorativa, a expressão vem sofrendo,
por tentativa da mídia e das fundações governamentais, uma tentativa de
transposição para uma conotação positiva.

O termo mané, apelido dos Manuéis de origem açoriana, originalmente


trazendo a designação de bobo, ignorante, provinciano, vem se buscando
transformá-lo em motivo de orgulho e pertencimento à terra em radical
transformação pela chegada dos forasteiros que dão mais pés e maior proporção
a assombrosa bernunça. A cidade, esse monstro, no que nos de-monstra de nós,
nos engole, mas é com nossos pés (feridos?) que ela caminha, que ela erra.
Porém, não esqueçamos que a Bernunça regurgita o que ela devora, como bem
nos lembra o poema de Cláudio Santoro:

O berro da Bernunça/

batiza, anuncia/

Abre caminho abre/

a bocarranca/

tudo do lugar/

engole gole a gole/

e devolve num só golpe/

não mais o que engolira/

mas algo novo/

fruto da renúncia/

Abrenuntio Dominum.

Entendemos melhor o que é dito quando conhecemos a origem etimológica


desse nome curioso. Bernunça vem do ab renuntio dos batizados feitos em latim.
Aquilo que, na estranha língua estrangeira dos padres queria dizer que
renunciamos a satanás e aceitamos a lei do senhor, é o que vem nomear esse
estranho símbolo da transformação.

Parece-me impossível aqui não lembrar da divertida metáfora de Lacan no


Seminário 17: “Um grande crocodilo em cuja boca vocês estão.- a mãe é isso.” (...)
“Há um rolo, de pedra, é claro, que lá está em potência, no nível da bocarra, e isso
retém, isso emperra. Isso se chama falo. É o rolo que os põe a salvo se, de
repente, aquilo se fecha” (1992, p.105). A terra, portanto, a nossa terra é a mãe
que nos engole gole a gole, mas a lei paterna e pétrea como as tábuas do
decálogo, essa nos é sempre estrangeira.

Freud nos ensina que a língua que falamos nos é também sempre
estrangeira (1919). E isso, no movimento errático da psicanálise na cultura é
demonstrado. Podemos ai entender como o que foi escrito em alemão, só foi
compreendido em francês, e o que foi dito em francês é hoje predominantemente
escutado em espanhol e português. A psicanálise nos mostra, desde a
Psicopatologia da Vida Cotidiana e do livro dos Chistes o quanto Errar é humano,
e como erramos pela língua. Isso, tanto no que diz respeito ao equívoco versus
acerto, quanto à nossa condição errática de descentramento, como atesta o golpe
freudiano: “Não somos senhores em nossa própria morada”.
Aprendamos, portanto, a decifrar o enigma da bernunça que nos regurgita
de um gole só, fazendo-nos comuns com os aparentemente diferentes, para não
sermos por ela devorados. Ouçamos a diferença para certificarmo-nos de que os
manés e os forasteiros, somos sempre nós mesmos, errando mundo adentro e
mundo afora, pelas bordas do litoral-literal.

Referências:

1. AMARAL, Ana Maria. O Inverso das Coisas. In Móin-Móin – Revista de Estudos


sobre Teatro de Formas Animadas. Ano 1. Número 1. Jaraguá do Sual
SCAR/UDESC, 2005

2. BELTRAME, Valmor. O Ator no Boi-de-Mamão; reflexões sobre tradição e técnica.


In Móin-Móin – Revista de Estudos sobre Teatro de Formas Animadas. Ano 3.
Número 3. Jaraguá do Sual SCAR/UDESC, 2007.

3. FREUD, Sigmund. Das Unheimliche, in Gesammelte Werke – Chronologisch


geordnet. Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1919 / 1999.
4. FREUD, Sigmund. Totem und Tabu in Gesammelte Werke – Chronologisch
geordnet, Frankfurt am Main: Fischer Verlag, 1912/1999.

5. LACAN, Jacques. O Seminário – Livro 11, Os quatro conceitos fundamentais da


Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1964/1999.

6. LACAN, Jacques. O Seminário – Livro 17: O Avesso da Psicanálise. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1992

7. RICCI, Giancarlo. As cidades de Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005

8. SOARES, Doralécio. Folclore Catarinense. Florianópolis: EdUfsc, 2002

9. SÓFOCLES. Édipo Rei. Porto Alegre: L&PM, 1996.

Você também pode gostar