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A interatividade
Pierre Lévy
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo : 34, 2003, p. 77-83
Para Além das Páginas
Ao mesmo tempo fino, delicado e bem-
humorado, Beyond Pages de Masaki
Fujihata deve ser considerado uma das
mais belas ilustrações das “artes da
interatividade” emergentes.
Entra-se em um lugar pequeno e
fechado. Na frente há uma mesa real
sobre a qual encontra-se projetada a
imagem de um livro. No fundo do
aposento há uma projeção da imagem
de uma porta fechada. Sentando-se à
mesa, pega-se uma espécie de caneta
eletrônica, com a qual é possível "tocar"
a imagem do livro. A imagem do livro
fechado é então substituída pela de um
livro aberto. Como se o livro tivesse sido
"aberto". Que fique bem claro: não há
um livro de papel de verdade para abrir, apenas uma sucessão de duas imagens controlada por um dispositivo
interativo. O livro de Beyond Pages de Masaki Fujihata não é uma imagem fixa clássica, e também não é uma
imagem de animação que passa imperturbavelmente, é um objeto estranho, meio signo (é uma imagem), meio
coisa (é possível atuar sobre ele, transformá-Ia, explorá-lo dentro de certos limites). Estamos acostumados a
interagir com telas graças aos videogames, à Internet e aos CD-ROMs, mas nesse caso a imagem interativa do
livro encontra-se sobre uma mesa de madeira e não em uma tela de vídeo. Ao abrir esse estranho livro, vemos
escrita sobre a página direita a palavra "maçã" em inglês, no alfabeto romano, e em japonês, com caracteres
kanji. Até aí, nada demais: signos de escrita sobre uma página. Mas na página esquerda há a imagem de uma
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bela maçã vermelha em trompe l'oeil , uma maçã cuja sombra está nitidamente recortada sobre a página
imaculada. Mais ou menos como se a página da direita nos mostrasse signos e a da esquerda uma coisa. A
sensação de que a maçã é realmente uma coisa colocada sobre a página e não apenas uma imagem é
reforçada pelo que se descobre progressivamente "folheando o livro": a maçã encontra-se cortada na página
seguinte, sendo progressivamente consumlda à medida que a "leitura" continua, até que só é possível achar,
entre as páginas, um caroço. A cada vez que as páginas são viradas, ouve-se claramente o som de uma
mandíbula que se fecha sobre um pedaço de maçã, mordendo-a. No entanto em nenhum momento a ilusão é
completa. Sabe-se que tanto a maçã como o som são gravações. É impossível comer a maçã. Comer a maçã
surge como uma metáfora para "ler um livro". Algo foi consumido, foi produzida uma irreversibilidade, ainda que
nada tenha sido alterado: as páginas continuam no mesmo lugar, os signos também. Ao contrário das maçãs, o
consumo ou o prazer que possamos ter com os signos não os destroem.
Essa oscilação entre signo e coisa, signo que faz barulho, age, interage e parece esgotar-se como uma coisa,
coisa impalpável e indestrutível como um signo, essa oscilação continua até que a "leitura do livro" tenha sido
terminada. As pedrinhas que podem ser deslocadas com a caneta rangem sobre a imagem do papel. Acionar a
imagem de uma maçaneta faz com que seja aberta a porta na parede do fundo, de onde surge uma garota
adorável, nua e sorridente, que aparecerá mais de uma vez.
Ao contrário das folhas secas dos herbários, o ramo de folhas verdes que se agita entre as páginas de Beyond
Pages ainda é agitado pelo vento e pleno de seiva. A flor ou a folha seca dos herbários está lá, morta, mas
bem real, entre as páginas. Beyond Pages nos leva para um além da página onde as imagens "vivas" das
coisas vivas parecem surgir de imagens de páginas.
No final do livro, os signos aflorados resolvem falar. Os rabiscos transformam-se milagrosamente em escrita
japonesa de caligrafia perfeita e claramente pronunciada pelo "livro". Desta forma, esse livro "fala". Possui uma
voz que o permite ler a si mesmo, e convida-nos a contribuir para sua escrita.
Um dos recursos de Beyond Pages é o anel de Moebius, passagem contínua e insensível de uma ordem de
realidade a outra: do signo à coisa, depois da coisa ao signo da imagem ao caractere, depois do caractere à
imagem, da leitura à escrita, depois da escrita à leitura. Imagem de um livro (e portanto, duplamente signo)
entre as páginas do qual encontra-se coisas ... , que não são nada mais do que signos, mas signos ativos,
vivos, que nos respondem. Não a ilusão de realidade, como o virtual é muitas vezes descrito, já que temos
1
Trompe-l'oeil é uma técnica artística que, com truques de perspectiva, cria uma ilusão óptica que mostre objetos ou
formas que não existem realmente. Provém de uma expressão em língua francesa que significa engana o olho e é usada
principalmente em pintura ou arquitetura.
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sempre consciência de tratar-se de um jogo, de um artifício, mas uma verdade lúdica ou emocional de uma
ilusão experimentada como tal.
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O livro foi escrito na década de 1990, quando ainda eram incomuns os jogos em rede.
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Dataglove: luva usada em ambientes de realidade virtual.
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plorar uma passagem, ganhar ou perder armas, "poderes", "vidas" etc. É essa imagem modificada do personagem reatu-
alizado que modifica, em um segundo tempo lógico, o próprio espaço do jogo. Para envolver-se de verdade, o jogador
deve projetar-se no personagem que o representa e, portanto, ao mesmo tempo, no campo de ameaças, forças e oportu-
nidades em que vive, no mundo virtual comum. A cada "golpe", o jogador envia a seu parceiro uma outra imagem de si
mesmo e de seu mundo comum, imagens que o parceiro recebe diretamente (ou pode descobrir explorando) e que o
afetam imediatamente. A mensagem é a imagem dupla da situação e do jogador.
Por outro lado, na comunicação telefônica, o interlocutor A transmite ao interlocutor B uma mensagem que
supostamente deve ajudar B a construir, por inferência, uma imagem de A e da situação comum a A e B. B faz o mesmo
em relação a A A informação transmitida a cada "golpe" de comunicação é muito mais limitada do que no jogo em
realidade virtual. O equivalente do espaço de jogo, ou seja, o contexto ou a situação, compreendendo a posição
respectiva e a identidade dos parceiros, não é compartilhado por A e B sob forma de uma representação explícita, uma
imagem completa e explorável. Isso se deve ao fato de que o contexto, aqui, é a priori ilimitado, enquanto é circunscrito
no jogo; mas também se deve à diferença entre os próprios dispositivos de comunicação. Com o telefone, a imagem
reatualizada da situação deve ser constantemente reconstruída pelos parceiros, cada um por si e separadamente. O
videofone não muda absolutamente nada, já que o contexto que importa, o universo de significações, a situação
pragmática (os recursos, o campo de forças, de ameaças, de oportunidades, o conjunto de coisas que podem afetar os
projetos, a identidade ou a sobrevivência dos participantes) não será muito melhor compartilhada se acrescentarmos
uma imagem da aparência corporal da pessoa e de seu ambiente físico imediato. Por outro lado, sistemas que permitam
o acesso compartilhado e a distância a documentos, fontes de informação ou espaços de trabalho nos aproximam
progressivamente da comunicação por um mundo virtual, até aqueles que admitem uma ou mais imagens ativas das
pessoas (agentes de software que filtram, infobots, perfis de busca personalizados e outros).
A comunicação por mundos virtuais é, portanto, em certo sentido, mais interativa que a comunicação
telefônica, uma vez que implica, na mensagem, tanto a imagem da pessoa como a da situação, que são quase sempre
aquilo que está em jogo na comunicação. Mas, em outro sentido, o telefone é mais interativo, porque nos coloca em
contato com o corpo do interlocutor. Não apenas uma imagem de seu corpo, mas sua voz, dimensão essencial de sua
manifestação física. A voz de meu Interlocutor está de fato presente quando a recebo pelo telefone. Não escuto uma
imagem de sua voz, mas a voz em si. Por meio desse contato corporal, toda uma dimensão afetiva atravessa
"interativamente" a Comunicação telefônica. O telefone é a primeira mídia de telepresença. Hoje, numerosos projetos
de pesquisa e de desenvolvimento tentam estender e generalizar a telepresença a outras dimensões corporais:
telemanipulação, imagens tridimensionais dos corpos, realidade virtual, amblentes de realidade ampliada para
videoconferências sem impressão de restrição etc.
Reteremos dessa breve reflexão que o grau de interatividade de uma mídia ou de um dispositivo de
comunicação pode ser medido em eixos bem diferentes, dos quais destacamos:
– as possibilidades de apropriação e de personalização da mensagem recebida, seja qual for a natureza dessa
mensagem,
– a reciprocidade da comunicação (a saber, um dispositivo comunicacional "um-um" ou "todos-todos"),
– a virtualidade, que enfatiza aqui o cálculo da mensagem em tempo real em função de um modelo e de dados
de entrada (ver o terceiro sentido no quadro sobre o virtual, página 74),
– a implicação da imagem dos participantes nas mensagens (ver o quarto sentido no quadro sobre o virtual),
– a telepresença.
Como exemplo, o quadro que se segue cruza dois eixos entre todos os que poderíamos destacar na análise da
interatividade.
Mídias híbridas e mutantes proliferam sob o efeito da virtualização da informação, do progresso das interfaces,
do aumento das potências de cálculo e das taxas de transmissão. Cada dispositivo de comunicação diz respeito a uma
análise pormenorizada, que por sua vez remete à necessidade de uma teoria da comunicação renovada, ou ao menos a
uma cartografia fina dos modos de comunicação. O estabelecimento dessa cartografia torna-se ainda mais urgente, já
que as questões políticas, culturais, estéticas, econômicas, sociais, educativas e até mesmo epistemológicas de nosso
tempo são, cada vez mais, condicionadas a configurações de comunicação. A interatividade assinala muito mais um
problema, a necessidade de um novo trabalho de observação, de concepção e de avaliação dos modos de comunicação,
do que uma característica simples e unívoca atribuível a um sistema específico.
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