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RESUMO
Este artigo discute a Educação Física nas séries iniciais do Ensino Fundamental de uma
escola pública, em Minas Gerais. Para empreender essa discussão, percorre e aproxima
quatro universos: origens históricas da Educação Física como componente curricular,
legislação do ensino, políticas públicas para a Educação Física na escola e de sua prática em
uma escola pública. Ao final, apresenta algumas indicações para a sua prática escolar.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho trata do ensino de Educação Física que uma escola da rede pública
estadual de Minas Gerais legitima e realiza em sua prática escolar nas séries iniciais do
Ensino Fundamental3, confrontando-o com as ‘escrituras’ que a constituem formalmente.
1 Este artigo escrito a partir de minha dissertação de mestrado em Educação, defendida na Faculdade de
Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, em maio de 1993, ampliado com algumas indicações para
a prática escolar de Educação Física. Foi apresentado no IX Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte,
promovido pelo Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, em Vitória - ES, de 03 a 08 de setembro de 1995, e
publicado originalmente em SOUSA & VAGO, 1997. Professor da Escola de Educação Física da UFMG; doutor
em Educação pela USP.
2 Professor da Escola de Educação Física da UFMG; doutor em Educação pela USP.
3 Mesmo que a dissertação que origina este texto tenha sido defendida em 1993 , a terminologia utilizada para
designar os níveis da escolaridade foi atualizada de acordo com a Lei n. 9.394/96, de 20/12/1996, que fixa as
Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
Não quer ser uma constatação de sua ausência das práticas escolares, como
apressadamente pode-se deduzir, tendo em vista as condições objetivas de ensino na escola
pública. Ao contrário, quer discutir a sua presença exatamente nessas condições de ensino.
Concordando com o princípio de que o conhecimento é sempre o conhecimento de
uma prática, nunca da realidade natural ou social,4 este texto é um produto da reflexão sobre
a prática da Educação Física em uma escola pública da rede estadual de Minas Gerais.
Para sua realização, foi necessário um afastamento, ainda que temporário, de meus
desejos em relação à Educação Física, para conseguir captar o que se passa com ela no dia-
a-dia de uma escola pública. Bracht sintetiza tal necessidade propondo que “para apreender
a Educação Física enquanto fenômeno, é preciso, num primeiro momento, desvencilhar-se
daquilo que desejamos que ela seja”.5 Ao discutir sobre o que é a Educação Física, ele
questiona a tentativa de se encontrar uma resposta no que denominou “essência metafísica”,
isto é, na consideração da Educação Física como uma “entidade metafísica que estaria
hibernando em algum recanto à espera de sua descoberta”. Sugere, então, que “a ‘verdadeira
Educação Física’ é aquela que acontece concretamente (...), é aquela que nós construímos
no nosso fazer diário.”6
Foi esta “verdadeira Educação Física” que se buscou detectar. Se é condição
necessária afastar-se dos desejos sobre ela, então o correto é perguntar: que Educação
Física se realiza nas séries iniciais da escola pública, em Minas Gerais? É esta, portanto, a
questão central que move este trabalho.
A tentativa de respondê-la foi encaminhada privilegiando-se a discussão do tema
específico da concepção da Educação Física.
Após tal confronto, são incluídas algumas indicações para a prática escolar de
Educação Física nas séries iniciais do ensino fundamental (item 5).10
10 Tais indicações não constam da dissertação que é a fonte deste texto, sendo aqui incluídas para ampliar a
discussão.
"o instrumento idôneo era a escola. Não que as escolas tivessem sido
criadas necessariamente com este propósito, nem que já não pudessem ou
fossem deixar de cumprir outras funções: simplesmente estavam lá e se
podia tirar bom partido delas. (...) O acento deslocou-se então da educação
religiosa e, em geral, do doutrinamento ideológico, para a disciplina material,
para a organização da experiência escolar de forma que gerasse nos jovens
os hábitos, as formas de comportamento, as disposições e os traços de
caráter mais adequados para indústria." (ENGUITA, 1989. p. 114)
"a Educação Física foi considerada, à época, como um bom instrumento para
contra-arrestar os danos causados à saúde das crianças operárias pelo
trabalho precoce e/ou prolongado na fábrica. Ela seria assim, portadora de
possibilidades, se não de prevenção, pelo menos de correção (ao menos
parcial) das deformações ou outros efeitos nocivos engendrados pelas novas
condições de trabalho" ( p. 169).
higienista, apontam na mesma direção quando se trata de Brasil. Extrai-se, então, desse
contexto histórico, uma concepção de Educação Física como sendo um instrumento
essencial para o adestramento de mão-de-obra forte e saudável para a indústria capitalista
emergente.
11Em 20/12/1996 foi sancionada a Lei n. 9.394/96, que fixa novas Diretrizes e Bases para a educação. Confira a
respeito SOUSA, Eustáquia S. & VAGO, Tarcísio Mauro. A nova LDB: repercussões no ensino de Educação
Física. Revista Presença Pedagógica. B elo Horizonte: Dimensão, v. 3, n. 16, jul./agos., 1997, p. 18-29.
individualmente entendida. Por esta razão, SOARES (1990) considera que o Decreto
69.450/71 contém uma nítida
"a Educação Física é uma prática social e pedagógica que tem como objeto
de estudo e atuação as potencialidades do homem em movimento, buscando
12 A Secretaria de Estado da Educação de Minas Gerais publicou, em 1995, um novo documento com uma
proposta curricular para o ensino de Educação Física, em dois volumes, sendo o primeiro deles dedicado
exclusivamente às séries iniciais do ensino fundamental. Nesse volume, a SEMG retoma, depois de 6 anos, a
psicomotricidade, indicando-a como a referência para o seu ensino nas séries iniciais. Tal fato constitui, para
mim, ao mesmo tempo, num equívoco teórico-prático e num retrocesso, pelos motivos tratados aqui neste texto
e, em maior profundidade, em minha dissertação de mestrado. Além disso, desde 1989 houve uma significativa
problematização das relações entre o ensino de Educação Física e a psicomotricidade, com a intenção de
superar a justaposição provocada pela confusão teórico-prática que se estabeleceu entre ambas, desde os anos
60. As autoridades da SEMG e os/as assessores/as convidados para formular essa nova (e já tão velha)
concepção psicomotora de Educação Física parecem não ter acompanhado os debates da área.
Compreender a Escola Estadual Minas Brasil como um lugar social contraditório foi
um grande desafio enfrentado na realização do trabalho. Discutiu-se, então, as suas origens
e a sua práticas escolar presente, o seu financiamento pelo poder público, a sua arquitetura,
os sujeitos − professoras e crianças − que constróem o seu processo educativo, a sua forma
de organização pedagógica e administrativa, a sua rotina diária e, dentro dela, destacou-se
as questões de ordem disciplinar − a tentativa de controle das crianças pela escola e as
formas de resistência e de apropriação do espaço e do tempo por elas.
A disciplina que a Escola Estadual Minas Brasil tenta impor às crianças pretende,
também, como escreve FOUCAULT (1987), fabricar “corpos submissos” e “corpos dóceis”,
regulando o espaço, o tempo e as normas a serem cumpridas pelos alunos. Tal pretensão, no
entanto, é relativizada pelas crianças, quando procuram ocupar o espaço, apropriar-se do
tempo e burlar as normas estabelecidas. Esta a principal contradição que interessou ao
trabalho.
Raramente a Educação Física aparece no discurso das entrevistadas como algo que se
justifique por ela mesma. A “dimensão lúdica do humano” (p. 9) que, segundo o autor, esse
modelo busca acentuar, aparece de forma nebulosa.
Uma das formas de legitimação autônoma que se destacou nas entrevistas dos
sujeitos da Escola deu-se a partir da corporeidade do ser humano, ainda que destituída de
fundamentação teórica. Essa forma aproxima-se de um dos princípios pelos quais a
Educação Física, segundo Grupe, citado por Bracht, se legitima na escola: o fato de que “a
existência humana é radicalmente ‘um ser corporal no mundo’ “ (BRACHT, 1991: 9).
Os exemplos a seguir ilustram a existência da legitimação autônoma na Escola
Estadual Minas Brasil.
"a Educação Física deve permear a vida [e por isso] deve estar presente na escola"
(diretora);
"o corpo não pode ficar parado, ele tem que ter vida, tem que ter vibrações, tem que
ter elegância em seus gestos, nos seus atos" (orientadora);
"a Educação Física não pode ficar de lado não [pois] se aleja a criança, se ensina
pela metade, deixando a criança sem Educação Física" (idem);
"é uma matéria para trabalhar com o próprio corpo, para desenvolver o corpo da
criança" (professora);
-"ajudaria [a criança] a lidar com o próprio corpo, a descobrir o seu próprio corpo, a se
alegrar com as suas capacidades físicas" (orientadora).
3) Uma ruptura com a justaposição (ou fusão) entre a Educação Física e a Psicomotricidade.
Defende-se que o ensino da Educação Física, nas séries iniciais do ensino fundamental, deve
abandonar sua referência à psicomotricidade, porque não há identidade possível entre ambas
no tratamento a ser dado pela Educação Física à corporeidade humana e às práticas
corporais lúdica na escola.
culturalmente, conhecimento necessário ao professor, mas não podem ser confundidos com
os temas (os conteúdos) da prática escolar de Educação Física.
6) Um abandono das funções sociais que vinculam a Educação Física ao mundo do trabalho
(como instrumento de preparação física de mão-de-obra) e ao mundo da Escola (como
instrumento de controle e de disciplina dos corpos dos alunos, contribuindo para a instalação
de uma certa ordem escolar). Ao mesmo tempo, defende-se uma articulação e um
alinhamento do ensino da Educação Física à responsabilidade social de preparação para o
mundo do lazer, tentando garantir o acesso e a vivência de práticas corporais lúdicas
produzidas culturalmente, inclusive na própria escola, pelas crianças.
ABSTRACT: This manuscript discusses Physical Education in the initial grades from a
public school, in the State of Minas Gerais, Brazil. In order to promote this discussion,
our text analyses four aspects: 1) the historical origin of Phisical Education as a
curricular subject; 2) the legislation of Education; 3) public politics regarding Physical
Education and, 4) its practice in a public school. Finally, some suggestions and
indications are presented.
REFERÊNCIAS
BRACHT, Valter. A criança que pratica esportes respeita as regras do jogo... capitalista.
Revista Brasileira de Ciências do Esporte, Brasilia, v. 7, n. 2, p. 62-68, 1986.
CASTELLANI FILHO, Lino. Educação física no Brasil: a história que não se conta.
Campinas, SP: Papirus, 1988.
ESCOBAR, Micheli O., SOARES Carmem L. e TAFFAREL Celi N. A educação física escolar
na perspectiva do século XXI. In: GEBARA, Ademir (org). Educação física e esportes:
perspectivas para o século XXI. Campinas, SP: Papirus, 1992, pp. 211-24.
FREIRE, João Batista. Educação de corpo inteiro; teoria e prática da educação física. São
Paulo: Scipione, 1989.
NOGUEIRA, Maria Alice. Educação, saber, produção em Marx e Engels. São Paulo,
Cortez: Autores Associados, 1990.
SANTIN, Silvino. Educação Física; uma abordagem filosófica da corporeidade. Ijuí: UNIJUÍ,
1987.