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Sete dias no

Douro
Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo,
enoturismo na região demarcada do Douro.

REPORTAGEM

¬
TEXTO Carla Maia de Almeida

O que é que o Douro tem? Quase tudo,menos golfe e praia. Nem é


preciso. Porque pode tornar-se um destino perfeito,se conseguir
somar em vez de dividir,em benefício de uma imensa diversidade:
¬ FOTOGRAFIA Guto Ferreira

¬ A mesma estrada em que


arriscámos a pele, a EN
222, acabou por condu-
zir-nos às portas da Via
Láctea, onde só os cometas abusam dos li-
mites de velocidade. Para avistarmos o fio de
estrelas outrora seguido pelos romeiros até
Santiago de Compostela, com paragem nas
frentámos um engarrafamento de autocar-
ros turísticos (bastam três veículos de gran-
de porte para causar um tumulto no Pi-
nhão) e percorremos uma estrada aos «es-
ses» que se aconselha a fazer de dia e livre
de influências etílicas. Para trás ficou a já ci-
tada EN 222, que apanhámos à entrada da
Régua, num cruzamento manhoso com vis-
Para já, aproveitamos a temperatura sua-
ve de uma noite de Verão, nem sempre pos-
sível face às amplitudes térmicas durienses.
Comprada em 1999 pela família Amorim,
recuperada e inaugurada em 2005, a Quin-
ta Nova é um dos projectos ligados ao enotu-
rismo que estão a propor o Alto Douro como
um destino alternativo de férias ou de fim-
paisagens superiores,um rio para navegar,património histórico e ar- terras abençoadas de Lamego, é preciso ver ta para o posto em ruínas da Junta Autóno- -de-semana. Fora das estradas mais percor-
as muitas luzes do mundo a apagarem-se ma de Estradas. Não é coisa bonita de se ver. ridas, pareceu-nos o lugar perfeito para um
queológico,quintas onde se produzem bons vinhos e onde não chega sob o amplexo da noite. Não é fácil consegui- Tal como não é bonito ver o lixo a enfeitar interregno de descanso. Trocamos facil-

¬
o desassossego da civilização. E o melhor:as pessoas.Gente que -lo, mas também por isso estamos no Douro.
Mais precisamente na Quinta Nova de Nos-
as silvas nas encostas ribeirinhas ou as de-
zenas de carros estacionados em segunda
mente o acesso à internet por uma hora no
alpendre com vista para as vinhas e o rio.
gosta de conversar e de receber,sem artifícios. ¬
Estivemos uma se- sa Senhora do Carmo, uma propriedade se-
tecentista do Cima Corgo, a meia hora de
fila, ao longo de uma via que tem tudo para
ser – mas ainda não é – uma fabulosa rota
Trocamos ainda mais facilmente a televi-
são por um estiramento nos sofás brancos
mana no Douro e achámos pouco,muito pouco. distância do Pinhão. Para aqui chegar, en- panorâmica sobre o Douro. junto aos ciprestes, sobretudo se estiver-

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ali passa um dos três circuitos pedestres aces- te estes números. Israelitas e brasileiros fa-
síveis a hóspedes e a visitantes. Não subesti- zem parte das novas nacionalidades em Comboio histórico ou regional?
me as distâncias do mapa nem o declive do crescimento, mas o tempo médio de estada Pela paisagem, não há dúvida: melhor Porto no copo. Muito fumo. Ida e volta,
terreno. É preferível começar por um ponto continua a ser escasso: cerca de um dia e será eleger o comboio regional que faz a viagem demora duas horas e vinte
alto como o Pomar Romano e descer até à ca- meio. É pouco, quando há tanto para conhe- várias vezes por dia o percurso de ida e minutos. Por 42 euros por pessoa,
pela; caso contrário, arrisca-se a naufragar cer e experimentar. volta da Régua ao Pocinho, a última das a CP podia oferecer melhor.
de cansaço no meio do vinhedo e não haverá O modelo das quintas, não sendo para to- estações da linha do Douro. Paga 11
Senhora do Carmo que lhe acuda. Além dos das as bolsas, é defendido por Ricardo Ma- euros e tem direito a carruagens
passeios a pé ou de bicicleta (não são permi- galhães, chefe de projecto da Estrutura Mis- desconfortáveis e pouco limpas, que
tidos jipes à desgarrada), as propostas ligadas são Douro, como um pólo agregador do de- podem ir apinhadas de turistas regres-
ao enoturismo incluem visita à adega, segui- senvolvimento turístico da região. A razão sados dos cruzeiros. Pela experiência,
da de prova de vinhos do Porto e do Douro, prende-se com o facto de estas serem «uma também não há dúvida: o comboio
com base nas três marcas aqui produzidas: matriz identitária da paisagem vinhateira», histórico é único. Sai aos sábados à
Três Pomares, Grainha e Quinta Nova de com capacidade para representar uma ofer- tarde, de Maio a Outubro, e vai da Régua
Nossa Senhora do Carmo. Estão para breve ta hoteleira que não classifica como «de eli- ao Tua, com paragem de vinte minutos
os programas de um dia nas vindimas e, por te», mas «qualificada». Calcula que existam no Pinhão, para fazer compras na Wine
45 euros, pode trabalhar-se até à hora de al- cerca de sessenta quintas, contando com as House. Locomotiva a vapor, muito
moço e gozar a boa vida no tempo restante. associadas à Rota do Vinho do Porto, embo- fumo, bancos de madeira, música
ra nem todas disponham de meios de aloja- tradicional, muito fumo, um chisco de
A matriz das quintas do Douro mento ou estejam vocacionadas para o eno- bola de carne e um fundo de vinho do
Quinta do Pégo, um dos projectos de hotelaria mais recentes no Douro. Nos últimos cinco anos, tem crescido a oferta turismo. Um dos mais recentes empreendi-
de alojamento no Douro, em quantidade e mentos, inaugurado em Maio, é a Quinta do
qualidade. Os últimos dados tratados pelo Pégo, propriedade de uma família dinamar-
Instituto Nacional de Estatística reportam a quesa investida na importação e comercia-
mos acompanhados por um Vintage Porto Situada no meio de uma propriedade de 2007 e referem mais de 228 mil dormidas lização de vinhos de todo o mundo. Ro- vista sobre o rio que nos foi dada a ver, trans- qualidade global, é a Casa de Gouvães, a qua-
da casa. Para os mais radicais, sugere-se 120 hectares, 85 dos quais de vinha, a Quinta anuais (contra 137 mil em 1997), 82 por cento deiam-na trinta hectares de vinha em bor- formou-se num hotel de quatro estrelas com tro quilómetros do Pinhão. Ideal para famí-
uma partida de mikado (quem se lembra do Nova de Nossa Senhora do Carmo foi buscar protagonizadas por portugueses, seguindo- dadura (com os socalcos separados por dez quartos, sendo maioritariamente pro- lias ou grupos de amigos (acolhe entre seis e
mikado?) ou a leitura de um coffee table o nome à padroeira da capela construída no -se os espanhóis, ingleses e franceses. Entre- oliveiras), mas a produção de vinho e de curada por estrangeiros. nove pessoas), chega-se lá por uma estrada
book, à disposição nas várias salas de estar, século XVII, junto à margem do rio, numa zo- tanto, a expansão dos cruzeiros fluviais, com azeite não é feita ali. Alcandorada numa en- Outro conceito de alojamento diferente secundária de vistas largas que sobe serra aci-
amplas e confortáveis. na onde os naufrágios eram frequentes. Por a Douro Azul à cabeça, já elevou ligeiramen- costa a 138 metros de altitude, com a melhor das quintas, mas igualmente apostado na ma, e não é caminho para agradar ao turista
japonês. À saída do Pinhão, certifique-se ape-
nas de que vai na direcção de Sabrosa e não de
Alijó/Favaios. Plantada na bifurcação, existe
uma linda magnólia cujos ramos cresceram
até cobrir as placas indicativas. Talvez seja
uma estratégia da autarquia para nos obrigar
a sair do carro e observar de perto as árvores,
tão maltratadas andam por esse país fora.
A «questão da má sinalética» seria um
palavrão recorrente ao longo da semana,
reunindo consenso entre quem se sente
prejudicado por não estar visível e quem
pretende chegar ao seu destino. Segundo
um estudo do CED – Centro Mundial de
Excelência de Destinos, ligado à Organiza-
ção Mundial de Turismo, a sinalização é
um dos pontos negros do Douro, a juntar
ao lixo disperso na paisagem e à desinte-
gração da identidade das aldeias. Não por
acaso, alguns quilómetros depois, iremos
encontrar Francisco Abrunhosa literal-
Francisco Abrunhosa, mente às voltas com o sinal que indica o ca-
da Casa de Gouvães, minho para Provesende. O tubo metálico
aponta a «falta de não aderiu ao cimento, ou vice-versa, e di-
divulgação» como um gamos que Provesende está agora entre-
problema que começa gue à sorte, acomodando-se aos pontos
nos próprios agentes cardeais conforme lhe dá o vento. «Isto é o
turísticos da região: suficiente para perder mais umas dezenas
«Não vejo grande de visitantes ao fim-de-semana», diz, ten-
motivação de parti- tando virar a placa para o sítio certo.
culares e algumas
entidades em darem De Gouvães a Provesende
a conhecer o Museu Francisco Abrunhosa, primo do músico com
do Douro. O turismo o mesmo apelido, é responsável pela gestão
tem de criar e deixar da Casa de Gouvães e mais do que isso. Em
Jardins e pomares bem cuidados são um dos atractivos da centenária Casa de Santo António de Britiande. valor na região.» 2006, topou com uma ruína na aldeia de Gou-

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vães do Douro e logo ali acreditou no «tre- Assistida por uma governanta incansável, mento Regional do Norte serviram para
mendo potencial» que tinha à sua frente. que tem a seu cargo os pequenos-almoços e uma operação de requalificação nas ruas e
É preciso ver as fotografias iniciais para per- outras refeições a pedido, o que falta à Casa nas fachadas dos edifícios, mas há fios eléc-
ceber que estamos perante um homem de fé. de Gouvães é reconhecido pelo seu mentor: tricos a irromper das paredes e varandas de
Durante mais de um ano, veio do Porto para «O Douro precisa de um alojamento de qua- granito polido que desfiguram o conjunto.
acompanhar a equipa encarregada da re- lidade, não massificado, que providencie um Os acabamentos irão alguma vez ser acaba-
construção, que de vez em quando lá volta pa- conjunto de serviços além da simples dormi- dos? De Provesende, regressaremos ao Pi-
ra mostrar a outros a obra feita. A recuperação da. Eu não tenho estrutura para muito mais, nhão com os enchidos das Papas Zaide em
do património edificado é um dos motivos mas estou preocupado com os meus hóspe- boa memória: o presunto, o salpicão raiado,
por que está no Douro: «Queria deixar aqui des. Enviei muitos e-mails e cartas a entida- a carne de porco curada e fumada… Por ser
alguma coisa que perdurasse no tempo.» des da região que fazem animação turística e domingo, não havia pão fresco na Padaria
Obteve investimento financeiro junto de não me responderam.» Uma das quintas, que Fátima, casa de 1940 onde existe, contam-
um casal francês residente em Macau e en- prefere não nomear, deu-lhe como troco a -nos, o maior forno de lenha do concelho de
tregou o projecto a um arquitecto de Vila lista de vinhos à disposição para venda ao pú- Sabrosa e do distrito de Vila Real. Também
Real, Vivaldo Carrilho da Fonseca. Assim nas- blico. «Falta atitude e consideração», subli- por ser domingo, estava fechado o posto de
ceu uma casa de campo disposta em socalcos, nha, «e é também por causa de respostas des- turismo, um problema nacional, exemplo tí-
na confluência da traça rural com as linhas e te género que o Douro tem um problema sé- pico de como a lógica institucional funciona
os atractivos contemporâneos. Distinta, sem rio de divulgação.» De vez em quando, sente ao contrário das vulgares expectativas de
chegar a ser luxuosa, não lhe faltam comodi- o voto de desconfiança lançado a quem vem um cidadão em férias.
dades como o sistema Hi-Fi, DVD e SportTV, de fora, «uma característica marcante do
sendo também notório o culto dos pormeno- transmontano». A juntar ao «individualismo Aldeias nem sempre em festa
res. Do périplo pelas lojas e feiras de antigui- português», tem como resultado o que está à Provesende, Barcos, Favaios, Salzedas, Tre-
dades e velharias, Francisco Abrunhosa vista: uma falta de informação articulada que vões, Ucanha. O portal das Aldeias Vinhatei-
trouxe objectos que merecem agora honras desorienta o turista e concorre para o des- ras do Douro continua online, mas as notícias
de exposição. Na parede, em molduras envi- perdício de recursos a todos os níveis. do festival que há dois anos animou as seis
draçadas, há envelopes de antigas casas co- Um atalho leva-nos de Gouvães a Prove- terras integrantes do projecto não tiveram
merciais: Thiago Augusto Alberto de Almei- sende, aldeia histórica que atingiu o apogeu continuidade. Talvez este ano regresse, se
da, «especialidades em enchidos e paio do no século XVIII e mantém até hoje um gran- não faltarem os fundos comunitários. Na
lombo»; Amorim, Coelho & Feio, Lda., «todos de número de casas brasonadas. Os fundos Ucanha, onde chegámos depois de cruzado
os artigos de confeitaria». Uma delícia. da Comissão de Coordenação e Desenvolvi- o rio para a margem esquerda, há quem se O Aquapura Douro Valley manteve a arquitectura exterior da antiga quinta e integrou novos edifícios sem prejudicar o conjunto.
lembre bem da festa que trouxe dança e ar-
tes circenses às ruas, puxando o brio da po-
pulação, logo ali animada para mostrar o seu
melhor. No caso de Maria Adelaide Costa, a soas se deitassem a fazer qualquer coisa, co-
Reorganização do Turismo do Douro Um pódio para três: DOC, Aquapura e Quinta do Seixo
Delaidinha, são doces, geleias e compotas mo eu fiz. A vida agora está melhor para uns
Responsável pela promoção turística de 19 que dantes se diziam «caseiros» e hoje são e pior para outros, mas as pessoas queixam- O Aquapura Douro Valley, acessível a hóspedes e encontra-se a Quinta
municípios, de Mesão Frio a Freixo de Espa- «biológicos». Uma montra onde cabem o -se na mesma.» o restaurante DOC e a ao público em geral, tal do Seixo, propriedade
da à Cinta, António Martinho preside, desde sabugueiro, o medronho, a maçã bravo-de- As casas recuperadas da rua mais íngreme Quinta do Seixo foram os como o restaurante. da empresa líder do
Janeiro de 2009, ao que era antes uma in- -esmolfe, o pêssego, o damasco, a pêra, a la- da Ucanha, cores garridas e paredes de lou- vencedores ex aequo Nesta matéria, o DOC mercado nacional de
compreensível manta de retalhos. Com a ranja e outros frutos retirados aos seus po- sa em escamas, escondem uma pobreza en- dos prémios do Turismo continua a ser o trunfo vinhos do Porto,
reorganização iniciada em 2008, o Turismo mares. Vende saquinhos de pano e de se- vergonhada. Não há muito para fazer, aqui, de Portugal para melhor imbatível da região, a Sogrape. Não se trata
do Douro é hoje «o resultado da junção de rapilheira, e também chás e infusões para e o recurso voltou a ser emigrar, como acon- projecto privado. Antiga conciliando uma cozinha de alojamento em
duas ex-regiões de turismo, Douro Sul e Ser- vários males: oliveira para a hipertensão, teceu com Arlete, de quem nos falhou a no- mansão ligada à Quinta de inspiração regional espaço rural, mas de um
ra do Marão, da Junta de Turismo de Caldas hortelã-mouriscada para as dores de cabe- ta do apelido. Mas é fácil encontrá-la: até No- da Pacheca, o Aquapura com a visão de autor do projecto de enoturismo
de Moledo e ainda de três municípios da re- ça, carqueja para digestão e para o arroz de vembro, Arlete, 21 anos, corpo de 15, divide- Douro Valley renovou os chef Rui Paula, à frente contemporâneo e
gião do Nordeste Transmontano. Agregou- coelho, que uma coisa até ajuda a outra. -se entre o posto de turismo e as visitas interiores, numa linha de uma equipa jovem estilizado. Durante as
-se a estes o município de Foz Côa, que não Adelaide Costa é uma mulher de armas. guiadas à Torre de Ucanha, ex-líbris da ter- entre a sobriedade es- que surpreende pela vindimas, a visita guiada
integrava nenhuma região de turismo, infe- Casou-se ainda aos 16 e enviuvou dez anos ra, juntamente com a ponte dos séculos candinava e um certo descontracção. Desde o conduz aos lagares em
lizmente, e por isso a dinâmica à volta das depois de um homem que «foi um pai, um XII/XV. É um emprego de férias, findo o qual exotismo oriental. DOC, ir à Folgosa passou actividade, antes de
gravuras nunca se consolidou». António amigo e uma paixão». Não é preciso mais regressará a Davos, na Suíça, onde trabalha Insere-se num conceito a ser um capricho com terminar numa sala de
Marinho ainda não teve tempo de pôr em nada para se ser feliz e nada foi com o que fi- em hotelaria. Claro que gostaria de estudar de hotelaria de luxo em justificação óbvia. Mais provas que é um
prática um plano de marketing capaz de cou, exceptuando duas filhas pequenas, en- História, mas onde iria arranjar emprego? que o spa é a grande perto do Pinhão, e ainda autêntico belvedere
produzir os folhetos e mapas que rareiam tregues a um colégio no Porto antes de emi- A avaliar pelo estado da torre, aparentemen- mais-valia, estando na famigerada EN 222, sobre o Douro.
em todo o lado, mas considera uma vitória a grar para França. Aprendeu francês «com os te bem conservada, mas com o interior ao
abertura dos postos de turismo aos domingos em Vila Real, Régua e Lamego. Como olhos», quando a patroa abria os armários e abandono e preenchido por um arremedo
prioridades, refere a sinalização e a reconversão da EN 222 em estrada panorâmi- lhe soletrava o nome das coisas. Lembra-se de espólio etnográfico que se confunde com
ca, dois estudos adjudicados pela Estrutura Missão Douro em fase de conclusão. daquela vez em que lhe pediu arroz para o lixo, parece que ninguém se importa muito
Até ao final do mandato, em 2013, quer atingir o objectivo de trazer ao Douro meio jantar, e ela, aflita, sem saber o que era «o ri, com a dignidade de um conjunto classifica-
milhão de dormidas anuais, o dobro da cifra actual. Para muito breve, entre 9 e 13 de o ri», pensou que a patroa queria vê-la a rir- do como Monumento Nacional.
Setembro, prepara-se o primeiro festival de cinema internacional, Douro Film Har- -se, vá lá perceber-se porquê. De volta a Por-
vest (www.dourofilmharvest.com), que terá lugar em Vila Real, Lamego, Moncorvo e tugal, sobreviveu a um segundo marido e a Na Rotas das Vinhas de Cister
Santa Marta de Penaguião. «Estamos a pensar levar depois os filmes vencedores a uma doença cancerosa, e então pôs-se a fa- Da margem direita para a margem esquerda
outras localidades, preparando o festival seguinte», afirma. «Se a população é rare- zer doces como terapia. Aos 65 anos, refor- do Douro, atravessando o viaduto de betão
feita, não podemos esperar muita gente, mas é bom que as pessoas de cá tenham mada, afirma: «Não estou aqui para ganhar da A24 em direcção de Lamego, a mudança
qualidade de vida e acesso à cultura. Os públicos fazem-se.» para comer, estou aqui por causa da minha na paisagem é quase abrupta. Os planaltos Quinta do Seixo, um complemento às tradicionais caves da Sandeman.
doença. Gostava de morrer e ver que as pes- xistosos trabalhados pela mão do homem,

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pessoas são recebidas pelos donos da casa,
essa é a marca. E têm também a oportuni- O estranho caso dos viscondes da Várzea
dade de obter informações sobre a região Maria Manuel Cyrne é tem a família e os amigos. resposta sai lapidar e
que não existem noutro tipo de alojamento senhora de uma Precisa, isso sim, de ofendida: «Toda a gente
massificado.» Numa casa de fachada qui- personalidade forte e profissionalismo, discri- adora! Nunca ninguém
nhentista, cuja frescura se mantém com a determinada, graças à ção e gentileza. Precisa se queixou.» Não é
ajuda da vinha virgem que cobre as paredes, qual foi mãe aos 50 anos que lhe perguntem se verdade. Ainda no dia
existem quatro quartos decorados com e recuperou a prefere ou não jantar ao anterior a secretária nos
bom gosto, combinando elementos tradi- propriedade arruinada ar livre. E que isso não falara de um senhor que
cionais portugueses e um certo aconchego da família. Tudo isto e seja comentado desde a saiu a reclamar,
very british. São exclusivos para casais. Ana muito mais ficámos a recepção até à cozinha, argumentando que
Maria Pinto Ribeiro leva a sério «o concei- saber mal cruzámos a e muito menos interpre- esperava uma coisa e
to de tranquilidade total» e encaminha as soleira da porta, nos dez tado como uma ofensa lhe saíra outra. «Era um
famílias com filhos para duas suites espa- minutos mais animados pessoal. Mas a Casa dos louco!» Então porquê?
çosas exteriores à casa, perto da piscina a que tivemos direito Viscondes da Várzea é «Entrou aqui de chapéu!
onde se serve o pequeno-almoço no Verão. nesta reportagem. um hotel rural que é uma Já viu o que é alguém
Desde os jardins relvados com árvores A partir do jantar, caímos casa particular que é entrar em sua casa de
frondosas até à zona de pomares, não falta em desgraça. À nossa uma loja de decoração, e chapéu?» Está explicada
espaço para brincadeiras – haja pais dis- hesitação perante a desta mistura de concei- a confusão. Nem vamos
poníveis e crianças ainda não viciadas em mesa posta no pior tos surgem mal-entendi- falar do jacuzzi avariado,
jogos electrónicos. canto da varanda, onde dos. Quase não há móvel das teias de aranha no
A cerca de dez minutos da Casa de Santo acabámos por ficar na ou bibelot que não esteja quarto e dos dejectos
António de Britiande fica a Casa dos Viscon- companhia dos mosqui- à venda; os preços estão caninos à porta. Fique o
des da Várzea. Foi outro tanto para atraves- tos e outra bicharada marcados por baixo e leitor avisado: comporte-
sar um dos caminhos da propriedade de 180 nocturna, responderam- nem a mesa do pequeno- -se como convidado, não
hectares, findo o qual deparámos com uma -nos que tinha sido almoço é sagrada. reclame, faça muita ceri-
alameda de cedros e castanheiros imponen- preparada «com muito Quando perguntamos a mónia e trate logo de
tes. Também imponente é a mansão senho- carinho». Acontece que Maria Manuel Cyrne se a contar a sua vidinha.
rial convertida em hotel rural com «muitos um hóspede não precisa todos os hóspedes tem Apostamos que será
quartos», certamente dos maiores na região. de «carinho», para isso agradado esta ideia, a muito bem recebido.
A casa principal da Quinta do Vallado pertenceu a uma das figuras míticas do Douro: Antónia Adelaide Ferreira, a Ferreirinha. «Muitos quartos», desculpe o leitor a impre-

onde impera a geometria das vinhas traba- Tarouca e Armamar; os mosteiros de Salze- mónio Arquitectónico. E depois há os pe- cisão, é tudo o que podemos adiantar. A in- Novos enólogos e produtores
lhadas em socalcos, patamares ou ao alto, das e de São João de Tarouca; o castelo, a sé quenos poderes locais, que são poderosíssi- formação não está disponível na internet e Uma paragem em Lamego para comprar a
dão lugar a terras mais húmidas e mais ele- e o Santuário de Nossa Senhora dos Remé- mos e estão cristalizados há muito tempo.» não tivemos tempo de inquirir a proprietá- famosa bola recheada levou-nos até à Sé
vadas, férteis em pomares, soutos e árvores dios, em Lamego. São alguns dos lugares re- Mantendo o olhar crítico, deixa transpare- ria, Maria Manuel Cyrne, que apressou o Gourmet, loja de gastronomia, vinhos e ar-
de folha persistente. Nestes vales assenta- comendados por Ana Maria Pinto Ribeiro, cer o optimismo: «Apesar de todas as dife- fim da entrevista ainda mal tínhamos co- tesanato de João Rebelo. Professor de Mi-
ram os monges de Cister, impulsionadores sempre que algum hóspede da Casa de San- renças que existem nas várias regiões do meçado. Aparentemente, não gosta de ser croeconomia e Econometria na Universida-
do desenvolvimento da região desde o sécu- to António de Britiande solicita informação. Douro, estamos ligados por uma cultura de questionada sobre um conceito que pode- de de Trás-os-Montes e Alto Douro, fala-nos
lo XII. Dão nome à rota dos vinhos que se dis- «Entre Lamego e Penedono há uma con- base. Há muito trabalho a fazer, mas já co- ríamos chamar de «hotel rural comercial» da «revolução silenciosa» ocorrida no Dou-
tingue pelos seus brancos frescos e espu- centração notável de património religioso, meçámos, com esta reorganização das re- [ver caixa], dada a profusão de objectos de- ro, com a reconversão tecnológica das estru-
mantes, com as Caves da Murganheira entre militar e civil», salienta, lembrando os pro- giões de turismo.» corativos para venda. Nada contra, mas per- turas de produção da vinha e a chegada de
as maiores atracções locais. blemas de conservação «gravíssimos» que A Casa de Santo António de Britiande en- guntar faz parte da profissão. Registámos uma nova geração de enólogos. «A universi-
Em matéria de património há também atingem sobretudo os mosteiros: «Há aqui quadra-se noutra categoria de alojamento uma das suas frases mais simpáticas: «Se dade teve aqui um papel determinante, a
muito para ver: o Convento de São Pedro das duas tutelas que nem sempre estão de acor- também alinhada com a identidade históri- Francisco Spratley Ferreira e João Ferreira querem minimalismos, vão ao Aquapura.» partir do momento em que surgiu o curso de
Águas, em Tabuaço; as igrejas matrizes de do, a igreja e o Instituto Português do Patri- ca do Douro: o turismo de habitação. «As Álvares Ribeiro, da Quinta do Vallado. Foi o que acabámos por fazer. Enologia, a única licenciatura do país nesta

Seis sugestões de leitura à margem da ficção


DOURO fotografias vintage de Alvão e concorreram mais de seis mil itinerários a pé, para que nem livro, num namoro sedutor entre o go e Douro Superior – em busca não se limitou a enriquecer
de António Barreto Emílio Biel juntam-se às imagens livros. As fotografias de Nelson tudo se deixe perder. Tâmega, jornalismo e a literatura. Com pre- da sua unidade sociocultural. Não com o vinho. Quis ser um
Edições Inapa, 1993 contemporâneas de Maurício Garrido valeram-lhe também Corgo, Tua, Sabor, Barca d’Alva. fácio de Francisco José Viegas, ficam de fora lugares como a conhecedor engagé da região,
«É talvez a região portuguesa so- Abreu, algumas já impregnadas o terceiro prémio na categoria E outros daí em diante, para sul, aqui se contam «as histórias da Adega das Giestas Negras, uma registando-a em mapas,
bre a qual mais se escreveu, so- de uma nostalgia prematura. de melhor fotografia. Com textos sempre a dizer adeus ao comboio. História do Barca Velha, o tinto adega de xisto do fim da Idade pinturas e fotografias. O Museu
bretudo no século xIx e princípios de Celeste Pereira, termina com português de excepção» que teve Média, perto da Régua, ou o Mu- do Douro fez dele a figura
do actual», diz o autor, ainda na RUI PAULA as receitas do chef Rui Paula. BARCA VELHA origem nas terras da Ferreirinha. seu das Curiosidades, em Romeu. inaugural do seu programa
badana da obra. Publicado em UMA COZINHA NO DOURO HISTÓRIAS DE UM VINHO e registou o estudo num
1993, continua a ser um livro de QuidNovi, 2009 PELAS LINHAS DA NOSTALGIA de Ana Sofia Fonseca GUIA DE MUSEUS DO DOURO BARÃO DE FORRESTER catálogo aprofundado.
cabeceira para quem queira co- Eis o recente vencedor do prémio de Rui Cardoso e Mafalda César Dom Quixote, 2004 Fundação Museu do Douro, 2009 RAZÃO E SENTIMENTO Para breve, idêntico trabalho
meçar a entender o Douro – o rio, para melhor primeira obra Machado, Afrontamento, 2008 Porque numa reportagem é raro Um guia indispensável para cal- Fundação Museu do Douro, 2008 será feito sobre Antónia
a região, a história, as pessoas, de gastronomia dos Gourmand Sem perder de vista as linhas fér- caber tudo o que se quer contar, correar as três sub-regiões do Al- Joseph James Forrester, inglês Adelaide Ferreira e o
os trabalhos, as localidades. As World Cookbook Awards, a que reas abandonadas, sugerem-se há quem prolongue a escrita em to Douro – Baixo Corgo, Cima Cor- de ascendência escocesa, marquês de Pombal.

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área.» Outra instituição que está a contribuir
Rui Paula e o DOC: para o crescimento da formação qualificada
o coração à boca é a Escola de Hotelaria e Turismo de Lame-
go. Contudo, para João Rebelo, «o turismo
não é solução para tudo» nem chega para er-
radicar dois problemas sociais que aqui se
fazem sentir com acuidade: a distribuição
assimétrica dos rendimentos e a perda das
populações rurais.
De volta à margem direita, perto da Ré-
gua, encontramos na Quinta do Vallado um
exemplo do esforço de modernização refe-
rido por João Rebelo. Uma das mais antigas
quintas durienses, construída no início do
século XVIII, o Vallado passou mais tarde pa-
ra as mãos de Dona Antónia Adelaide Ferrei-
ra e mantém-se ainda na posse da família, in-
do na sexta geração de descendentes. Fran-
cisco Olazabal, o enólogo responsável pelos
premiados vinhos de mesa brancos e tintos,
e ainda dois vinhos do Porto tawnies, trouxe
«Os fumeiros, o azeite, as
carnes, os milhos, os legumes
da época. O que o Douro tem de
melhor, eu aproveito.» Para Rui
Paula, chefe do restaurante
DOC, tudo que vai à mesa «tem
de ser bom», no sentido mais
amplo e quase filosófico do
termo. O apuro estético de
cada prato conjuga-se com
uma ética do paladar que
aspira ao que é honesto e
verdadeiro. A cozinha da avó
serve-lhe até hoje de referên-
cia. Da mais singela erva do
monte até ao azeite de trufa
branca, tudo tem de
encontrar o seu lugar num
arquivo estudado com os
cinco sentidos. «Apesar de
haver sabores que já não
consigo recuperar – os da
salgadeira da minha avó, por
exemplo –, baseio-me sempre
na minha memória gustativa.» As cores garridas das casas da Ucanha e os doces caseiros da Delaidinha .
Mais: «Não acredito em
cozinheiro nenhum do mundo,
seja ele quem for, que não
saiba fazer as receitas para aqui o conhecimento científico adqui- São também eles os gerentes e anfitriões de
tradicionais do seu país. rido na Universidade de Trás-os-Montes e uma casa que, sem luxos nem cerimónias,
Cozido à portuguesa, arroz de Alto Douro. Quando a nova adega e cave es- cultiva a arte de bem receber. Parte do méri-
feijão com pataniscas, um tiverem prontas, em Setembro, a capacida- to cabe às cozinheiras, cujo anonimato não
cabrito assado – quem não de da produção deverá duplicar. No Verão de impede aqui a lembrança de uma deliciosa
souber fazer isso, não pode 2010, espera-se também ver aumentada a sopa de tomate directamente remetida para
elaborar mais nada.» Depois capacidade de alojamento, com mais oito a nossa «memória gustativa», como diria o
do Cepa Torta e do DOC, «e quartos e áreas comuns. Até lá, continuam a chefRui Paula [ver caixa]. A verdade é que, ape-
agora que o Douro está a dar proporcionar-se provas com tábuas de quei- sar de tanto se ouvir o chavão «no Norte é que
os primeiros passos», como jos ou enchidos; piqueniques na quinta; re- se come bem», não é fácil para o turista incau-
reconhece, Rui Paula prepara- feições para grupos com marcação prévia e to descobrir restaurantes de nível intermédio
-se para abrir um novo restau- outras actividades ligadas ao enoturismo. onde se pratique uma cozinha à altura dos
rante no Porto, cidade onde Francisco Spratley Ferreira e João Ferrei- pergaminhos da região. Entre a excelência de
nasceu, em 1967. Chamar-se-á ra Álvares Ribeiro integram os Douro Boys, um DOC e o entrecosto carbonizado que nos
DOP. Esperem por Fevereiro de um grupo informal de enólogos e proprietá- calhou num restaurante do Pinhão, a via do
2010. Pacientemente. rios apostados em promover os seus rótulos meio tem de ser encontrada. Mesmo que te-
sem vinculações institucionais ou políticas. nha de passar pela EN 222.«

46 » noticiasmagazine 23.AGO.2009

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