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IDÉIAS
Dax Fonseca Moraes Paes Nascimento (CNPq/PUC-Rio – 2001/2003)
Orientador: Danilo Marcondes de Souza Filho (PUC-Rio)
F
ílon considera todo o Gênesis
não são interpretados em termos
“uma história da alma desde da história primeira do homem e
sua formação no mundo inteli- da eleição do povo de Israel por
gível até o completo desabrochar da Deus, mas são lidos em um plano
sabedoria após sua queda e seu “mais profundo” [deeper] como
restabelecimento pelo arrependi- uma penetrante [profound] descri-
mento”, sendo o propósito do método ção da natureza da alma, seu lugar
alegórico “reencontrar sob cada per- na realidade, e as experiências por
sonagem e sob suas ações o símbolo que ela passa enquanto busca por
de uma das etapas da decadência ou sua divina origem e obtém conhe-
cimento de seu criador.2
da recuperação da alma”.1 Nos Co-
mentários Alegóricos, compostos por
Para Fílon, patriarcas e outros perso-
dezoito tratados divididos em vinte e
nagens de Gênesis – e até do res-
um livros, os dezessete primeiros ca-
tante do Pentateuco –, são modelos
pítulos de Gênesis
para as leis escritas, sendo, eles
mesmos, leis não escritas (nomous
1
Cf. BRÉHIER, “Philo Judæus”, p. 209, in 2
RUNIA, 1990a, p. 5-6.
1955, p. 207-214.
“receptáculo, ou um instrumento, da
criação”, que tem a prioridade na Cri- Ainda em conformidade com a exe-
ação.11 Como Fílon, “a escola de gese judaica de que hoje dispomos,
Shammai colocou dois seres inter- antes mesmo de ter início a compila-
mediários: Pensamento e céus, e o ção do que viria a ser o Talmud de
divino Pensamento foi em seguida Jerusalém, Fílon já defende que Moi-
concebido como a Torah e como um sés, enquanto legislador, mostra,
receptáculo [vessel]”12. Na verdade, o primeiro, “o modelo das leis que es-
platonismo se mostra mais marcante creverá”, sendo seu primeiro livro
no Talmud do que em Fílon, quando concebido “como um prólogo das leis,
podemos analogizar a Torah com o que se deve aproximar”, por analogia,
Logos enquanto totalidade das Idéi- “dos prólogos que os legisladores an-
as: tigos faziam preceder suas legisla-
ções”.15
De qualquer modo, todo o caráter
demiúrgico da Torah não é ex- Desse modo, o livro Gênesis acaba
presso por ele [Rabi Judah bar se mostrando como uma “história do
Il’ai] de maneira ativa, como na Logos”, como uma descrição das coi-
Sabedoria de Salomão, mas ape- sas inteligíveis... (Seria esta a expli-
nas passivamente, pelo que so-
cação de Fílon para o fato de a Torah
mente Deus é o criador: “Deus
considerou a Torah e criou o mun- (Lei) não ter início com a narração de
do”.13 sua entrega ou com fatos diretamente
correlatos, já que isto se refere ao
A Torah é o projeto [blueprint] do mundo sensível, enquanto episódio
mundo no qual Deus olhou e criou inserido no tempo, parte da História?)
o mundo. Esta declaração é influ- Nesse caso, é sobretudo no comen-
enciada por Fílon, que considera a tário das leis que presidem a criação
Torah como o mundo inteligível, do mundo que se faz a ponte com o
após cujo modelo este mundo foi platonismo. O próprio Fílon nos obri-
criado. (...) R[abi] Hoshaiah apos-
ga a tal comparação...
sou-se deste termo [artesão, de-
miurgo], mas somente no sentido
de uma ferramenta ou instrumen- II. Platonismo e estoicismo na
to.14 cosmogonia filônica
11
Cf. 1976, p. 50-51, 54, 60-61, 69-72. V. Bréhier, após discorrer sobre a origi-
FÍLON, 1961a, §§27-37, p. 159-165. nalidade do Deus transcendente
12
Id., ibid., 1976, p. 51. postulado por Fílon, relaciona uma
13
Id., ibid., p. 60, citando o midrash Tanchu- série de passagens dispersas por
ma (ed. Buber), “B’re’shith”, 5.
14 toda sua obra que reproduzem (por
Id., ibid., p. 70. Outros, todavia, viam a To-
rah como a matéria primordial do universo. “E vezes, textualmente) os trechos mais
desde que a Torah pode ser ambos, receptá- importantes de uma vasta porção do
culo [vessel] e material para a criação, deve Timeu (de 27 c a 41 a), apesar de,
haver um poder secreto armazenado em suas muitas vezes, serem encontradas al-
letras” (p. 71); é o que, na opinião de Efros,
deduzem os hermeneutas. Sobre a identifica-
ção entre a Torah, o Logos e o “Princípio”, v. questão é tratada de maneira resumida, mas
KAHN, nota complementar nº 26 a De confu- primorosa e eficiente.
sione linguarum (1963d, p. 179-180), onde a 15
BRÉHIER, 1950, p. 24. Cf. FÍLON, 1961a,
§§1-3, p. 145 (in LEWY, 1969, p. 27).
tão era real à custa deste mundo de só é possível à alma inteira e definiti-
reflexos e cópias, de modo que, on- vamente purificada, purificação esta
tologicamente, há somente um mun- entendida, por Fílon, como “a supres-
do; outrossim, suas idéias eram com- são da vida do corpo e das paixões e
pletamente inertes, como pinturas em de toda a parte irracional da alma, a
um sonho”. O dualismo ontológico inteligência se absorvendo então em
dos dois mundos, o físico e o metafí- seus objetos próprios, que são os in-
sico, não aparece na filosofia grega teligíveis”33, pois “o mundo inteligível
ou no paganismo, tendo sua origem só pode ser alcançado se se aban-
no Judaísmo: “na Bíblia nós temos a dona este mundo sensível e visível”34
primeira proclamação de dois mun- – em ambos os casos, trata-se de
dos ativos”.31 uma graça recebida em função e na
medida exata de desapego ao corpo,
No entanto, as distinções não se res- ao sensível. O propósito mesmo do
tringem à mera dependência do inte- homem é este “retorno à sua origem
ligível em relação ao demiurgo, pelo celestial”, idéia também “expressa
que a identificação feita por Fílon se pela noção de que a vida contempla-
nos mostra como simples aproxima- tiva é o mais elevado fim do ho-
ção, mais do que sincretismo. A mais mem”.35
marcante dessas distinções remete à
questão epistemológica, que é tam- Nesse caso, o retorno da alma ao
bém uma divergência de princípio. sensível (metempsicose) implicaria
imperfeição e, por conseguinte, inca-
III. O abismo epistemológico: pacidade mesmo de apreensão das
contemplação X revelação e as- Idéias em si mesmas, mas Fílon se
cese afasta ainda mais de Platão, e parece
rejeitar de saída a própria possibili-
Como bem nota Bréhier,32 não se in- dade de um segundo nascimento na
tui as Idéias pela razão, mas é Deus sensibilidade, uma vez que diz que
a revelá-las aos profetas, o que é “esperando aqueles que vivem à ma-
uma graça, pois são, ordinariamente, neira dos ímpios estará a morte eter-
incognoscíveis a quem vive no mun- na”36. Esse retorno ao mundo divino,
do sensível. O mundo inteligível não em Fílon como na teologia bíblica,
é um mundo de meras formas exem- consiste em uma promessa, em um
plares e noções inatas, gravadas no presente de Deus, não em uma ne-
inconsciente e passíveis de redesco- cessidade, como aparecia em Platão,
berta por meio de uma reminiscência, pelo que não encontramos explicitada
nem constituem meio de conheci-
mento das essências pela alma li- 33
Ibid., p. 190; v. também p. 204-205. V.
berta temporariamente da prisão cor- FÍLON, 1996a, §9, p. 137 (in LEWY, 1969, p.
poral, como nos diz Platão em diálo- 72); 1964, §33, p. 49.
34
FÍLON, 1962b, I, §186 (fim), p. 101.
gos como o Mênon, o Fedro, o Fédon 35
Cf. GUTTMANN, 1964, p. 27; FÍLON,
e A república. Seu acesso, fora o 1961a, §54, p. 175/177 (in LEWY, op. cit., p.
caso da espontânea revelação divina, 53-54); 1958a, §5, p. 97; 1996a, §47 (início),
p. 159; 1996b, §68, p. 317; 1953a, I, §86, p.
54; III, §11, p. 195-196.
31 36
1976, p. 8. 1958c, §39 (fim), p. 351. V. comentário de
32
Cf. op. cit., p. 152-153. Wolfson a este trecho: op. cit., I, p. 409.
diz uma palavra acerca de uma ações à sua vontade guiada pelo
meditação sobre a fraqueza hu- bem.42
mana, sobre as resoluções a to- Portanto, é como o retorno ao Paraí-
mar, sobre a gravidade daquilo so, o reencontro da própria natureza
que o Cristianismo chamará de inteligível e imortal.
pecado. O arrependimento é para
ele exatamente o que significa o Identificar o logos reto [orthos lo-
grego metanoia: é uma modifica- gos] com nous (o que parece ser
ção de espírito, é uma outra visão, bem o pensamento estóico) seria
uma visão íntegra do mundo que dar ao homem o poder de produzir
substitui uma visão corrompida. O por si mesmo toda virtude e todo
arrependimento, em seu sentido bem; é então necessário separar o
fundamental, é o reconhecimento, logos do homem como um princí-
a confissão e a reverência que o pio superior e transcendente ao
homem dedica a Deus, ao Deus qual deve ascender; o homem não
único, que é preciso adorar esque- está no logos e na sabedoria se-
cendo-se dos ídolos, ao Deus de não em potência; crer que sua in-
luz que é preciso apenas contem- teligência pode por si mesma
plar esquecendo-se das brumas contemplar os inteligíveis, sua
dos mitos imaginativos. O arre- sensação atingir os sensíveis, é
pendimento é um retorno à memó- afastar-se o mais possível da ra-
ria daquilo que é digno de ser lem- zão correta. Compreende-se então
brado (...). Além disso, sendo es- a necessidade de uma razão ideal
pecificamente humano, o arrepen- e transcendente ao homem que
dimento só é realmente uma virtu- constitui o propósito de sua ativi-
de no momento em que faz apare- dade e o fim de seu progresso.
cerem para a alma a majestade e Mas quando esse logos divino for
a bondade do Deus único, de tal atingido pelos perfeitos, não have-
maneira que a alma não pensa rá mais diferenças entre a alma
mais em sua falta, mas, sim, é in- perfeita e o logos; ela não será go-
teiramente arrebatada nessa pre- vernada pelo logos, ela mesma
sença reencontrada do Criador e será logos. Por outro lado, para
Pai de todas as coisas. É por isto tornar possível este progresso, é
que Fílon escreve que o arrepen- necessária ao homem uma facul-
dimento é o apanágio do homem dade racional (dynamis loghikè) e
sensato, ou seja, que é uma sabe- ao menos uma possibilidade de
doria. obtê-lo; é neste mais baixo grau
Compreende-se então que haja que se coloca a sabedoria huma-
um arrependimento essencial, que na, que é o germe de bem de que
comanda todos os outros, pois nenhum ser é privado, a noção
aquele que retornara a Deus, de- inata ou comum do bem que faz
sertará imediatamente do campo com que o homem não possa des-
do vício para passar àquele da culpar suas faltas por sua ignorân-
virtude; da desordem de sua vida cia; ela é um sopro leve (pnoè) e
passada, ele voltará para a mais não o sopro poderoso (pneuma)
bela ordem, a mais coerente e que anima o homem ideal; mas ela
harmoniosa, a ordem desejada por não tem sentido senão com res-
Deus. Suas palavras ajustar-se-ão
ao seu julgamento correto, suas
42
ARNALDEZ, “Introdução” a De virtutibus
(1962c, p. 22-23). O trecho desta obra dedi-
cado ao arrependimento corresponde aos
§§175-186 (p. 127-133).
peito à sua origem, o logos divi- Lá, sim, se contempla a presença di-
no.43 vina.
Por isso, como cada alma tende a Quando Abraão atingiu o estágio
progredir moralmente e tornar a ser final de realização mística marcado
pura e imortal como os logoi, como por sua aquisição de um novo
os anjos, puros e incorruptíveis por nome, ele entrou na verdadeira
natureza, cada uma também tende a Sabedoria, tornou-se o tradicional
tornar-se, por assim dizer, também Sophos, tornou-se puro “intelecto”,
uma Idéia, ou, melhor dizendo, ser às que é uma “virtude mais perfeita
do que aquela que é repartida com
Idéias incorporada.
a espécie humana”.46
Segundo a teoria do microcosmo,
Nesse caso, é tolerado o “culto” do
o mundo não é mais apenas o todo
de que o homem é uma parte, mas mundo, embora não como divindade,
o modelo que ele deve esforçar-se mas enquanto intermediário entre o
por imitar; ele não é por natureza homem e Deus, tal como eram acei-
microcosmo, mas assim se torna tos os cultos a Logos e Sophia –
pela sabedoria; então as relações mesmo porque o culto perfeito a
numéricas que constituem a ordem Deus é, para Fílon, impossível ao
do mundo se reproduzem no indi- homem (1996b, §84, 325). Não há
víduo [cf. FÍLON, 1961a, §§117- contradição, pois Logos e logoi – com
125, p. 221-225; 1962a, I, §§8-16, os quais Sophia é por vezes identifi-
p. 43-47].
cada – são como seres intramunda-
Mas assim como a alma mais ele-
vada na ascensão rumo a Deus nos, imanentes a todas as coisas.47
não mais obedece aos logoi, e sim Em síntese, temos que
os tem por companheiros de es-
trada, o sábio verdadeiro não é em Platão, é por uma dialética
mais inferior ao mundo, mas se gradual que a inteligência se eleva
torna igual a ele em dignidade [v. às Idéias; Fílon, ao contrário, des-
id., 1958d, §37, p. 25].44
também podem ser encontradas em De gi-
Nesse contexto, a emigração de gantibus, §§60-64 (1963b, p. 49-53 [§§60-61
Abrão de Ur para Canaã é entendida in LEWY, 1969, p. 36]), e De cherubim, §§3-7
como das ciências e da divinização (1963a, p. 19/21). V. também FÍLON, 1962b,
dos astros (caldeísmo) para a religião II, §§255-258, p. 225/227.
46
GOODENOUGH, 1988, p. 28, citando
verdadeira, do sensível ao inteligível, FÍLON, 1953a, III, §43 (p. 235-238). Abrão
o mundo das idéias incorruptíveis.45 tem seu nome mudado para Abraão em Gê-
nesis, 17:5, pouco após haver-lhe sido con-
43
firmada a promessa da terra de Canaã
BRÉHIER, 1950, p. 95-96. V. FÍLON, (15:18). V. também FÍLON, 1962a, III, §§83-
1962a, I, §§33 et seq., p. 57 et seq. 84, p. 217/219; 1963a, §§4 e 7, p. 21; 1963b
44
BRÉHIER, op. cit., p. 173. V. crítica de Gu- (De gigantibus, §§62-64), p. 51/53; 1964,
ttmann ao misticismo filoniano: 1964, p. 28- §§66-76, p. 63-67; 1959a, §§82-88, p. 45-49.
29. Sobre a aplicação por Fílon da teoria do 47
Cf. BRÉHIER, op. cit., p. 174; v. também p.
microcosmo no que se refere ao dualismo 95-96, 100-101. Sobre a identificação entre
mente/corpo, ou mesmo à divisão das almas Logos e Sophia, com as respectivas referên-
em racional e irracional, v. p. ex.: 1961a, §82, cias em Fílon, v. ibid., p. 113, 115 e 116. V.
p. 197, e 1996b, §§230-236, p. 397-401; v. também WOLFSON, op. cit., I, p. 255 et seq.,
também WOLFSON, 1982, I, p. 424-425. que ainda traz referências bíblicas que legiti-
45
Cf. BRÉHIER, 1950, p. 100, 173; FÍLON, mam tal assimilação, considerando mesmo
1996a, §§176-198, p. 235-249. Alusões a isto que se tratam de dois termos intercambiáveis.
inferior ao das Idéias, embora sejam cial de Moisés, que (identificado por
inteligências puras,57 incorpóreas, Fílon com o próprio Logos, ou Ar-
imortais e incorruptíveis, pois já esta- canjo: 1953a, IV, §8, 282) é elevado
riam mais próximos da alma racional acima de todas as espécies e gêne-
do homem, ou inteligência humana, ros, alcançando a Presença Divina e
que se contrapõe à alma irracional, sendo posto por Deus ao Seu lado
que é composta, corpórea, mortal e como a mais pura inteligência.61
corruptível.58
Abramos, então, um parêntesis: Em
Pois bem. Haveria em Fílon três ní- última instância, essa purificação pela
veis de ascese relativos a três níveis qual se renasce para a imortalidade
de virtude. O primeiro consistiria na está ligada ao caráter monádico da-
simples libertação da alma racional, quilo tudo que Fílon se permite de-
que passaria a viver em um mundo nominar “imagem de Deus”. A unici-
divino (Céu) dentre outras almas in- dade, a simplicidade do Logos, do
corpóreas e os anjos que lhes são mundo inteligível como um todo, bem
semelhantes, à diferença de que es- como de cada Idéia separadamente,
tes últimos, por opção, jamais encar- da alma racional, da inteligência pura
naram59. Este seria o caso dos pa- e sem mistura etc., implica que haja
triarcas Abraão e Jacó, bem como do uma certa indistinção entre si. Por
profeta Elias e, provavelmente, de mais que Fílon procure hierarquizar
todas as almas justas, que passariam qualitativamente esses “modelos” e
a viver junto ao povo de Deus. En- “imitações” como tais – talvez por
tretanto, este não é o lugar de todas uma questão didática, retórica ou de
as almas imortais. Isaque – que, para organização expositiva –, tal empe-
Fílon, personifica a perfeição da nho não pode produzir nada além de
alma, pois é o filho da virtude, simbo- metáforas, uma vez que o critério le-
lizada por Sara –, o sábio autodida- gitimador de qualquer hierarquização
ta,60 não é simplesmente incorporado não pode ser aplicado com rigor aqui
ao povo de Deus, mas à sua raça ou em razão mesmo do que Fílon define
ao seu gênero (ghenos), o que Fílon como imortalidade: ausência de qua-
entende como uma descrição das lidades – obviamente, não no mesmo
Idéias, uma espécie de idéia que está sentido em que a matéria é destituída
acima de suas hipóstases; não é de qualidades, mas no sentido de
mais uma simples alma, mas a pró- que, enquanto mônadas, não podem
pria Idéia que lhe serve de modelo. ser distintas senão por contraste,
Aqui, sim, já temos a noção de incor- como sugeriremos mais à frente, haja
poração ao mundo inteligível, como visto que suas propriedades não são
Fílon diz haver acontecido com Eno- manifestas senão no plano da ima-
que. Finalmente, temos o caso espe- nência, através de suas reproduções
sensíveis, ou representações. Afinal,
57
São da mesma natureza da mente, ou in-
telecto. Cf. FÍLON, 1963b (De gigantibus, §9), 61
Cf. WOLFSON, op. cit., I, p. 400-404. Em
p. 27; WOLFSON, op. cit., I, p. 370. FÍLON: 1958a, §5-10, p. 97/99/101; 1953a, I,
58
V. FÍLON, 1962a, I, §32, p. 57; 1963b (De §86, p. 54; III, §11, p. 195-196; 1959b, II,
gigantibus, §§12-14), p. 27. §288, p. 593 (in LEWY, 1969, p. 79). Na Bí-
59
Cf. id., 1963b (De gigantibus, §12), p. 27. blia: Gênesis, 5:24; 25:8; 49:33; 35:29; Deute-
60
Cf. BRÉHIER, op. cit., p. 143, 234-235, 278, ronômio, 34:10-11 (Fílon baseia-se em 5:31);
n. 5. V. também p. 27. II Reis, 2:11.
lon, que são aquelas criadas, feitas las quais Fílon designa o Logos, ain-
paradigmas (Idéias, no sentido platô- da que não a considerando perfeita.70
nico) ou causas (Potências) do mun-
do sensível e constitutivas do mundo Esta distinção apresentada por Wol-
inteligível. Há também aquelas incri- fson, embora pareça extravagante no
adas, eternas, uma vez que são os sentido de parecer querer dar conta
pensamentos de Deus como um de uma contradição textual a qual-
todo, os quais, como Ele, existem quer custo, com efeito, parece explí-
desde sempre, pois seria contraditó- cita em Fílon quando este escreve
rio se o Deus de Fílon não pensasse que Deus, “havendo meditado sobre
desde a eternidade. fundar a grande cidade, concebeu
primeiramente seus tipos, [a partir]
Wolfson admite que não se trata da dos quais realizou, ajustando-os, o
interpretação comum dentre os estu- mundo inteligível, para produzir, por
diosos de Fílon, segundo os quais sua vez, o mundo sensível, servindo-
todo o inteligível existe apenas na se do primeiro [o inteligível] como
mente de Deus, ou seja, não foram modelo”71. Ou seja, Deus já pensa
objetivados, “projetados para fora” quando começa a conceber os tipos
dela. O autor atribui esse ponto de a serem hipostasiados. Estes, orde-
vista ao fato de tais estudiosos darem nados segundo Sua Vontade em um
mais atenção às concepções corren- mundo inteligível que não existia an-
tes no tempo de Fílon, como é o caso tes disto, passam a servir como pa-
de Bréhier, do que ao fato de que a radigmas ao mundo sensível.72
teoria da existência das Idéias como
seres reais apareceria posteriormen- Desse modo, o próprio termo “inteli-
te, sendo, portanto, possível que Fí- gível” adquire duas dimensões: (1) a
lon já as concebesse desse modo, e que, simplesmente, se opõe ao que é
é isto o que Wolfson procura mostrar sensível, porém passível de apreen-
com base nos próprios textos de Fí- são pela razão humana; e (2) a que
lon. Além desses dois estágios, o da escapa mesmo a este tipo de inteli-
eternidade na mente de Deus e o da gência, sendo concebível apenas
perpetuidade fora dela, ambos no pelo intelecto divino, ou que, sim-
plano da transcendência – primeiro, plesmente, consiste em objeto de
absoluta; depois, relativa –, haveria uma mente pensante (logos, como
um terceiro, que seria o da imanên- eqüivalente a nous) que precedera a
cia, já no mundo sensível criado.69 Os mente humana, ou seja, a de Deus –
três estágios de Sophia (e do Logos) o Logos –, pelo que prescinde da ra-
podem ser discernidos ainda no zão humana e do próprio mundo inte-
deuterocanônico Sabedoria de Salo- ligível.73
mão, como mostra Wolfson mais adi-
ante. Kahn é um comentador que não
só aceita como aplica a interpretação 70
Cf. nota complementar nº 26 a De confusi-
de Wolfson ao tratar das formas pe- one linguarum (1963d, p. 176-182); sobre os
três estágios das potências, nº 31, p. 184-186.
71
69 1961a, §19, p. 153/155.
Cf. ibid., I, p. 239-240, 356. 72
Cf. WOLFSON, 1982, I, p. 209-210. V. p.
223, 226 et seq.
73
Cf. id., ibid., p. 228-230. Sobre a relação
entre logos e nous, v. p. 230-231, 245-247.
incriados, não são exatamente Idéias que não se tornaram reais, existen-
no sentido platônico pois não têm re- tes. Somente Deus, sendo superior
alidade efetiva, instanciada, ou hi- ao Logos e a todos os atributos, é
postasiada; (2) pela Vontade, Deus, a capaz de conhecer a Si, pois qual-
partir do (ou no) Logos, cria o mundo quer coisa, qualquer qualidade que
inteligível, formado por idéias e cau- sejamos capazes de imaginar é inte-
sas, ou potências, ainda diversas das ligível ou produto de uma inteligibili-
platônicas pois não são reais desde dade, enquanto que o pensamento
sempre, mas perpétuas desde sua de Deus inclui mundos possíveis
criação e ordenação pelo demiurgo apenas para Ele, absolutamente
sob os princípios da Bondade e da ininteligíveis para nós, inapreensíveis
Justiça; (3) pelo Verbo, pela Palavra, mesmo para a mais perfeita das al-
ou Logos, Deus faz emergir à visibili- mas, quiçá para o próprio Logos.
dade o mundo inteligível, manifesto Nesse caso, apenas Deus, Ele-
no mundo sensível. Nesse esquema mesmo, é transcendência absoluta; a
também vale notar o caráter inteligí- transcendência do Logos é mera-
vel, ou espiritual, psíquico, da Vonta- mente relativa ao mundo de que é
de, em contraposição ao caráter sen- modelo, “o melhor possível”, onde se
sível, estético – ou mesmo corporal, manifesta como imanência, permitin-
somático – da Fala, que, neste con- do mesmo sua continuidade, ou sub-
texto, não é para Fílon mais do que sistência. Qualquer coisa inimaginá-
uma metáfora, a qual podemos notar vel que venhamos a “intuir” ou pre-
a que se deve, a saber, à relação di- senciar, não é, pois, realmente im-
reta com a criação da realidade sen- possível ou inconcebível neste mun-
sível. No entanto, a questão da apli- do, pelo que Fílon nega o milagre en-
cação por Fílon do dualismo men- quanto “coisa de outro mundo”,79 por
te/corpo à linguagem consiste em assim dizer. Afinal, não há outro
tema por demais complexo para que mundo real existente; simplesmente,
o tratemos aqui em meras linhas ge- não temos acesso cognitivo a toda a
rais. realidade, enquanto Deus conheceria
mesmo o “irreal”, e poderia mesmo o
Por fim, o mesmo esquema aponta “impossível”.
para outro tipo de diferença que há
entre Deus e Seu Logos. Este último 79
V. id., ibid., I, p. 351-354.
unifica tudo aquilo que o profeta há
de conhecer. No entanto, o próprio
Deus ainda escapa, pois mesmo o
Logos transcendente agrega as Idéi-
as relativas ao nosso mundo efetivo,
não incluindo aquelas outras “idéias”
Referências Bibliográficas
ARISTÓTELES. De anima (III, 4-5). Em grego e português. In: ZINGANO, MARCO. Ra-
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BÍBLIA. Português. Bíblia (cânon católico): tradução ecumênica [TEB]. Em CD-ROM para
Windows 95 ou mais recente, contendo introduções, mapas e ilustrações, comentários
em vídeo, dicionário, notas e quadros de equivalências, desenvolvido pelo Laboratório
Multimídia do Rio Datacentro/PUC-Rio. São Paulo: Edições Loyola; Rio de Janeiro: Sony
Music Entertainment, 1997.
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