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O potencial terapêutico das células-tronco ... Paula S, et al.

ARTIGO DE REVISÃO

O potencial terapêutico das


células-tronco em doenças do
sistema nervoso
The therapeutic potential of stem cells
for nervous system disease

SIMONE DE PAULA*
MICHELE F PEDROSO**
ANDRÉ DALBEM***
ZAQUER SM COSTA****
AFFONSO VITOLA*****
CRISTIANE VW BAES*****
JEFFERSON L B DA SILVA******
MAURÍCIO A G FRIEDRICH*******
JADERSON C DA COSTA********

RESUMO ABSTRACT
Objetivo: Apresentar as evidências científicas do Objective: To present scientific evidence of stem cell
transplante de células-tronco em cinco doenças do sis- transplantation in four nervous system diseases: neonatal
tema nervoso: anóxia neonatal, epilepsia, acidente anoxia, epilepsy, stroke, Parkinson’s disease and peripheral
vascular cerebral, doença de Parkinson e lesão de ner- nerve injury.
vo periférico. Source of data: Bibliographic review was performed
Fonte de dados: Revisão bibliográfica utilizando through Medline.
o Medline. Summary of findings: Stem cells transplantation is
Síntese de dados: O transplante de células-tron- an important tool in repairing disorders of the central
co é uma importante ferramenta na reparação de dis- nervous system. Experimental studies have demonstrated
túrbios do sistema nervoso. Estudos experimentais regeneration and reconstruction of neuronal circuits
demonstram que a regeneração e a reconstrução do through cell therapy. It has been shown that stem cells are
circuito neuronal é possível através da terapia celu- able to differentiate into neurons and glia. Experiments
lar. As células-tronco têm demonstrado uma capaci- involving stem cell transplantation in animals models of
dade de se diferenciar em neurônios e glia. Os experi- neonatal anoxia, stroke, epilepsy, Parkinson’s disease and
mentos utilizando o transplante de células-tronco em peripheral nerve injury have also shown functional
modelos animais de anóxia neonatal, isquemia cere- improvement of treated animals.

* Fisioterapeuta. Mestranda em Saúde da Criança, PUCRS.


** Fisioterapeuta. Doutoranda em Clínica Médica-Neurociências, PUCRS.
*** Médico Neurologista do Serviço de Neurologia do Hospital São Lucas, PUCRS. Doutorando em Clínica Médica-Neurociências,
PUCRS.
**** Bióloga. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Fisiologia, UFRGS.
***** Acadêmicos de Medicina. Bolsistas de Iniciação Científica/PUCRS-CNPq.
****** Professor Livre Docente em Cirurgia. Especialista em Cirurgia da Mão e Microcirurgia. Responsável pela Cirurgia da Mão e
Microcirurgia do Hospital São Lucas da PUCRS.
******* Doutor em Neurociências, PUCRS. Chefe do Programa de Doenças Neurovasculares da PUCRS.
******** Professor Titular de Neurologia da Faculdade de Medicina. Diretor do Instituto de Pesquisas Biomédicas, PUCRS.

Scientia Medica, Porto Alegre: PUCRS, v. 15, n. 4, out./dez. 2005 263


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bral, epilepsia, doença de Parkinson e lesão de nervo Conclusion: In spite of scientific evidence favorable to
periférico mostraram melhora funcional nos animais the use of stem cells in neurological disorders, there is still
tratados. much to be done in order to understand the biological
Conclusões: Apesar das evidências científicas fa- aspects of stem cells, including the signals that determine
voráveis ao uso de células-tronco em doenças neuro- their proliferation and differentiation, as well as the
lógicas, consideráveis avanços necessitam ser feitos characteristics of their responses when transplanted to an
para compreender a base biológica das células-tronco, injured encephalic area.
incluindo os sinais que determinam sua proliferação e KEY WORDS: STEM CELLS; NERVOUS SYSTEM; STEM
diferenciação, e a caracterização de suas respostas quan- CELLS TRANSPLANTATION; CELL DIFFERENTIATION; BRAIN.
do transplantadas em uma área encefálica lesada.
UNITERMOS: CÉLULAS-TRONCO; SISTEMA NERVOSO;
TRANSPLANTE DE CÉLULAS-TRONCO; DIFERENCIAÇÃO
CELULAR; CÉREBRO.

INTRODUÇÃO go da vida e estão presentes na maioria dos teci-


dos, tais como, o sangue, a pele, o fígado, o cora-
As células-tronco representam uma unidade ção e o cérebro. Estas células têm sido utilizadas
natural do desenvolvimento embrionário e da terapeuticamente por muitos anos no tratamen-
reparação tecidual e são um subconjunto de cé- to das leucemias, através do transplante de me-
lulas imaturas, indiferenciadas e não-especiali- dula óssea(3).
zadas que apresentam a capacidade de se auto- O sistema nervoso, diferentemente de muitos
regenerar e de originar diferentes linhagens outros tecidos, tem uma capacidade limitada de
celulares(1). auto-reparação. As células nervosas maduras
Recentes descobertas revolucionaram a bio- apresentam-se incapazes para regeneração, e as
logia das células-tronco e têm demonstrado o células-tronco neurais, embora elas existam, tem
potencial clínico destas células em uma varieda- uma limitada habilidade para gerar neurônios
de de doenças humanas. As células-tronco têm funcionais em resposta a uma lesão. A maioria
sido encontradas em órgãos como, o cérebro e os dos tratamentos das lesões neuronais limita-se ao
músculos, previamente conhecidos pela carência alívio dos sintomas e a prevenção de danos adi-
de progenitores celulares e de potencial rege- cionais. Por esta razão, há grande interesse na
nerativo(1). O cérebro do recém-nascido, por possibilidade de reparação do sistema nervoso
exemplo, apresenta a capacidade de produzir por transplante de células-tronco(4).
novos neurônios, especialmente, após estímulos Nesta revisão, apresentar-se-á as evidências
isquêmicos e/ou hipóxicos. Alguns estudos de- científicas para o transplante de células-tronco
monstraram um aumento significativo de em cinco doenças do sistema nervoso: anóxia
neurônios na zona subventricular e na área lesa- neonatal, acidente vascular cerebral, epilepsia,
da do encéfalo de ratos submetidos à lesão doença de Parkinson e lesão de nervo periférico.
hipóxico-isquêmica neonatal(2).
Vários tipos de células-tronco têm sido iden-
ASFIXIA NEONATAL
tificados no embrião, no feto e no tecido adulto.
As células-tronco embrionárias são derivadas do A anóxia ou asfixia neonatal é definida como
blastocisto e são consideradas totipotentes, ou uma agressão produzida ao feto ou recém-nasci-
seja, apresentam a capacidade de originar mais do pela falta de oxigênio ou de perfusão tissular
de 250 tipos diferentes de linhagens celulares. As adequada, que geralmente se associa com acidose
células-tronco fetais representam as células pro- láctica e hipercapnia(5).
genitores originárias de órgãos fetais em desen- Eventos hipoxêmicos no período neonatal são
volvimento. O uso de células-tronco fetais ou determinantes de morbidade neurológica e mor-
embrionárias origina sérias questões biológicas, talidade nos recém-nascidos, causando compli-
éticas e legais limitando a sua utilização na pes- cações neurológicas a longo prazo, tais como, a
quisa clínica(3). paralisia cerebral, a epilepsia e o retardo men-
Células-tronco adultas ou somáticas são res- tal(5). Pouco é conhecido sobre o uso de células-
ponsáveis pelo reabastecimento tecidual ao lon- tronco no dano cerebral neonatal. Os primeiros

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estudos utilizaram células-tronco neurais em lógicas, comportamentais e diversos tipos de pa-


modelo animal de encefalopatia hipóxico- ralisias(10).
isquêmica em ratos. Os autores observaram que O transplante de células-tronco tem sido des-
na região de penumbra da lesão, as células pro- crito como uma terapia potencial para o trata-
venientes do animal doador se transdiferen- mento dos déficits decorrentes do AVC, devido
ciaram em oligodendrócitos (4%) e neurônios à grande capacidade de diferenciação destas cé-
(5%), que são os tipos celulares mais suscetíveis lulas e a possibilidade de prover suporte trófico
aos danos hipóxico-isquêmicos. Os resultados para a sobrevivência e o reparo tecidual assim
também sugerem que o transplante de células- como a recuperação funcional(11).
tronco restaura parcialmente algumas funções Dados experimentais evidenciam que trans-
cognitivas e motoras(6). plantes neurais podem se diferenciar e formar
Pesquisadores chineses também estão reali- conexões com melhora cognitiva e motora em
zando estudos sobre a terapia celular em huma- animais submetidos à isquemia cerebral. Estas
nos e em modelos animais de lesões hipóxico- células migram da corrente sanguínea para a área
isquêmicas perinatais. No estudo de caso de Luan isquêmica e pequena porcentagem expressa
et al. com um paciente com seqüela grave de pa- marcadores neurais(11).
ralisia cerebral, observou-se um melhora no pa- Estudos com células humanas administradas
drão de movimento e na inteligência, após trans- de forma intravenosa em isquemia cerebral de-
plante de células-tronco neurais(7,8). monstram que estas células sobrevivem, migram
Recentemente, Carrol et al.(9) observaram me- e reduzem o volume do infarto, recuperando a
lhora de 25% no equilíbrio de ratos submetidos a lesão isquêmica e reduzindo os déficits compor-
um modelo experimental de paralisia cerebral, tamentais(12).
quando comparados a ratos controles. Neste es- A associação do tratamento com células-tron-
tudo, sete dias após a lesão, células-tronco foram co humanas e fatores de crescimento resulta em
injetadas diretamente no encéfalo de 22 animais, aumento da angiogênese com diminuição da
através de um orifício no crânio. Testes com- atrofia hemisférica e conseqüente melhora fun-
portamentais 14 dias após o transplante mostra- cional em ratos submetidos à isquemia cerebral,
ram significativa recuperação. Aproximadamen- sugerindo uma ação sinérgica entre estas células
te, 1 a 2% das células transplantadas sobre-
e os fatores de crescimento(13).
viveram.
Apesar dos importantes resultados da tera-
No entanto, ressalta-se que os estudos cita-
pia celular em modelos experimentais, o meca-
dos apresentam algumas limitações, tais como,
nismo de ação destas células é ainda o foco de
número amostral pequeno, falta de cegamento e
estudo de diversos pesquisadores. A principal
falha na descrição dos instrumentos utilizados.
hipótese está relacionada a grande plasticidade
Em nosso Laboratório de Neurociências está em
destas células, de se diferenciar em células idên-
andamento um estudo experimental cego e
ticas as do tecido a ser tratado. Evidências mais
randomizado sobre o uso de células-tronco da
recentes sugerem que o papel terapêutico destas
medula óssea em um modelo de asfixia neonatal
em ratos recém-nascidos. células deve envolver outros mecanismos além
da plasticidade. Um dos possíveis mecanismos
que tem sido proposto sugere que as células
ACIDENTE VASCULAR CEREBRAL transplantadas poderiam liberar na região lesa-
Acidente Vascular Cerebral (AVC) significa da fatores tróficos e/ou fatores moduladores de
o comprometimento súbito da função cerebral fenômenos inflamatórios que podem estimular e
causado por inúmeras alterações histopatoló- a capacidade de regeneração do tecido lesado(14).
gicas que envolvem um ou vários vasos sanguí- O primeiro estudo clínico com terapia celular
neos intracranianos ou extracranianos. Aproxi- em humanos com AVC incluiu 12 pacientes tra-
madamente 80% dos AVC são causados por um tados com implante de neurônios derivados de
baixo fluxo sanguíneo cerebral (isquemia) e um teratocarcinoma. Alguns pacientes obtiveram
outros 20% por hemorragias tanto intraparen- melhora funcional apesar do estudo não ter sido
quimatosas como subaracnoídeas. O AVC é a ter- desenhado para avaliá-la, e vários destes pacien-
ceira causa de mortalidade e a principal causa de tes mostraram aumento da atividade metabólica
incapacitação em adultos, podendo resultar em avaliados por PET SCAN nas áreas implantadas
importantes disfunções sensoriomotoras, neuro- 6 e 12 meses após. Na autópsia de um paciente

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após 18 meses verificou-se a sobrevivência de mentos involuntários denominados de disci-


células neuronais transplantadas(15). nesias(19).
O cérebro isquêmico dispara uma relevante Do ponto de vista clínico, o desenvolvimento
resposta inflamatória. O tecido cerebral isquê- de terapias baseadas em células-tronco para o tra-
mico induz a expressão de fatores quimiotáticos, tamento da DP ainda encontra-se em um estágio
facilitando a migração de CT para o local(16). No muito precoce. Neurônios dopaminérgicos têm
Hospital São Lucas da PUCRS foram tratados re- sido gerados de células-tronco provenientes de
centemente 20 pacientes com extensas lesões diversos tecidos, entretanto, a capacidade destas
isquêmicas no território da artéria cerebral mé- células de sobreviver ao transplante em modelos
dia entre o terceiro e sétimo dias de evolução. A animais, reinervar o estriado, liberar dopamina
metodologia utilizada foi o transplante autólogo in vivo e reverter as alterações motoras e com-
de células mononucleares da medula óssea inje- portamentais semelhantes às encontradas na DP
tadas intra-arterialmente na origem da artéria tem sido até o momento pequena. Alguns gru-
cerebral média no lado infartado. Os objetivos pos vêm obtendo sucesso com esta técnica. Kim
foram testar a segurança e a eficácia do método. et al.(20) observaram melhora dos sintomas
Resultados preliminares em 14 pacientes eviden- parkinsonianos em ratos que receberam células-
ciaram que o método foi seguro, não havendo tronco embrionárias, com a geração de neurônios
nenhuma complicação neurológica ou clínica re- dopaminérgicos que detinham propriedades
lacionada ao procedimento e possivelmente efi- eletrofisiológicas e bioquímicas semelhantes às
caz, visto que 70 % dos pacientes alcançaram des- células mesencefálicas não-transplantadas.
fechos favoráveis em 3 meses de evolução(17). Es- O comportamento de células-tronco embrio-
tes resultados foram apresentados recentemente nárias neurais transplantadas depende da região
na International Stroke Conference em Orlando- encefálica de origem destas células e do tempo
USA no mês de fevereiro de 2006. de cultivo destas. Habitualmente, os neurônios
gerados a partir destas células são fenotipi-
camente GABAérgicos, ao invés de dopami-
DOENÇA DE PARKINSON
nérgicos(21). O uso de células neurais adultas
A Doença de Parkinson (DP) é uma enfermi- constitui-se numa alternativa ao uso de células
dade neurodegenerativa progressiva associada embrionárias. Já está bem estabelecido que o cé-
inicialmente à perda de neurônios dopami- rebro adulto contém tais células e que em roedo-
nérgicos de uma região localizada no me- res elas respondem à manipulação hormonal e
sencéfalo ventral denominada substância nigra do meio(22). Muito pouco se tem estudado sobre
(SN). Atualmente sabe-se que a DP não envolve o potencial de células-tronco adultas provenien-
apenas uma disfunção neste sistema neuro- tes de medula óssea no tratamento de modelos
transmissor, mas também uma degeneração pro- animais de DP. Nosso grupo vem estudando o
gressiva de regiões encefálicas envolvidas com potencial destas células não só na reversão dos
outros sistemas neurotransmissores como o sintomas parkinsonianos, no modelo de lesão
serotonérgico e o noradrenérgico. A redução da nigral unilateral pela 6-hidroxidopamina, mas
inervação dopaminérgica estriatal está intima- também no manejo das discinesias induzidas
mente relacionada ao surgimento dos sintomas pela utilização de levodopa a longo prazo.
característicos da doença: tremor habitualmente O poder de reconstituição do tecido degene-
de repouso, hipertonia muscular do tipo rígida, rado pelas células maduras pode se mostrar efe-
lentificação dos movimentos (bradicinesia) e ins- tivo não só na DP como em outras condições
tabilidade postural(18). neurodegenerativas/neurotóxicas como Doença
A levodopa, introduzida na década de sessen- de Alzheimer, esclerose lateral amiotrófica e Do-
ta para o tratamento da DP, permanece hoje sen- ença de Huntington (DH). Nosso grupo vem tam-
do a medicação mais efetiva no controle dos sin- bém estudando as alterações bioquímicas e
tomas motores da doença. O uso crônico de eletrofisiológicas estriatais em um modelo neu-
levodopa induz o surgimento de flutuações no rotóxico de DH utilizando o ácido 3-nitropro-
quadro motor, com episódios súbitos de rigidez piônico(23). Entretanto, ainda não foi estabele-
(fenômeno on-off) e resposta gradativamente me- cido o potencial destas células adultas de re-
nos duradoura à medicação (fenômeno wearing- verter as alterações plásticas induzidas por este
off), além de ocasionar o aparecimento de movi- modelo.

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O uso de células-tronco na DP, ao invés de ples do número de crises recorrentes, os ratos tra-
transplantes de tecido nigral embrionário, ofere- tados com CTMO tiveram uma redução do nú-
ce uma série de vantagens como o potencial de mero de crises de cerca de 70% em relação aos
propagação celular em cultura, o que aumenta o animais que não receberam nenhum tipo de tra-
número de células disponíveis para transplante, tamento. Chu et al.(25), transplantaram células-
o fato de tratar-se de transplante autólogo, a ge- tronco neurais humanas em cérebro de ratos
ração de populações de células mais homogê- adultos submetidos a status epilepticus induzido
neas, o potencial de manipulação genética por pilocarpina. Esta pesquisa sugere que estas
(ex. transfecção) destas células previamente ao células possam se diferenciar em interneurônios
transplante, e o maior potencial de migração no GABAérgicos (inibitórios) e diminuir a excita-
SNC, o que permite um reparo mais completo das bilidade neuronal, prevenindo as crises epilépti-
regiões degeneradas. cas recorrentes.

EPILEPSIA LESÃO DE NERVO PERIFÉRICO


A epilepsia é um distúrbio cerebral caracteri- As lesões nos nervos periféricos resultam em
zado por manifestações clínicas recorrentes e es- incapacidade física nos indivíduos acometidos
pontâneas. Estas crises são causadas pelo dispa- que são, em sua maioria, jovens, em plena idade
ro intenso, sincronizado e rítmico, de populações produtiva, determinando grandes repercussões
neuronais no sistema nervoso central. O trata- sociais.
mento é realizado com fármacos antiepilépticos, O princípio da reparação cirúrgica de nervos
mas infelizmente aproximadamente 30% dos pa- periféricos foi estabelecido por Laugier (1864) e
cientes não respondem a esta terapêutica tornan- Hueter (1873), sugerindo a reparação direta do
do-se refratários ao tratamento. Entre as epilep- nervo por aproximação do epineuro. No entan-
sias refratárias, aquelas com origem no lobo tem- to, quando não existe a possibilidade de realiza-
poral são as mais freqüentes(24). ção do tratamento através da anastomose direta,
Considerando que aproximadamente 1/3 dos tem-se optado pelo uso de enxertos. Embora o
pacientes com epilepsia são refratários ao trata- enxerto autólogo seja uma das escolhas no trata-
mento medicamentoso cresce a necessidade de mento de lesões de nervo periférico, essa técnica
desenvolver terapêuticas alternativas. Há um tem apresentado algumas limitações como o ajus-
potencial grande para a terapia com células-tron- te adequado da extensão e do diâmetro do nervo
co no tratamento das epilepsias refratárias, prin- lesado(27). Para resolver tal problema muitas ten-
cipalmente para aquelas que têm um curso pro- tativas tem sido feitas para induzir a regenera-
gressivo pela freqüência de crises associada a ção nervosa no nervo lesado, através do uso de
politerapia. No entanto, ainda é desconhecido se materiais não-biológicos, tais como, o tubo de
as células-tronco reduzem as crises epilépticas ou silicone. Entretanto, a regeneração é lenta e nem
não. Existe a possibilidade de que as células-tron- sempre completa; assim, mais recentemente tem
co transplantadas podem ser benéficas para a re- sido testada a combinação de células de Schwann
dução da hiperexcitabilidade e as crises epilépti- e fatores tróficos com materiais não-biológicos(28).
cas recorrentes. Para o tratamento ser útil, as cé- A plasticidade e a capacidade das células-
lulas implantadas devem preferencialmente res- tronco de medula óssea em se diferenciar em
tabelecer a inibição sináptica, isto é, elas devem outros tipos celulares tal como osteoblastos,
suprimir ou reduzir a atividade epileptiforme(4,25). adipócitos e condrócitos, sob determinadas con-
No estudo apresentado no I Congresso Brasi- dições e mais recentemente, a descoberta do po-
leiro de Células Tronco: Realidade e Perspectiva(26) tencial dessas células em se diferenciarem em
demonstrou-se efeito benéfico no uso de células- células de linhagem neuronal, tem despertado
tronco da medula óssea (CTMO) num modelo grande interesse no seu uso terapêutico em le-
experimental de epilepsia. Neste, a epilepsia sões de nervo periférico(29).
crônica foi induzida pelo modelo do lítio- As células de Schwann são conhecidas pela
pilocarpina em ratos wistar adultos. Após o pe- sua importância na regeneração tanto no siste-
ríodo latente (23 dias), os animais receberam ma nervoso periférico quanto no sistema nervo-
CTMO doadas por animais isogênicos. Com esta so central. Dessa forma, estudos recentes(29) têm
técnica, demonstramos que por contagem sim- demonstrado a capacidade de diferenciação das

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células-tronco da medula óssea em progenitores guns processos possam estar envolvidos, tais
celulares com características de células de como, a transdiferenciação celular, a fusão celu-
Schwann, capazes de apoiar a regeneração em lar, a indução da neurogênese local e a liberação
nervos ciáticos de ratos lesados após 3 semanas de fatores tróficos (efeito parácrino).
do transplante. Mimura et. al.(27) demonstrou em Apesar do otimismo científico, há a necessi-
ratos adultos com nervos ciáticos seccionados um dade de maior conhecimento dos mecanismos
aumento significativo na velocidade de condu- envolvidos na diferenciação celular, regeneração
ção e no índice de escala funcional para nervo e recuperação funcional em lesões do sistema
ciático no grupo transplantado com células-tron- nervoso.
co comparado ao grupo controle não transplan-
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