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Na virada dos anos 60

Cremilda Medina*

Há muito o que lembrar, há muito o que comemorar nos 50 anos do curso de


Jornalismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O depoimento que hoje flui na
espontaneidade dos afetos se sobrepõe a qualquer artigo construído com argumentos,
puramente racionais. É no mundo das intuições que se definiu, há quatro décadas, uma
decisão até hoje misteriosa para mim: fazer vestibular para um curso que não tinha
prestígio. Que pai aceitaria tranqüilamente tal opção? Por que abdicar de medicina, direito,
arquitetura ou matemática? Mas a escolha se consumou e lá estava meu nome na lista dos
aprovados em Jornalismo na primeira chamada, dezembro de 1960. E, em segunda
chamada, concorreria em janeiro de 1961 a Letras Clássicas.
A reação foi intensa por parte da família: isso era curso que merecesse o
investimento da jovem egressa do ginásio do Colégio Farroupilha e do clássico no Júlio de
Castilhos? Não bastasse a inconformidade dos pais, o então diretor da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras chamaria a caloura à sua sala, pois a conhecia das aulas de
latim no Julinho, e puxaria as orelhas: que é isso, menina, você não pode fazer Jornalismo
como curso principal e matérias isoladas em Letras. Angelo Ricci, um humanista com
sangue e gestos italianos, discutiu vigorosamente com a rebelde, queria porque queria que
estudasse grego e latim a fundo e deixasse esse outro curso menor. Que jornalista, que
nada.
Foram, porém, três anos de dedicação apaixonada ao Jornalismo e quatro de Letras
nas horas suplementares. Aí cursava disciplinas de Teoria Literária, Estética, Literatura e,
em uma terceira frente, freqüentava o curso de Nancy da Aliança Francesa. A teimosia pelo
Jornalismo se alimentava em um projeto de trânsito social: desejava, sim, ir ao mundo com
os poros abertos para reportá-lo, ajudar os que estavam à margem da História, colher suas
vozes, seus gritos de socorro. Eram tempos épicos, todos se envolviam com os ideais
revolucionários e o lugar do jornalista na linha de frente das grandes causas me parecia
incontestável. Uma dessas causas, em particular, me sensibilizava, a dos menores
abandonados.
A visão de mundo dos jovens nos primeiros anos da década de 60 mobilizava
corações e mentes, que liam com voracidade, ao mesmo tempo, Marx e Engels, Sartre e
Camus, Gordon Childe e Toynbee. A rebeldia original na escolha do curso encontrava eco
na União Nacional dos Estudantes (UNE), cujos movimentos e ações se expressavam na
arte, na cultura dos corredores da faculdade ou nas caminhadas pela Redenção.
É emblemática a marca da resistência, sina que se colou à rebeldia. Meu diploma de
Jornalismo na formatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul registra a data – 31
de março de 1964. Quando, na manhã de 1º de abril, um grupo de estudantes assumiu a
Rádio da Universidade para iniciar a resistência, lá estava parte dos que se haviam formado
na véspera, todos heróis de poucas horas na ação revolucionária.
Vieram depois as coisas de não, que estariam impressas, pouco tempo depois, no
poema de João Cabral, Morte e Vida Severina, musicado por Chico Buarque de Hollanda e
encenado pelo Tuca de São Paulo em 1968. Os leitores que, ainda na faculdade, navegaram
pelo Rio do poeta, acreditaram nas futuras coisas de sim e pretendiam ingressar na nova era
entusiasmados, sem chance de esmorecer. Na batalha que se trava nos idos de 68, nos
tormentosos primeiros anos da década de 1970, em São Paulo, e em todos os sucessivos
embates coletivos ou individuais, o curso de Jornalismo da virada dos 60 se torna uma
referência.
Ao trazer à tona essa memória, tanto em circunstâncias acadêmicas quanto no
exercício profissional como comunicadora social, há inúmeros pontos de luz que merecem
ser brevemente sublinhados. Na virada dos 60, ocorrem importantes mutações no curso de
Jornalismo e na Universidade como um todo. Primeiro, manifesta-se um novo
comportamento: jovens egressos da escola secundária elegem a profissão de jornalista e
assumem os estudos, a formação universitária para exercê-la (não havia regulamentação
nem exigência de diploma superior). Segundo, uma nova composição de gênero marcará a
universidade com a chegada progressiva da mulher - dois fatos que vão se refletir nas
décadas posteriores de maneira incontestável.
Os primeiros grupos dos cursos de Jornalismo (do fim dos 40 ao fim dos 50) eram
mais velhos e predominantemente masculinos. A cultura da sala de aula muda na Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras. Os jovens rebeldes e teimosos entravam na universidade
não para tertúlias de bacharéis, mas para agarrar com ferocidade uma profissão de luta.
Mas era impossível não cruzar a efervescência revolucionária com o acervo do
conhecimento universitário. A grande virtude do curso de Jornalismo na fase anterior às
faculdades de comunicação se revelava no convívio com as humanidades. As aulas
partilhadas com os demais cursos se fertilizavam com informações da história, da
sociologia, da política, da geografia, das letras, da filosofia, do direito. Ora uma excursão
de trabalho de campo em Geografia Humana, ora um acalorado seminário de Ciência
Política, ora um ciclo de conferências sobre História do Rio Grande do Sul. As fronteiras
disciplinares eram tênues e a interdisciplinaridade se concretizava no cotidiano da
faculdade.
Não se falava em epistemologia pragmática, mas as conseqüências do conhecimento
teórico se objetivavam em um novo projeto sócio-cultural para o Brasil. O calor das
discussões se motivava ou na exposição de aula ou nas leituras complementares, muitas
delas escolhidas pelos alunos para ter munição intelectual e poder contestar a teoria
consagrada ou “reacionária”.Os estudantes de Jornalismo, que conviviam no centro
acadêmico da Filosofia e atuavam em várias frentes da UNE, ainda acrescentaram um
espaço de pesquisa e ação – o Clube de Jornalismo. Lembro bem dos estudos de marxismo
levados muito a sério, naquela pequena sala cedida pela faculdade.
Mas também a literatura sempre seduziu o aluno do antigo curso de Jornalismo,
hoje da comunicação social. De certa forma, em todas as décadas, há um desejo majoritário
de escrever, de se realizar como poeta, romancista, autor criativo. Pois nos tempos aqui
relembrados, o terreno da URGS era muito fértil. Os professores de língua e literatura,
originários de Letras, mas totalmente voltados para o Jornalismo, irradiavam noções até
hoje pouco assimiladas tanto pelos profissionais experientes quanto por grande parte dos
currículos universitários. O amor pela língua praticada no Brasil, seja pela impregnação na
literatura contemporânea, seja pela coleta dos falares da rua imunizou toda essa geração
contra o vírus da rejeição cultural e todas as infestações de colonialismo mental. Os
estudantes podem não ter assumido a frente literária, mas, como jornalistas, tiveram a
preciosa oportunidade de se sentir afetos à literatura e à oratura do povo a que pertencem.
Como se tudo isso não fosse suficiente – a formação da cidadania, o repertório
humanístico e apropriação compreensiva e criativa da língua como instrumento de
identidade –, os meninos egressos do curso de Jornalismo também saíam preparados para
enfrentar tecnicamente a profissão. Da produção da notícia à edição de jornal, revista ou
rádio (faltava ainda a formação televisiva), os alunos se exercitavam nos pioneiros
laboratórios. Fazia-se o Jornal Escola e as mídias impressas dos centros acadêmicos. O
Universitário, semanário do movimento estudantil, era mais um laboratório dos estudantes
de Jornalismo. Na Rádio da Universidade, experimentava-se a notícia e a crônica.
Fotografia e diagramação deleitavam os mais visuais. No dia a dia da faculdade, não
cessava o brado por melhores laboratórios, mais recursos técnicos, uma ladainha constante
na história universitária. Reclamava-se, à época, da falta de máquinas de escrever... Um
abnegado professor nos levava para sua casa e ali se improvisava a redação, com direito a
jantar e lanche altas horas da noite.

Acompanhei outras etapas da história do ensino de Jornalismo no Brasil e no


Exterior, os fóruns se ampliaram, sucederam-se modismos curriculares, como a formação
fenomenológica da era da Comunicação, a formação tecnológica da era da Informática, a
formação especializada, disciplinar, a formação interdisciplinar etc etc. Houve, inclusive,
os ciclos em que se decretou e ainda hoje se decreta a não-formação, rejeitando o diploma
universitário. Os cursos de Jornalismo saíram da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras
e conquistaram a vida autônoma ainda na década de 60. A Universidade de São Paulo
assume essa cultura, implantando a Escola de Comunicações e Artes em 1966 e, em 1972,
criando o primeiro curso de pós-graduação da área na América Latina. A partir daí cresce
significativamente a massa crítica do conhecimento autóctone. Em terras de Santa Cruz
surgem vozes das Ciências da Comunicação e do Jornalismo que dialogam com os autores
estrangeiros. E em meio ao caldo de teorias comunicacionais e euforias tecnológicas
levantam-se as frustrações coletivas. Nos clamores reprimidos pela ditadura militar
inaugurada no dia da formatura, persiste, na resistência, o sonho daqueles que nunca
abandonaram a humanização.
Os 50 anos que se comemoram hoje trazem à superfície desse sonho, certas
vivências na velha faculdade. As ferramentas de trabalho adquiridas nos primeiros quatro
anos da década de 60 balizaram o conflito permanente, hoje registrado em textos e práticas
profissionais. Ao mexer na memória, emergem com clareza os principais alicerces que tais
ferramentas construíram. No esforço de síntese, destacam-se os fundamentos éticos da
responsabilidade social do jornalista, o aprendizado das técnicas historicamente
desenvolvidas e a inquietude estética para recriá-las na necessária inovação para atender às
demandas sociais.
Não posso deixar de registrar o afeto íntimo que se mantém nos 41 anos dessa
experiência. Nos bancos da faculdade, um encontro se sobrepôs: o colega de turma Sinval
me daria o companheirismo de vida inteira e o novo sobrenome, Medina. Como não
lembrar tempos tão definitivos? Para os colegas que se projetaram na autoria poética, como
o escritor Sinval Medina, para os colegas que, como eu, se lançaram às mediações da
Comunicação Coletiva, para os colegas que se voltaram para a Educação, peço um brinde
às bodas de ouro do curso que nos reuniu.
• Cremilda Medina, jornalista, pesquisadora e professora titular da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, se formou em Jornalismo
e Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em 1964. Iniciou sua
carreira profissional em Porto Alegre no início da década de 1960 e se mudou
para São Paulo em janeiro de 1971. Autora de treze livros, organizou também 45
coletâneas com seus alunos e colaboradores. O mais recente título da autora,
Ciência e Jornalismo, da herança positivista ao diálogo dos afetos (Summus
Editorial, 2008) faz a junção entre teoria e prática, o que caracteriza a
epistemologia da comunicação constante em sua experiência acadêmica.

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