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Conexões entre o federalismo fiscal

TEMAS LIVRES FREE THEMES


e o financiamento da política de saúde no Brasil

Connections between fiscal federalism


and the funding of the Brazilian health care policy

Luciana Dias de Lima 1

Abstract In the Brazilian society’s context of mea- Resumo As expressivas desigualdades da socie-
ger financial resources for health care, associated dade brasileira e o contexto de escassez de recur-
with structural features of fiscal federalism and sos financeiros para o setor da saúde, associados
with the current model of funding transfers for the às características estruturais do federalismo fiscal
Unified Health System’s (SUS), important inequi- e ao modelo predominante das transferências do
ties directly impact political negotiations and the SUS, influenciam a negociação política e implan-
deployment of federal financing alternatives which tação de alternativas de financiamento federal não
are not directly linked to the supply and produc- atreladas diretamente à oferta e produção de ações
tion of health care activities and services by states e serviços de saúde nos estados e municípios. Ob-
and municipalities. We observed that health poli- serva-se que a política de saúde, a partir da se-
cies, since the second half of the nineties, have de- gunda metade da década de 1990, vem desenvol-
veloped their own mechanisms that, in the above vendo mecanismos próprios que, neste contexto
mentioned context, tend to accommodate differ- específico, tendem a acomodar interesses diversos
ent interests and federative conflicts generated by e conflitos federativos gerados por fatores estrutu-
structural factors and by institutional rules. How- rais e pelas regras institucionais. Porém, a falta
ever, the absence of an integrated planning pro- de um planejamento integrado entre os critérios
gram between the criteria to establish resource re- que regem a redistribuição dos recursos para o fi-
distribution for financing the Unified Health Sys- nanciamento do Sistema Único de Saúde e o sis-
tem and the Brazilian Federation’s fiscal sharing tema de partilha tributário da federação brasilei-
system, end up reinforcing certain asymmetric ra acaba por reforçar determinados padrões de
patterns and generating new imbalances, making assimetria encontrados e gerar novos desequilí-
the compensation of inequities difficult in public brios, dificultando a compensação das desigual-
health spending at the sub-national domain. dades na capacidade de gasto público em saúde
Key words Fiscal federalism, Health financing, das esferas subnacionais.
1
Departamento de Health policy Palavras-chave Federalismo fiscal, Financia-
Administração e Planeja-
mento em Saúde, Escola mento da saúde, Política de saúde
Nacional de Saúde Pública
Sérgio Arouca, Fundação
Oswaldo Cruz. Rua
Leopoldo Bulhões 1480,
Manguinhos. 21041-210
Rio de Janeiro RJ.
luciana@ensp.fiocruz.br
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Introdução ações e serviços de saúde nos estados e, princi-


palmente, nos municípios.
O tema federalismo, relações intergovernamen- Estes dois fatores, em um Estado marcado por
tais e políticas públicas vêm se tornando objeto acentuadas desigualdades socioeconômicas e um
de interesse crescente da produção científica bra- contexto de escassez de recursos para a saúde, têm
sileira e internacional. Em que pese a ampliação moldado o posicionamento dos atores federati-
das publicações sobre o tema, em grande parte, vos e relações de cooperação e conflito, estimu-
os trabalhos apóiam-se em diferentes enfoques, lando a criação de novos critérios e mecanismos
que tratam de maneira diversa o papel das insti- de redistribuição de recursos federais a partir da
tuições na vida política e tendem a separar as va- segunda metade da década de 1990. Dessa forma,
riáveis econômico-financeiras das variáveis po- acredita-se que a política de saúde vem desenvol-
líticas. Não há, ainda, uma produção nacional vendo mecanismos próprios que interagem, num
consistente que busque relacionar determinados contexto específico, com variáveis estruturais e
arranjos institucionais do Estado com políticas institucionais de difícil modificação pelos atores
específicas. Reconhecendo as lacunas existentes, que atuam no setor da saúde.
este artigo visa contribuir para a discussão das Neste trabalho, através do levantamento da
conexões entre o federalismo e a política de saú- produção bibliográfica recente e da análise de
de no Brasil, a partir do referencial teórico-me- dados secundários, discute-se sobre os temas fe-
todológico proposto por Gagnon1 e Souza C.2. deralismo fiscal e financiamento federal da polí-
Gagnon1 considera que o sucesso dos sistemas tica de saúde no Brasil, identificando-se suas prin-
federativos deve ser medido por sua capacidade cipais características, as alterações operadas ao
de regular conflitos, já que suas instituições, por longo dos anos 90 e início dos anos 2000, as rela-
serem sensíveis à diversidade, atuam no sentido ções existentes e seus desdobramentos.
de amenizar as tensões da sociedade. Para este
autor, é necessário refletir sobre as relações entre
as regras institucionais e os conflitos intergover- Federalismo fiscal à brasileira:
namentais, a forma pela qual as esferas de gover- características das mudanças
no se articulam e negociam suas divergências e implantadas a partir dos anos 80
quais os resultados deste processo de negociação.
Na mesma linha, Souza C.2 adverte que as in- Para entendemos a realidade brasileira, é preciso
vestigações sobre o comportamento dos atores refletir sobre as bases do modelo de federalismo
federativos não podem prescindir da tarefa de fiscal implantado. É consenso entre os estudiosos
desvendar as “regras do jogo”, que intervém no sobre o tema que o modelo atual repousa nos fun-
comportamento político dos atores. Ou seja, damentos da reforma de 1967 e que os conflitos
descobrir os constrangimentos impostos aos hoje vividos no terreno tributário se dão pelas
atores em suas escolhas. Os aspectos institucio- modificações incompletas do mesmo, em uma
nais são importantes porque determinam a ca- conjuntura política e econômica completamente
pacidade de atuação dos agentes políticos, con- diversa.
dicionam sua percepção acerca das alternativas A reforma de 1967 caracterizava-se por: 1)
realistas da política e incidem em suas opções forte centralização da arrecadação tributária no
estratégicas e preferências. governo federal, principal responsável pelo estí-
Sob este enfoque, propõe-se identificar al- mulo ao desenvolvimento da economia; 2) refor-
guns limites e constrangimentos institucionais ço da capacidade tributária própria de estados e
impostos ao financiamento público da saúde no municípios, com a criação do Imposto sobre Cir-
Brasil. Uma primeira ordem de fatores diz res- culação de Mercadorias (ICM) na competência
peito à forma como se estrutura a divisão das dos estados e do Imposto sobre Serviços (ISS) na
competências tributárias (que nível de governo competência dos municípios; 3) implantação de
administra e arrecada cada tributo) e os dispo- mecanismo de repartição regular de receitas fe-
sitivos que determinam a partilha intergoverna- derais com fins redistributivos e não-condicio-
mental de recursos no federalismo fiscal brasi- nados a gastos específicos - os Fundos de Partici-
leiro. A segunda refere-se ao modus operandi das pação dos Estados (FPE) e Municípios (FPM); 4)
transferências federais para o financiamento das implantação de mecanismo de alocação de recei-
ações e serviços descentralizados do Sistema tas federais para investimentos, caracterizado por
Único de Saúde (SUS), que respeitam, na sua forte vinculação setorial e funcional (despesas de
maioria, a capacidade instalada e a produção de
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capital) - as devoluções tributárias dos impostos novos investimentos em prejuízo do objetivo ar-
sobre combustíveis, energia elétrica, minerais e recadatório, fenômeno esse denominado de
comunicação que se destinavam às empresas pú- “guerra fiscal” dos estados nos anos 90.
blicas federais, estaduais e municipais; 5) criação No plano municipal, o reforço das receitas
de mecanismo de devolução tributária do ICM diretamente arrecadadas também se verifica.
para os municípios3,4. Mesmo tendo sido frustradas as tentativas de in-
Se concebido com uma orientação descentra- corporação do ISS ao ICMS, são mantidas na
lizadora, o sistema tributário brasileiro foi gra- Constituição os mecanismos de compensação
dualmente modificado ao longo dos anos da di- para os municípios5. Entre eles, a criação do Im-
tadura, de modo a concentrar o controle sobre a posto sobre Vendas a Varejo de Combustíveis
receita e a alocação do gasto no âmbito federal. (IVVC), que foi extinto posteriormente, o au-
Novas condicionalidades e vinculações vão sen- mento de 20% para 25% do percentual de parti-
do atreladas aos Fundos de Participação, redu- lha do ICMS para as esferas locais e o comparti-
zindo a liberdade orçamentária das unidades sub- lhamento com o estado da arrecadação do anti-
nacionais e direcionando os recursos para pro- go imposto sobre a transmissão de bens imóveis.
gramas ou funções específicas. O governo estadual passa a arrecadar o imposto
A centralização associada à perda de autono- de heranças e doações e os governos municipais
mia dos governos subnacionais do período de o imposto de transmissão “inter vivos” de bens
1968 até o final dos anos 70 desencadeou uma imóveis.
forte reação contrária no processo de abertura Dain55 também aponta para outros mecanis-
política dos anos 80, onde os municípios e esta- mos de compensação implementados em função
dos ganham gradativamente espaço para atendi- de reformas não levadas à cabo pelos constituin-
mento de suas demandas e revisão do sistema tri- tes em 1988. Havia na época uma proposta de
butário brasileiro. Dain5 enfatiza que, nesta épo- adoção de um princípio único de destino na apli-
ca, a dimensão federativa se impôs aos demais cação do ICMS, com desoneração das exporta-
aspectos relativos à reformulação do sistema tri- ções internas e externas. Com esta proposta, per-
butário brasileiro. deriam os estados exportadores líquidos. Mesmo
Em relação às competências tributárias, am- mantendo-se a tributação do imposto na origem
plia-se o papel das esferas subnacionais na arre- e destino, foi inevitável estabelecer compensações
cadação tributária e sua autonomia na gestão dos visando reduzir os impactos perversos do siste-
impostos. Esta ampliação se deu por diversos ma tributário sobre a competitividade do setor
mecanismos na década de 1980. Um, relacionado produtivo brasileiro e a falta de investimento. Daí
ao aumento de abrangência do ICM com a cria- resultam o Fundo de Compensação pela Expor-
ção do Imposto sobre Circulação de Mercadori- tação de Produtos Industrializados (FPEX) – que
as e Serviços (ICMS). Este passou a incluir os redistribui 10% da arrecadação do Imposto so-
impostos únicos federais (combustíveis, energia bre Produtos Industrializados (IPI) da União em
elétrica, minerais, comunicação e transporte). função do volume de exportações das UFs - e,
Além disso, o controle central observado sobre o posteriormente, a Lei Complementar (LC) 87/96
imposto é retirado e os governos estaduais pas- (Lei Kandir) que complementa a desoneração das
sam a ter maior responsabilidade pela sua gestão. exportações para outros produtos. Estas medidas
O dispositivo que definia a partilha neutra do acabaram por incidir também nas receitas dos
antigo ICM também é alterado: 25% da cota-par- municípios, pois a legislação prevê que 25% dos
te do ICM e, posteriormente, do ICMS são obje- recursos das transferências compensatórias dos
to de livre disposição por lei estadual. Os 75% estados sejam repassados aos seus municípios4.
restantes da cota-parte permanecem regidos pelo Um segundo componente importante das
mecanismo de devolução tributária. Isso repre- mudanças operadas a partir dos anos 80 diz res-
sentou um aumento do poder do estado na alo- peito ao sistema de partilha tributária. Como afir-
cação municipal deste tributo que passa a incor- ma Rezende3, a “bandeira da descentralização”
porar um componente redistributivo à fórmula estampava a reivindicação do aumento das trans-
do repasse. ferências federais sem qualquer condicionalida-
Por outro lado, a Constituição de 88 estabe- de quanto ao seu uso. No modelo de partilha da
lece como atribuição dos estados a composição e reforma de 1967, estas transferências se constitu-
definição dos valores das alíquotas do ICMS. Os íam através do FPE e do FPM que possuíam ca-
governos estaduais passam a utilizá-lo como ins- pacidade livre de gasto pelas instâncias subnacio-
trumento de política econômica para atração de nais. A segunda perna do sistema – os mecanis-
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mos de devolução dos impostos únicos arreca- O efeito esperado com a medida, de restrição
dados pela União -, que cuidava da cooperação à multiplicação municipal devido às regras de
intergovernamental no tocante à implementação rateio do FPM, se contrapõe à importante atua-
das políticas prioritárias para o desenvolvimen- ção destes fundos enquanto mecanismo para re-
to, não atendia ao preceito de maior autonomia, distribuição de recursos que reflita a evolução no
pois direcionava os recursos para determinados tempo das necessidades sociais e demandas por
setores da economia e restringia-se a despesas de políticas e serviços públicos. Como os critérios
capital. passam a ser estáticos, o mecanismo de correção
Em decorrência, cresce a parcela da receita dos desequilíbrios horizontais a favor de patama-
federal do Imposto de Renda (IR) e do IPI que res mais homogêneos de receitas e capacidades
compõem os Fundos de Participação. O cresci- de gasto entre estados e regiões fica comprometi-
mento é de tal monta que passa a absorver, a par- do. Apenas no que se refere à distribuição de re-
tir de 1993, quase a metade da arrecadação dos cursos nos municípios do interior do estado o sis-
principais tributos de competência da União: tema mantém alguma dinamicidade.
21,5% da receita líquida do IR e do IPI constitu-
em o FPE e 22,5% o FPM6. A “amputação da per- Efeitos do modelo de federalismo fiscal
na” da cooperação, atrelada à hipertrofia das sobre o financiamento do Sistema Único
transferências redistributivas e à atrofia de ou- de Saúde na década de 1990
tros incentivos fiscais ao desenvolvimento regio-
nal, comprometeram o equilíbrio do modelo de Muitas são as críticas formuladas pelos especia-
partilhas previsto em 19673. listas do federalismo fiscal sobre o sistema tribu-
Por outro lado, os critérios utilizados como tário vigente no Brasil. Enfatizaremos aqui as que
base para redistribuição dos recursos do FPE e julgamos fundamentais para compreensão das
FPM permanecem basicamente os mesmos de repercussões sobre o financiamento da política
1967. Em relação ao FPE, vigoram o tamanho da de saúde até o início dos anos 2000.
população e o inverso da renda per capita. Para o A primeira delas diz respeito aos conflitos ge-
FPM, o mecanismo de repartição dá direito a 10% rados entre o poder central e as instâncias sub-
dos recursos às capitais e, para os demais muni- nacionais de governo pela forma como se condu-
cípios, leva em consideração o porte populacio- ziu o processo de descentralização do sistema tri-
nal, privilegiando os menores com dotações que butário. Podemos afirmar que o sistema tributá-
se reduzem à medida que cresce o tamanho da rio brasileiro, pelas regras atuais, está entre um
população. dos mais descentralizados do mundo, tanto no
Em 1981, os critérios de distribuição do FPM que se refere ao poder de tributação como de gas-
são parcialmente remodelados. Do valor líquido to auferidos às instâncias subnacionais. Segundo
do FPM, 10% são distribuídos entre as capitais, dados produzidos em estudo sobre a partilha de
86,4% entre os demais municípios do interior e o recursos tributários no Brasil, o governo federal
restante de forma adicional para os municípios arrecadava em 2000 cerca de 67% do total das
do interior com mais de 156.216 habitantes. Se- receitas tributárias (Gráfico 1), transferindo cer-
gundo Prado4, esta mudança representa uma tí- ca de 35% de suas receitas para estados e, princi-
mida tentativa de lidar com o viés criado pelas palmente para os municípios, na forma de trans-
regras originais que favoreciam os pequenos ferências redistributivas livres ou setorialmente
municípios e colocavam em desvantagem locali- orientadas7.
dades com problemas metropolitanos. Embora a função de redistribuição de recur-
Outras modificações são estabelecidas pela sos seja um importante mecanismo para corre-
Lei Complementar (LC) 62/89 que define que ção dos desequilíbrios fiscais pelo poder central
85% dos recursos do FPE devem ir para os esta- em países heterogêneos como o Brasil, ressalta-
dos das regiões Norte (25,37%), Nordeste se que o processo de descentralização operado a
(52,46%) e Centro-Oeste (7,17%) e 15% para partir dos anos 80 não contou com uma descen-
os demais estados das regiões Sul (6,52%) e Su- tralização planejada de encargos. Por sua vez, o
deste (8,48%). No que se refere ao FPM, este modelo de Seguridade Social preconizado para o
passa a ser distribuído para os municípios do Brasil exige a coordenação do nível federal na
interior por um coeficiente fixo diferenciado por implementação de políticas que promovam o
estado. Para as capitais, um coeficiente indivi- desenvolvimento econômico e compensem as
dual orienta a distribuição dos 10% do FPM in- carências e dificuldades institucionais próprias
dependente de sua localização. das esferas subnacionais.
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Gráfico 1 em 1993, o governo acabou lançando mão de
Distribuição da receita total arrecadada e da receita outros dispositivos para ampliar sua receita dis-
final entre as diferentes esferas de governo, ponível. Entre eles, o aumento das alíquotas e a
Brasil - 2000. imposição de impostos cumulativos e superpos-
tos, como a Contribuição para o Financiamento
80% da Seguridade Social (COFINS), a Contribuição
70% sobre o Lucro Líquido das Empresas (CSLL) e o
60% Programa de Integração Social/Programa de For-
50% mação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/
Percentual

PASEP), além da implantação de novos tributos,


40%
como é o caso da Contribuição Provisória sobre
30% 123456
123456 a Movimentação Financeira (CPMF) em 1997.
123456
123456
20% 123456
123456 Apesar de não sofrerem perda inflacionária sig-
10% 123456
12345 123456 nificativa, as contribuições sociais geram danos
12345
12345 123456
123456
0% à competitividade sistêmica, onerando desigual-
Arrecadação Receita final
GF 67% 44% mente produtos, setores e empresas e causando
GE 28% 30% grandes questionamentos jurídicos e evasão da
12
12 GM 5% 26% arrecadação esperada.
A importância das contribuições sociais tam-
Fonte: Elaboração própria a partir de dados obtidos de
Prado4. bém cresceu na medida em que estes recursos fo-
Nota: GF – governo federal; GE – governos estaduais; GM – ram contigenciados pela União visando a manu-
governos municipais. tenção do plano de estabilização econômica pelo
governo e o pagamento da folha de inativos. Les-
sa et al.9 ressaltam que, entre 1993 e 1995, foram
contingenciados 20% dos recursos da Segurida-
de Social para o Fundo Social de Emergência.
A perda de recursos da União provocou uma Outro aspecto destacado pelos autores refere-se
reação duplamente prejudicial para a política so- à superação dos recursos destinados ao pagamen-
cial. Por um lado, fez com que o governo federal to dos Encargos Previdenciários da União (EPU)
se desinteressasse pelas modificações do IR, já que frente aos recursos destinados ao Ministério da
grande parte dos recursos provenientes do impos- Saúde (MS). Entre 1994 e 1995, a rubrica EPU
to são transferidos a estados e municípios. Isto faz recebeu, respectivamente, 16,5% e 23,3% do to-
com que uma fonte importante de receita para a tal das fontes da Seguridade, enquanto que a saú-
implantação de políticas no âmbito local perma- de, nos mesmos anos, levou 18,6% e 19,6% das
neça com sérios problemas em relação à estreite- fontes. Segundo os dispositivos constitucionais,
za de sua base de arrecadação, aos benefícios que as despesas relativas às aposentadorias dos servi-
diminuem o seu valor nominal e sua progressivi- dores federais não dizem respeito à previdência
dade. Por outro ângulo, a esfera nacional acabou social da Seguridade Social, pois o regime desses
por investir na ampliação das contribuições soci- trabalhadores foi mantido à parte.
ais para o financiamento da Seguridade Social. A base de financiamento da Seguridade Soci-
Dain et al. 8 demonstram que, na atual estru- al ficou comprometida, assim como o processo
tura tributária brasileira, o alto peso das contri- de descentralização das políticas sociais previsto
buições sociais em relação aos impostos sobre o na Constituição de 1988, pois, mesmo aportan-
valor adicionado e aos impostos diretos sobre do recursos próprios para o setor, os governos
renda e propriedade causam um desequilíbrio na subnacionais dependem dos recursos oriundos do
composição da carga tributária. Em 1998, as con- orçamento do MS para suprir suas necessidades
tribuições sociais para o financiamento da Segu- de gasto. Silva10 destaca que a proposta de des-
ridade Social representavam cerca de 10% do PIB, centralização foi revertida na década de 90 devi-
sendo responsáveis pelo maior montante de re- do à: 1) diminuição da participação das instânci-
cursos arrecadados e atuando como principal as subnacionais na receita tributária da União
fonte de receita disponível para cobrir os gastos (21% para 15% de 1988 a 1996), porque os tribu-
da União. tos partilhados (IR e IPI) não acompanharam a
Ante ao decréscimo da receita de impostos e evolução da receita da União; 2) perda da auto-
à não apropriação dos recursos das contribuições nomia dos estados pela subordinação do FPE ao
sobre os salários vinculados à Previdência Social pagamento das dívidas retroativas com a União,
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submetidas às elevadas taxas de juros da política sistema; o sistema cota-parte estadual que inclui
econômica do governo; 3) contingenciamento os 25% do ICMS distribuídos segundo critérios
dos recursos da Seguridade Social e recentraliza- definidos em lei estadual e os 25% do FPEX e da
ção dos recursos disponíveis para as instâncias LC 87/96. Este subsistema corresponde à 9,4% do
subnacionais, através dos atrasos na liberação e total das transferências redistributivas.
criação dos Fundos Social de Emergência e de Podemos ainda agregar as transferências re-
Estabilização Fiscal e da Desvinculação de Recur- distributivas setoriais da União, ou seja, aquelas
sos da União (DRU). que se restringem a funções específicas e não atu-
Em que pese as considerações acima, os mu- am diretamente sobre a capacidade geral de gas-
nicípios foram beneficiados pelas mudanças ope- to do orçamento receptor, pois interferem ape-
radas. Sua capacidade de gasto foi ampliada nas nas na alocação de recursos públicos destinados
duas últimas décadas, enquanto os estados per- a dois dos principais setores de atuação do setor
manecem hoje com a mesma disponibilidade lí- público: a educação (as transferências do Fundo
quida de recursos que tinham há 20 anos. Nacional de Desenvolvimento do Ensino Funda-
Prado4 relata que os estados desempenham mental e Valorização do Magistério – Fundef) e a
uma importante função na arrecadação tributá- saúde (as transferências SUS). Enquanto o Fun-
ria nacional. A importância da arrecadação na def representa cerca de 30% dos recursos redis-
receita final dos estados também é significativa tributivos totais transferidos, o SUS representa
(cerca de 90% de sua receita final). No entanto, cerca de 20%.
os estados, assim como a União, arrecadam mais O sistema de partilha redistributivo no Brasil
do que ao fim do processo lhes resta como recei- reforça a função da União em detrimento dos es-
ta fiscal, já que transferem aos municípios uma tados na realocação dos recursos que tenham
grande parte da receita do ICMS. Das transferên- potencial para equalização fiscal. Mas a pergunta
cias totais cedidas pela União, a maior parte vai fundamental a ser feita é se ele, tal como está es-
para os municípios na forma do FPM. Neste ce- truturado, possibilita a equalização horizontal da
nário, não é de se surpreender que os estados te- capacidade orçamentária de gasto entre as esfe-
nham lançado mão de seu poder de gestão sobre ras subnacionais.
as principais variáveis do ICMS para atrair no- A primeira conclusão que tiramos do estudo
vos investimentos na tentativa malfadada de au- conduzido por Prado4 é que existem determina-
mentar suas receitas. das regras que limitam a transferência de recur-
Apesar da importância do ICMS, a dependên- sos redistributivos aos estados. É o que o autor
cia dos municípios em relação ao governo federal denomina de “redistribuições internas”. Neste
é maior. De sua receita final, 80% dos recursos são subtipo, enquadram-se o sistema cota-parte es-
derivados de transferências e, dessas, 50% se ori- tadual e uma parte dos recursos do Fundef (Fun-
ginam da União4. Isso leva a uma grande fragili- def estadual interno). Estes recursos têm possibi-
dade das conexões administrativas e orçamentá- lidades de cumprir funções realocativas apenas
rias existentes entre os municípios e os estados. O entre os municípios que compõem um dado es-
padrão que predomina privilegia as articulações tado, não podendo atuar na redução das desigual-
entre o governo central e cada um dos governos dades interestaduais ou interregionais.
municipais, o que dificulta a integração de políti- As evidências indicam que o FPE tende a ser
cas e a formação de redes de serviços. mais redistributivo que o FPM no plano interre-
Por último, cabe refletir sobre os resultados gional, proporcionando ganhos substantivos de
atrelados às transferências redistributivas. Estes receita nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste
fluxos não guardam relação com a base econô- em detrimento das regiões Sudeste e Sul do país.
mica local e permitem reduzir desigualdades na Entretanto, a redistribuição do FPE não é sufici-
capacidade de gasto através da realocação de re- ente para homogeneizar a capacidade de gasto re-
cursos entre as esferas subnacionais. Segundo lativa entre estados situados na mesma região do
Prado4, cerca de 68% do volume total de transfe- país. Observam-se importantes disparidades na
rências intergovernamentais verificados no siste- receita final per capita (resultado da arrecadação
ma brasileiro se encaixam nesta categoria. Entre e do sistema de partilha como um todo) que não
eles, temos aqueles considerados fluxos redistri- se justifica facilmente por variações na renda ou
butivos clássicos, que podem ser utilizados na no nível de desenvolvimento entre os estados.
forma livre de gasto pelas esferas subnacionais: No plano dos municípios, a referida pesquisa
os Fundos de Participação, que representam cer- também demonstra que as disparidades encon-
ca de 41% do total de recursos redistributivos do tradas na receita final per capita entre as capitais
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e municípios de porte populacional diferenciado ais de Saúde (FES) e Municipais (FMS), obser-
são gritantes. De tal monta que: 1) o sistema pri- vando-se critérios diversos - perfil demográfico
vilegia claramente as capitais (23% da população) e epidemiológico da população, características da
e os municípios abaixo de 5.000 habitantes (2,7% rede de serviços de saúde, desempenho no perío-
da população) em relação aos municípios na fai- do anterior, níveis de participação da saúde nos
xa de 10.000 a 100.000 habitantes (41% da popu- orçamentos municipais e estaduais, previsão de
lação); 2) a receita per capita das capitais é 80% investimentos, ressarcimento do atendimento
mais alta que a enorme parcela da população que prestado a outras esferas de governo –, com ênfa-
reside em municípios intermediários; 3) os mu- se na definição de montantes per capita (não
nicípios com população abaixo de 5.000 habitan- menos que a metade dos recursos transferidos).
tes têm uma receita per capita superior às capi- Além disso, preconiza que os recursos transferi-
tais; 4) o crescimento da receita nos municípios dos sejam destinados a investimentos na rede de
com mais de 75.000 habitantes não está associa- serviços, cobertura assistencial e hospitalar e de-
do à arrecadação ou ao FPM mas, fundamental- mais ações e serviços de saúde.
mente, pela devolução tributária e pelos demais As transferências do SUS têm início somente
fluxos redistributivos fora o FPM. em 1994, após quatro anos da publicação das Leis.
De fato, a falta de um planejamento integra- Na prática, a publicação de centenas de portarias
do do sistema de partilha dos recursos redistri- federais, entre elas as Normas Operacionais (NO)
butivos no Brasil, assim como as mudanças que do SUS, acabaram por alterar o padrão de trans-
aconteceram pela fixação dos coeficientes dos ferência federal originalmente proposto. Ugá et
Fundos de Participação e a variedade das regras al.11 enfatizam que as mudanças operadas privi-
que orientam cada um destes fluxos dificultam a legiaram mecanismos e critérios distintos de
correção de assimetrias. transferências, segundo o tipo de serviço ou pro-
Este último aspecto traz à tona a importân- grama, ao invés da idéia original de repasses glo-
cia dos fluxos redistributivos setoriais e, particu- bais não fragmentados.
larmente, as transferências SUS. Estas transferên- Até meados de 2004, observa-se a consolida-
cias são orientadas para a provisão de ações e ser- ção de um modelo diversificado de transferênci-
viços específicos e possuem uma lógica interna as “fundo a fundo”. Nele coexistem mecanismos
própria que não parece se integrar com o restan- que não estão associados diretamente à presta-
te do sistema de partilha, pois as transferências ção de serviços e são realizados independente do
SUS não são planejadas como um componente quantitativo de ações e serviços produzidos (me-
do sistema de partilha tributária brasileiro. Pelo canismos de transferência pré-produção) e me-
contrário, o maior ou menor poder de redução canismos que atrelam as transferências à infor-
das desigualdades das transferências SUS depen- mação prévia da produção (mecanismos de trans-
de da forma como vem se institucionalizando o ferência pós-produção).
subsistema na política de saúde. A pesquisa de Quanto aos critérios que definem os recursos
Prado4 mostra que o efeito redistributivo dos re- federais transferidos mensalmente para municí-
cursos transferidos via SUS são também restri- pios e estados, estes se diferenciam em:
tos. Eles beneficiam as regiões Sudeste e Sul e não 1. critérios per capita utilizados para o finan-
se diferenciam significativamente nos municípi- ciamento de um conjunto ações de atenção bási-
os de porte intermediário e as capitais, apresen- ca. Nesta modalidade incluem-se o Piso da Aten-
tando um potencial limitado para redução das ção Básica fixo (PAB fixo), implantado em 1998 e
desigualdades na capacidade de gasto das esferas variando entre R$ 10,00 a R$ 18,00 reais per capi-
subnacionais. ta/ano e, a partir de 2002, o Piso da Atenção Bá-
sica Ampliado (PAB-A), definido em R$ 12,00
reais per capita/ano.
O modelo de transferência federal do SUS 2. critérios relacionados à série histórica da
produção ambulatorial e hospitalar do SUS, vol-
A legislação que instituiu o SUS definiu as bases tados para o financiamento do conjunto de ações
do modelo de transferência de recursos federais e serviços de especializados e de alta complexi-
para os governos subnacionais, tendo em vista o dade nos municípios habilitados na condição de
financiamento das ações e serviços descentrali- gestão mais avançada na NO vigente. Este meca-
zados de saúde. Ela estabelece que os recursos se- nismo foi implantado em 1994 com as primeiras
jam transferidos de forma regular e automática, habilitações na condição de gestão semiplena
do Fundo Nacional de Saúde aos Fundos Estadu- municipal da NO básica 01/1993. Nos anos 2000,
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as transferências para os municípios nesta mo- de Saúde e Fundo de Saúde - e nas portarias mi-
dalidade são estabelecidas através da Programa- nisteriais específicas – habilitação nas condições
ção Pactuada e Integrada (PPI), que permite a de gestão previstas nas NO, certificação nos pro-
explicitação da parcela de recursos recebida para gramas de atenção básica, cumprimento dos re-
fins de atendimento de pacientes provenientes de quisitos para o recebimento dos recursos, infor-
outros municípios do estado. mação da produção. Apesar dos dispositivos le-
3. critérios diversos: a) relativos ao financia- gais e normativos do SUS darem uma certa ga-
mento do conjunto de ações e serviços de especi- rantia aos fluxos financeiros, admite-se que to-
alizados e de alta complexidade nos estados ha- das as formas descritas podem ser interrompidas
bilitados na condição de gestão mais avançada na e seus montantes substantivamente alterados, na
NO vigente; b) destinados ao financiamento dos medida que estão sujeitas a uma série de variá-
programas específicos da atenção básica (Piso de veis tais como as revisões periódicas dos tetos fi-
Atenção Básica variável – PAB variável) como, por nanceiros e as alterações freqüentes das portarias
exemplo, o programa de saúde da família, o pro- ministeriais.
grama de agentes comunitários de saúde, a far- É por isso que alguns estudiosos do financia-
mácia básica e os incentivos para implantação de mento da política de saúde no Brasil, mesmo re-
ações de epidemiologia e controle de doenças e conhecendo avanços na automaticidade do siste-
combate à carência nutricional; c) destinados ao ma com os mecanismos de transferência “fundo a
financiamento de ações de média e alta comple- fundo” não sujeitos à informação prévia da pro-
xidade em vigilância sanitária (associação de cri- dução, denunciam seu caráter voluntário, depen-
térios per capita, conjugados a incentivos propor- dente e “tutelado” à esfera federal12,13. Pesquisas
cionais ao volume de arrecadação de taxas de fis- conduzidas sobre as finanças públicas municipais
calização); d) relacionados ao Fundo de Ações também classificam as transferências SUS como
Estratégicas e Compensação (FAEC) e voltados “transferências negociadas”, em conseqüência da
para grupos prioritários e ampliação do acesso a especificidade do processo decisório e da regula-
determinadas ações e serviços; e) associados a mentação que informa o repasse desses recursos14.
formas de remuneração específica de determina- Ressalta-se que o repasse de recursos da União
dos tipos de prestadores (entre eles o mecanismo por contra-prestação de serviços na rede pública
de remuneração diferenciada de hospitais univer- e privada credenciada ao SUS até o limite fixado
sitários – o Fator de Incentivo ao Desenvolvimen- nos tetos financeiros municipais e estaduais vi-
to de Ensino e Pesquisa (FIDEPS)- que serve gorou como forma predominante até o final de
como um instrumento de compensação financei- 1998. Somente em 1999, a remuneração direta ao
ra a unidades que atuam com custos hospitalares prestador passa a representar menos de 50% do
diferenciados); f) relacionados a outros progra- total de recursos da União direcionados para o
mas específicos, entre eles, o programa para aqui- custeio da assistência, passando a 3,9% no pri-
sição de medicamentos excepcionais e medica- meiro semestre de 2004, devido à habilitação pro-
mentos para saúde mental. gressiva de municípios e estados nas condições
Os diferentes tipos de transferência federal de gestão previstas nas NO e aos mecanismos de
estão sujeitos às regras previstas na legislação da transferência “fundo a fundo” a elas atrelados
saúde – existência de Conselho de Saúde, Plano (Tabela 1).

Tabela 1
Participação percentual dos recursos federais do SUS para as ações e serviços de saúde segundo grupos de
despesa, Brasil - 1998 a junho de 2004.

Grupo de despesa 1.998 1.999 2.000 2.001 2.002 2.003 2.004


Remuneração por serviços produzidos 55,3 45,9 39,0 33,3 30,8 19,5 3,9
Transferências - média e alta complexidade 29,0 32,8 36,4 40,6 40,0 47,6 61,9
Transferências - atenção básica 15,7 21,3 24,6 25,1 25,4 25,8 25,9
Transferências do PAB fixo e PAB-A 13,3 15,5 14,0 12,2 11,3 11,0 11,5
Transferências - ações estratégicas (FAEC) - 0,0 0,0 0,9 3,9 7,1 8,3
Total 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
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As transferências SUS também se diferenci- serviços existente em seus territórios político-
am daquelas que ocorrem por meio de mecanis- administrativos. Isto porque são os sistemas de
mos conveniais estabelecidos com a União para informação de produção e faturamento do SUS
fins de custeio e investimentos na rede de ações e que através da série histórica de gastos fornecem
serviços de saúde. Estes mecanismos permanecem os parâmetros utilizados para a programação das
como importantes formas de repasse utilizadas referências intermunicipais na PPI e definição dos
pela União na área da saúde, constituindo-se montantes financeiros globais repassados men-
como transferências tipicamente discricionárias, salmente para os FMS.
na medida em que não são regulados através de No caso dos estados, outros critérios entram
dispositivos legais ou pela edição de portarias nas redefinições sucessivas que se deram ao longo
ministeriais, mas sim pelos dispositivos contidos da segunda metade dos anos 90 e início dos anos
em cada convênio. 2000. Estudo produzido por Souza C.2 aponta para
Independente do progressivo aumento das a importância das negociações que se dão em tor-
transferências federais, uma questão importante no das emendas parlamentares para alteração das
a ser aprofundada diz respeito às condicionalida- transferências da União para os governos estadu-
des estabelecidas para a aplicação desses recursos. ais na área da saúde. Em 2000, por exemplo, uma
Observa-se uma tendência crescente do MS vin- emenda ao orçamento da União, puxada pela ban-
cular os recursos transferidos a determinadas po- cada da Bahia, alocou recursos adicionais aos te-
líticas e programas definidos no âmbito nacional tos estaduais inversamente ao per capita existen-
na tentativa de aumentar seu poder indutor e re- te, privilegiando os estados do Nordeste.
gulador sobre o sistema. Estes instrumentos repre- Os recursos associados ao custeio da assistên-
sentam formas utilizadas pelo gestor federal para cia ambulatorial e hospitalar no SUS têm repre-
incentivar ou inibir políticas e práticas pelos ges- sentado o principal montante transferido pela
tores estaduais, municipais e prestadores de ser- União desde 2001 e, se agregado aos recursos do
viços15. A prática de vinculação de recursos fede- FAEC, foram responsáveis por cerca de 70% das
rais suscita polêmica no que diz respeito à delimi- despesas federais com ações e serviços de saúde
tação do poder da União versus o grau de autono- até junho de 2004 (Tabela 1). Este último, implan-
mia necessário para que os gestores estaduais e tado em 1999, é um mecanismo de repasse para
municipais implementem políticas voltadas para efeitos de complementação financeira. Ao longo
a sua realidade local e compromete a gestão orça- dos anos, ocorreu uma ampliação de seu escopo
mentária destas esferas sem garantir uma maior com inclusão de incentivos não necessariamente
eficiência e efetividade no gasto. atrelados à oferta e produção. Entretanto, na sua
maioria, para ser transferido, o FAEC exige a dis-
ponibilidade de um profissional qualificado ou
As potencialidades redistributivas das um equipamento sofisticado, o que só é possível
transferências federais do SUS em determinados centros de referência, localiza-
dos em poucos municípios e estados do país.
Os diversos mecanismos e critérios que informam Não podemos ignorar que o esforço para su-
as transferências SUS determinam capacidades peração das desigualdades regionais e locais pos-
diferenciadas para redistribuição de recursos en- sa prescindir de formas de redistribuição de re-
tre estados e municípios. Cada mecanismo de cursos financeiros pela esfera federal voltado para
transferência SUS está atrelado em maior ou a maior homogeneidade no financiamento da
menor grau à capacidade instalada e de produ- saúde. Essa é uma importante função a ser de-
ção de serviços públicos e privados credenciados sempenhada pelas esferas com elevado poder de
ao SUS existente em uma dada jurisdição. arrecadação para correção dos desequilíbrios ver-
O PAB fixo e o PAB-A são aqueles que mais ticais (entre as esferas de distintos níveis) e hori-
“fogem” à oferta e produção, pois estão submeti- zontais (entre esferas do mesmo nível de gover-
dos à lógica per capita. Seus montantes variam no) no sentido da implantação do caráter nacio-
segundo a estimativa populacional fornecida pelo nal e universal da política de saúde.
IBGE sendo distribuídos, até meados de 2004, na Entretanto, a diversidade de critérios utiliza-
forma duodécimos mensais para os FMS e FES. dos não garante à União as condições necessárias
Por sua vez, os recursos para o financiamento das para redistribuição de recursos tendo em vista
ações e serviços especializados e de alta comple- uma maior igualdade na capacidade final de gas-
xidade nos municípios são expressão direta do to público em saúde das esferas subnacionais de
perfil da capacidade instalada e de produção dos governo. Enquanto alguns estudos ressaltam a
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Lima, L. D.

importância dos mecanismos de transferências tribuição interregional de recursos, não atende


específicos criados nos anos 90 (principalmente o aos requisitos da equalização fiscal e criação de
PAB fixo) para a redução das desigualdades na alo- níveis mais homogêneos na capacidade final de
cação per capita de recursos federais entre regi- gasto das esferas subnacionais de governo. Pelo
ões, estados e municípios16,17,18,19,20, outros são mais contrário, os resultados das pesquisas apontam
cautelosos ao exaltar os resultados alcançados. que as transferências redistributivas, que não
Particularmente, os estudos de Porto21 e Ugá guardam relação com as bases tributárias dos
et al.11 demonstram que o peso da oferta e da pro- governos subnacionais – FPE e FPM, o sistema
dução de serviços restringe o processo de aloca- de cota-parte estadual, o SUS e o Fundef – em-
ção eqüitativa de recursos federais para o custeio bora promovam a realocação de recursos tribu-
do SUS. Os autores apontam como necessários tários do núcleo mais desenvolvido do país para
para se alcançar mudanças mais consistentes re- estados mais atrasados, o fazem de maneira “es-
cursos de investimentos para equilibrar a oferta sencialmente aleatória, criando e reproduzindo
de serviços existentes; a alocação de recursos adi- desigualdades entre unidades da federação tão
cionais de custeio que contemplem diferentes grandes ou maiores do que aquelas que são obser-
perfis demográficos, epidemiológicos e condições vadas na arrecadação inicial” 4.
sociosanitárias e estejam orientadas para as mai- Além disso, a importante descentralização fis-
ores “necessidades de saúde” e a maior participa- cal, ocorrida a partir da década de 1980, tornou o
ção dos estados na correção dos desequilíbrios nos Brasil uma das federações com maior autonomia
tetos vigentes. orçamentária dos entes subnacionais. Esta mu-
Mattos e Costa22 destacam o fato de que, in- dança não foi acoplada a um projeto nacional,
dependente dos mecanismos e critérios utiliza- impôs constrangimentos à esfera federal, privile-
dos para o repasse de recursos financeiros, estes giou fortemente a esfera municipal em detrimen-
devem ser orientados para a busca da igualdade to da esfera estadual e se caracteriza por forte
no total de gastos públicos per capita em saúde, dependência dos municípios aos recursos trans-
como somatório dos gastos da União, estados e feridos da União.
municípios. Desta forma, poderiam ser compen- Os desequilíbrios criados e os imperativos da
sadas as diferenças na capacidade de financiamen- política de estabilização econômica na década de
to em saúde dos estados e municípios e respeita- 1990 geraram reações e tentativas de recentrali-
dos os diversos perfis de morbi-mortalidade exis- zação de receitas pela União, com impacto signi-
tentes no país. ficativo no financiamento federal e no processo
Neste artigo, postula-se que as transferências de descentralização da política de saúde. Por ou-
federais do SUS não favorecem uma maior igual- tro lado, as diferentes capacidades de arrecada-
dade no gasto público em saúde porque: 1) não ção e dependência tributária dos estados e mu-
permitem, na sua maioria, a redistribuição de nicípios apontam para possibilidades distintas de
recursos para estados e municípios com maiores gastos vinculadas às suas receitas proprias dispo-
dificuldades orçamentárias, pois sua forte asso- níveis. As características estruturais do federalis-
ciação com a oferta e produção impede ampliar mo fiscal, somados à política de ajuste fiscal do
as receitas disponíveis em estados e municípios governo federal e às desigualdades econômicas e
com menor capacidade de arrecadação. Estados sociais subjacentes, configuram um cenário bas-
e municípios mais ricos são os que apresentam tante complexo, onde a disputa por recursos para
maior capacidade de oferta e produção, consti- as ações de saúde se desenrola.
tuindo o “círculo vicioso” a que se refere Banting Em relação às regras que orientam as transfe-
& Corbett23; 2) desconsideram as possibilidades rências de recursos federais para o financiamento
reais de aporte de recursos e ampliação de gasto a das ações e serviços descentralizados do SUS, es-
partir das receitas próprias das esferas subnacio- tas possuem efeito limitado no que tange à redis-
nais fruto das regras que informam o federalis- tribuição fiscal e redução das desigualdades nas
mo fiscal no Brasil. receitas voltadas para a saúde. Isto porque, na sua
maioria, a distribuição de recursos federais guar-
da uma forte relação com o perfil da capacidade
Considerações finais instalada e com a série histórica de gastos infor-
mada nas bases de dados de produção e fatura-
Estudos recentes sobre o federalismo fiscal no mento do SUS. Os equipamentos e profissionais
Brasil apontam algumas deficiências do nosso sis- de saúde disponíveis nos ambulatórios, hospitais
tema tributário que, apesar de prover uma redis- e serviços de apoio diagnóstico-terapêutico nos
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diversos estados e municípios, assim como sua cretários de Saúde, Conselho Nacional dos Secre-
capacidade de produção e faturamento, se expres- tários Municipais de Saúde e Comissão Interges-
sam de forma bastante heterogênea no território. tores Tripartite). Observa-se que a pauta de ne-
O modelo de federalismo fiscal vigente no gociação intergovernamental é cada vez mais do-
Brasil e o padrão preponderante das transferên- minada por diversas regras de financiamento fe-
cias SUS reforçam-se mutualmente e apontam deral da política de saúde que são permanente-
para uma tendência à redistribuição de recursos mente modificadas.
tributários no Brasil que não favorece uma mai- No interior destas instâncias, as decisões so-
or igualdade no gasto público em saúde pelos de- bre as regras que informam estas transferências
sequilíbrios orçamentários gerados às unidades refletem as formas como vêm sendo administra-
subnacionais. Com isso, crescem as expectativas das as tensões federativas e as disputas territori-
dos atores federativos no financiamento federal ais por recursos federais. Entretanto, o grau de
da política de saúde: da União, pelas possibilida- desigualdade subjacente dos municípios e esta-
des de condução dos rumos da política nacional dos brasileiros, a falta de um planejamento inte-
através de incentivos financeiros e conformação grado dos diversos critérios que regem as trans-
de parâmetros nacionais; das esferas subnacio- ferências SUS, assim como o entendimento das
nais, pelo aporte de novos recursos da saúde que transferencias da saúde como um componente do
possam compensar suas dificuldades de financi- sistema de partilha tributário da federação aca-
amento e que possibilitem maior autonomia de bam por reforçar determinados padrões de assi-
gestão. metria e gerar novos desequilíbrios orçamentá-
Não por acaso, novas alternativas para o fi- rios, dificultando a compensação das desigualda-
nanciamento da política de saúde estão se tornan- des na capacidade de gasto público em saúde das
do fontes adicionais de recursos financeiros cada esferas subnacionais.
vez mais reinvindicadas pelos gestores subnacio- Se a literatura disponível possibilita a discus-
nais, assim como um importante mecanismo de são sobre os condicionantes institucionais vin-
indução e de amortecimento de tensões regionais culados ao federalismo fiscal e ao padrão de trans-
utilizado pela União no sentido da correção dos ferências federais hegemônico no SUS, pouco se
desequilíbrios federativos. De fato, o período que sabe acerca das negociações que envolvem as
se estende de 1998 até o início de 2004 é marcado transferências federais do SUS e os resultados dos
pelo surgimento de alterações nas regras que in- acordos firmados. É preciso a realização de tra-
formam o financiamento federal da política de balhos empíricos que evidenciem: 1) o padrão de
saúde nos âmbitos municipal e estadual, que não relações intergovernamentais nas negociações
são mais expressão direta da oferta e produção, políticas específicas sobre os diversos tipos de
mas que se subordinam a outras lógicas. transferências de recursos federais do SUS atual-
Os critérios, os valores, assim como os requi- mente vigentes; 2) as potencialidades redistribu-
sitos necessários para alocação destes recursos tivas de cada mecanismo de transferência finan-
têm sido alvo de discussão das instâncias de re- ceira utilizado pela União para compensação das
presentação e gestão intergovernamental do SUS desigualdades na capacidade de gasto público em
no plano nacional (Conselho Nacional dos Se- saúde das esferas subnacionais.
522
Lima, L. D.

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