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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como tema o processo de regulamentação e normatização


jurídica das tecnologias reprodutivas no Brasil e seu confronto com um determinado modelo
de constituição familiar prescrito pelos atores envolvidos no processo de construção de tal
normatização.

Nesse sentido, o objetivo geral constitui-se em uma análise das implicações de uma
regulação restritiva quanto ao acesso às tecnologias reprodutivas. Tal objetivo desdobra-se na
análise dos projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional a respeito da regulação das
tecnologias reprodutivas, bem como na identificação do discurso jurídico sobre a concepção
de família e de pessoa presentes no ordenamento jurídico brasileiro.

No Brasil, o único ato em vigor sobre o tema é a Resolução do Conselho Federal de


Medicina n. 1.358/92. Trata-se de uma norma pouco conhecida fora da classe médica e que
elenca alguns princípios básicos, inspirados em legislações estrangeiras. No entanto, é ato
normativo de natureza administrativa, insuficiente, portanto, para delimitar atividades que a
lei formal brasileira não regulamenta expressamente.

Esta resolução reconhece a natureza terapêutica do uso das técnicas de reprodução


medicamente assistida, restringindo sua utilização por motivos alheios ao tratamento médico.
Quanto às usuárias, permite a aplicação a toda mulher capaz, nos termos da lei, que a tenha
solicitado e consentido em se submeter aos procedimentos de maneira livre e consciente,
2

através de documento. Em nenhum momento essa Resolução do CFM excepciona qualquer


hipótese de uso das técnicas em indivíduos solteiros.

Entretanto, o projeto de lei mais debatido e comentado, em fase adiantada para a sua
aprovação, limita o acesso à reprodução medicamente assistida somente aos cônjuges ou ao
homem e à mulher em união estável (substitutivo do PL n. 90/99). Em outras palavras, o
referido anteprojeto faz uma opção pelo critério da conjugalidade heterossexual e da
estabilidade dos relacionamentos para conferir acessibilidade às tecnologias conceptivas.

A partir de um exame preliminar dos projetos de leis que tramitam no Congresso


Nacional, observam-se alguns problemas, os quais justificam um estudo sobre as implicações
dessa espécie de intervenção político-jurídica no campo da reprodução humana. As
tecnologias de reprodução medicamente assistidas introduzem uma outra variável na relação
entre o ato sexual e a procriação, a qual tem suscitado diferentes e, não raro, opostos
argumentos justificadores.

Nesse sentido, foram propostas as seguintes questões orientadoras para a execução


desta dissertação: a) quais as justificativas para a regulação das tecnologias reprodutivas; b)
qual a concepção de pessoa que alicerça o acesso às tecnologias reprodutivas; c) quais os
pressupostos orientadores para a idéia de família presentes nos projetos de leis?

A fim de operacionalizar tais demandas, o trabalho limitou-se a uma investigação


sobre o discurso jurídico que trata dos critérios de acessibilidade às tecnologias reprodutivas.
O discurso sob exame constituiu-se da doutrina, da jurisprudência e das propostas de
normatização do tema. Para tanto, se fez necessário delimitar os marcos conceituais através
dos quais o discurso jurídico foi analisado.

A metodologia de pesquisa empregada, portanto, priorizou uma revisão bibliográfica


interdisciplinar dos seguintes marcos conceituais: definições de família ou arranjos familiares,
sujeito de direitos, reprodução medicamente assistida, direitos reprodutivos, e dignidade da
pessoa humana.
3

Um segundo passo para a consecução do trabalho foi a pesquisa jurisprudencial. Para


além da necessidade de conhecer a expressão do fenômeno jurídico, no que toca aos objetivos
desse trabalho, havia a necessidade de observar as implicações, complexidades e
sustentabilidade jurídica de uma monoparentalidade voluntária gerada pelas tecnologias
conceptivas. Aproximaram-se, assim, a teoria constitucional – no que diz respeito aos estudos
sobre a dignidade humana - e a filosofia política, por meio das reflexões patrocinadas pelos
argumentos da teoria contratualista-liberal, notadamente em John Rawls.

Cabe aqui explicitar a razão da referência a este autor em particular. Ocorre que em
Rawls foi possível vislumbrar uma concepção de justiça que não promovesse a exclusão de
diferentes estilos de vida familiar, bem como privilegiasse a autonomia individual para
conceber e concretizar um plano de vida compatível com as demais liberdades dos sujeitos em
sociedade. Dessa forma, ainda que este filósofo político em especial tenha merecido
importantes e justas críticas quanto ao seu projeto de construção de uma teoria da justiça –
marcada explicitamente pelo liberalismo político –,vale a pena destacar seus argumentos
naquilo que racionalmente estabelece uma relação de pertinência e aplicabilidade com uma
sociedade e um ordenamento jurídico complexo como o brasileiro.1

De acordo com Oliveira, nenhuma outra obra de filosofia política tem recebido tanta
atenção nos meios acadêmicos e culturais do mundo inteiro quanto Uma Teoria da Justiça de
John Rawls. O trabalho monumental de Rawls, afiança Oliveira, emerge como ponto de
referência necessário para explorarmos o cenário ético-política contemporâneo, opondo
universalistas e comunitaristas, construtivistas e intuicionistas, deontologistas e utilitaristas.2
1
Para um cotejamento crítico dos argumentos rawlsianos, ver: HABERMAS, Jürgen; RAWLS, John. Debate
sobre el liberalismo político. Barcelona: Ediciones Paidós, 1998; HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro –
estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002; LEITE, Luiz Bernardo. Uma questão de justiça:
Habermas, Rawls e MacIntyre. In: FELIPE, Sonia T. (org.). Justiça como eqüidade. Florianópolis: Insular, p.
209-230, 1998; RAMOS, César Augusto. A crítica comunitarista de Walzer à teoria da justiça de John Rawls. In:
FELIPE, Sonia T. (org.). Justiça como eqüidade. Florianópolis: Insular, 1998, p. 231-243; TAYLOR, Charles. A
política de reconhecimento. In: _______. Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, [s.d.], p. 45-94; VAN
PARIJS, Philippe. Difference principles. In: FREEMAN, Samuel. (ed.). The Cambridge Companion to Rawls.
Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 200-240; NAGEL, Thomas. Rawls and liberalism. . In:
FREEMAN, Samuel. (ed.). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press,
2003, p. 62-85.
2
Cf. OLIVEIRA, Nythamar F. de. Tractatus ethico-politicus: genealogia do ethos moderno. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1999, p. 163-4. Nedel assevera que John Rawls é indubitavelmente um dos mestres da filosofia
moral e política mais respeitáveis da atualidade. Sua teoria da justiça se afigura incontornável pelos que se
prezam como estudiosos aplicados e sérios da ética social e da filosofia política, em nossos dias. (NEDEL, J. A
teoria ético-política de John Rawls: uma tentativa de integração de liberdade e igualdade. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2000, p. 188). Por fim, Nozick aponta: “Os filósofos políticos têm agora de trabalhar com a teoria
de Rawls ou explicar por que não o fazem”. (NOZICK, R. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: J. Zahar,
4

Por fim, restou imprescindível resgatar os princípios constitucionais, tendo em vista


especificamente a ausência de uma normatividade sobre as tecnologias reprodutivas e a
necessidade de apresentarmos as bases para os encaminhamentos sobre os questionamentos
éticos suscitados ao longo do trabalho. Ainda que nos pareça óbvio que todo o ser humano é
pessoa e, por essa condição, é dotado de dignidade e merecedor de toda garantia jurídica de
proteção contra possíveis violações à sua integridade e personalidade, a humanidade está, a
cada dia, reinventando sua historicidade e ampliando suas condições de existência. Assim
sendo, a dignidade humana, ainda que intrínseca, coloca-nos o problema da necessidade de
sua exigibilidade frente às inovações tecno-científicas engendradas pelas tecnologias
reprodutivas.

1991, p. 202).
5

1 AS TECNOLOGIAS CONCEPTIVAS NO BRASIL:


A BIOMEDICINA E O DIREITO

A tentativa de descrever os cenários nos quais se inscrevem as práticas e implicações


sobre Reprodução Assistida demanda duas precauções importantes. Primeiro, faz-se
necessário esclarecer o uso de expressões, conceitos e classificações que se encontram na
literatura sobre o tema. Requer, ainda, uma observação cuidadosa sobre a dificuldade que se
apresenta em registrar um processo que não está completo, pelo contrário, que está em
constante desenvolvimento e suscitando diferentes sentimentos. No campo do direito essa
tarefa é ainda mais tormentosa e, ao mesmo tempo, instigante, pois há que se registrar a marca
da transdisciplinaridade. Em outras palavras, não é possível tratar de moral, de família e de
reprodução sem recorrer às contribuições de disciplinas afins sob pena de realizarmos um
trabalho excessivamente dogmático e muito pouco conectado com o mundo dos fatos.3

Preliminarmente, há que se delimitar conceitualmente o objeto de estudo dessa


dissertação. As técnicas de reprodução assistida, conforme terminologia adotada pelo
Conselho Federal de Medicina, compõem um conjunto de procedimentos em reprodução

3
Geertz nos fala da interdependência entre o direito e a antropologia. Tais campos funcionam à luz do saber
local, tendo em vista a semelhança com que focalizam o objeto de seus estudos: “para conhecer a cidade é
preciso conhecer as ruas”. De fato, esse trabalho não se propõe a impregnar de significados jurídicos algumas
práticas sociais – especialmente em relação à filiação e parentesco – tão pouco corrigir raciocínios jurídicos
através de interpretações antropológicas. Como sugere Geertz, trata-se de um ir e vir hermenêutico entre dois
campos, a fim de formular as questões morais e políticas relevantes para os dois campos. (GEERTZ, Cliford. O
saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 249-253).
6

humana no qual o aparato biomédico interfere de alguma forma em células germinativas e


pré-embriões.4

As práticas de reprodução assistida são uma realidade que se populariza nos diferentes
segmentos sociais e ganha discussões acaloradas entre os profissionais das áreas médica e
jurídica.5

Do ponto de vista desta análise, existem dois processos que nos interessam
prioritariamente: a construção da normatividade, sobretudo nos debates para a elaboração e
aprovação de uma legislação para regulamentação das práticas médicas em Reprodução
Assistida, bem como as moralidades subjacentes às decisões judiciais sobre a representação
de família e parentesco.

Esses dois processos estão interligados, eis que se pretende que a normatividade
legislativa venha embasada em critérios e paradigmas concretizados pelos sujeitos no seu agir
humano compartilhado, especificamente no que tange ao modo pelo qual se realizam os
diferentes estilos de convivência familiar. Dessa forma, se o contexto explicativo para a
constituição de normas para a Reprodução Assistida se dá no âmbito da discussão sobre
parentesco e relações familiares, torna-se indispensável resgatar os possíveis
encaminhamentos orquestrados sob o domínio do discurso jurídico, notadamente da
jurisprudência, a fim de melhor compreendermos a vigência da representatividade dos estilos
familiares significativos para esse campo específico e suas repercussões.

Atualmente, a reprodução humana constitui-se em um campo teórico e empírico


destacado de transferência e aplicação dos conhecimentos biotecnológicos produzidos e
4
SILVA, Reinaldo Pereira e. Introdução ao biodireito: investigações político-jurídicas sobre o estatuto da
concepção humana. São Paulo: LTr, 2002, p. 52. A expressão ‘reprodução assistida’ é utilizada no meio médico
e na mídia em geral. Por outro lado, a expressão ‘novas tecnologias reprodutivas’ é utilizada particularmente por
estudiosos com interesse na área de gênero, os quais destacam o aspecto técnico de intervenção nas pessoas. Cf.
LUNA, Naara Lúcia de Albuquerque. Pessoa e parentesco nas novas tecnologias reprodutivas. Revista Estudos
Feministas, v. 9, n.2, p. 389-413, 2001. Para os fins desse trabalho serão empregadas as duas expressões para
referir o conjunto de técnicas e procedimentos, desenvolvidos no campo da biomedicina, que auxiliam nas
práticas de reprodução humana.
5
Em um estudo sobre a reprodução humana na pauta da mídia impressa brasileira, no período de 1996 a 2000,
Citeli discute a ‘desmesurada’ presença das ciências biológicas como fonte de informação para a cobertura da
mídia brasileira na abordagem de assuntos relativos à reprodução e à sexualidade. Há uma predominância de
matérias que utilizam como fonte publicações científicas e estudos da área biomédica. (CITELI, Maria Teresa. A
reprodução humana na pauta dos jornais brasileiros – 1996/2000. In: _______.(org.). Olhar sobre a mídia. Belo
Horizonte: Mazza Edições, 2002, p. 184-213).
7

acumulados nas últimas décadas de estudos sobre reprodução vegetal e animal. De acordo
com Rotania, as tecnologias, os procedimentos, os produtos e os processos vêm sendo
aplicados na procriação direta ou indiretamente tanto para a contracepção quanto para a
concepção artificial, avaliação pré-natal, manipulação embrionária, diagnósticos e
terapêuticas.6

A concepção humana, assim, realizada como condição de possibilidade da espécie


para a perpetuação da vida encontra-se submetida a um intenso processo de intervenção,
controle, medicalização e tecnologização, que se concretiza basicamente no corpo feminino
pelas suas características bio-fisiológicas.7

Nesse contexto de instrumentalização e medicalização da reprodução humana,


observa-se a vigência de elementos simbólicos e axiológicos presentes na construção do
próprio conhecimento, bem como na concretização das práticas, quer no campo da
biomedicina, quer no direito. Entretanto, quando se realiza um recorte no campo da
reprodução humana para problematizar a ausência de filiação e a busca de ‘soluções’ com
recurso às tecnologias conceptivas, há que se mencionar suas repercussões sobre as trajetórias
de vida dos sujeitos envolvidos, como também a maneira pela qual a própria sociedade se
organiza diante do dilema da ausência de filhos e da necessidade de continuidade da espécie
humana.

6
ROTANIA, A. A celebração do temor: biotecnologias, reprodução, ética e feminismo. Rio de Janeiro: E-
papers, 2001,p. 77-8.
7
Necessário faz-se advertir para a diferença entre engenharia genética e práticas médicas de assistência à
reprodução humana. A engenharia genética compreende as técnicas dirigidas para a alteração ou modificação da
herança de alguma espécie, seja com o fim de superar enfermidades de origem genética (terapia gênica), seja
para promover o melhoramento da espécie através da manipulação de determinadas características genéticas
(clonagem humana). A terapia gênica consiste na correção de genes defeituosos através da técnica do DNA
recombinante. A clonagem, por sua vez, consiste na retirada do núcleo de uma célula reprodutora e introdução,
nessa célula, do material genético do ser que irá ser clonado, copiado. Ver: GEDIEL, José Antônio Peres.
Tecnociência, dissociação e patrimonialização jurídica do corpo humano. In: FACHIN, Luiz Edson (coord.).
Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, p. 57-85, 1998; LEIVAS,
Paulo Gilberto Cogo. A genética, a eugenia e o conceito de dignidade humana. In: MARTINS-COSTA, Judith.
A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 551-570. De outra forma, as
práticas médicas de assistência à reprodução humana operam na perspectiva de mediação da demanda por filhos.
Tal demanda, entretanto, pode vir acrescida de outras particularidades como a possibilidade de escolha e ou
manejamento de caracteres físicos dos embriões, ou mesmo escolha desses embriões em bancos de sêmen de
doadores considerados inteligentes, por exemplo. No Brasil, o artigo 8 , III, da Lei 8.974, de 05.01.1995,
chamada Lei de Biossegurança, permite a intervenção em material genético humano exclusivamente para
tratamento de anomalias genéticas.
8

Segundo Vargas, a ausência de filhos não necessariamente está ligada a doença, mas
passou a ser tratada historicamente como uma patologia médica.8 Sob a perspectiva de uma
patologia, houve a necessária correspondência entre tratamento e intervenção médica e
infertilidade, eis que esta está intimamente ligada ao corpo humano, mais precisamente ao
corpo feminino.9

O fato de a infertilidade, então, estar intimamente conectada ao corpo feminino opera


diferenças no modo pelo qual homens e mulheres recorrem aos serviços de saúde.10 Essa
forma diferenciada de busca por auxílio médico reflete a existência de uma lógica específica
presente na configuração simbólica da demanda por filhos. Tal demanda revela, portanto,
características distintivas das identidades, bem como a ausência de filhos expõe publicamente
características físico-morais de mulheres e homens.11

8
VARGAS, Eliane Portes. Gênero e infertilidade na ótica feminina. In BARBOSA, Regina et. al. (orgs.).
Interfaces Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002, p. 311.
9
Pode-se, ainda, pensar a infertilidade no contexto das experiências humanas universais de sofrimento, aflição,
perturbação, mal-estar, concebida como doença física na tradição cultural ocidental e, portanto, tratável pelo
sistema de saúde. (VARGAS, Eliane Portes. Op. cit., p. 342, nota 15). De outra forma, a Organização Mundial
da Saúde define a infertilidade como a ausência de concepção natural depois de, pelo menos, um ano de
intercurso sexual periódico sem proteção anticoncepcional. A infertilidade pode ser relacionada a diversas
causas. Consoante nos afirma Silva, as causas mais comuns de infertilidade são de origem feminina: lesões das
trompas de falópio, tumores no útero, lesões do colo uterino, endometriose, transtornos hormonais, anomalias no
aparelho reprodutor. As causas de origem masculina representariam, aproximadamente, 30% do total das
infertilidades, destacando-se: impotência coeundi, alterações no sêmen ou diminuição da capacidade fecundante,
transtornos hormonais, anomalias ou transtornos testiculares, tumores nos testículos, tratamentos de tumores
malignos nos testículos ou em outros órgãos, infecções de próstata. (SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 50-
2). Segundo Corrêa, o perfil de prevalência da infertilidade feminina está associado, em nosso país, a um perfil
médico-sanitarista deficiente. Nas suas palavras, “ainda que de magnitude desconhecida, o problema da
infertilidade poderia ser minorado pelo combate às causas preveníveis (fibroses e bloqueio de trompas) através
de um bom sistema de saúde pública. Como isto não ocorre, acredita-se que um grande potencial de usuários
para as tecnologias reprodutivas está reprimido, em função dos elevados custos” (CORRÊA, Marilena Villela. A
tecnologia a serviço de um sonho: um estudo sobre a reprodução assistida. Rio de Janeiro: UERJ / Programa de
Pós-Graduação do Instituto de Medicina Social, Tese de Doutorado, 1997, p. 178). Como pode-se verificar, a
infertilidade tem uma configuração difícil, com diagnósticos médicos e critérios pouco precisos enquanto
categoria. Existe um grande número de situações de infertilidade nas quais não há obstáculo fisiológico
irreversível para a ocorrência de uma gravidez, mesmo assim ela não ocorre. Embora não seja possível
determinar definitivamente tal conceito, alguns projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional restringem
o acesso às novas tecnologias reprodutivas às hipóteses de ‘infertilidade’ comprovadamente diagnosticada, como
o substitutivo ao PL 90/99.
10
Destaca-se, ainda, para além das diferenças de gênero no que diz respeito à infertilidade que há uma
considerável diferença de classe social quanto à acessibilidade aos serviços de saúde para o fato da ausência de
filhos. Existem poucos serviços públicos, os quais possuem critérios rigorosos de seleção dos possíveis
pacientes/usuários. Em virtude da grande demanda e da diminuta oferta de vagas, muitas vezes há uma fila de
espera de mais de um ano para o atendimento. Além da desproporção entre a demanda e a oferta no setor
público, ocorre que o Sistema Único de Saúde não cobre os medicamentos utilizados nas diferentes fases do
‘tratamento’ médico. Dessa forma, para as classes sociais mais abastadas a oferta e as possibilidades de escolhas
são maiores. De acordo com Corrêa, há que se considerar, também, que nenhuma das etapas da Reprodução
Assistida é custeada por qualquer tipo de plano ou seguro de saúde, público ou privado. (CORRÊA, Marilena
Villela. Op. cit., p. 164-5).
11
VARGAS, Eliane Portes. Op. cit., p. 316. Cabe esclarecer que os estudos que refletem sobre a construção dos
papéis sociais atribuídos a homens e mulheres vêm ganhando espaço na academia com os, assim denominados,
9

As identidades de mulheres e homens estão relacionadas aos valores e às posições do


feminino e do masculino no contexto social. Isso porque a demanda por filhos não se dá da
mesma forma em todos os contextos – de classe, raça e gênero. Nas classes populares, por
exemplo, o constrangimento a que se vêem submetidos mulheres e homens pela ausência de
filhos enseja um comprometimento de ordem moral que atinge as identidades masculina e
feminina. ‘Pertubação’ e ‘vergonha’ são categorias explicativas dos efeitos e das
conseqüências da ausência de filhos nas trajetórias individuais desses homens e mulheres.12

Esse dado é relevante, pois torna possível olhar para a questão do acesso às
tecnologias reprodutivas tendo presente a dinâmica em que se opera essa busca por
descendência, que é específica e não se configura nos mesmos modelos familiares a que se
atribui uma certa hegemonia nas sociedades contemporâneas ocidentais.

O fato irrefutável com que devemos concordar é que todas as sociedades humanas
possuem uma exigência comum: a procriação.

Problemas como a definição dos mecanismos de legitimidade de pertencimento ao


grupo, os parâmetros para a constituição da identidade de uma pessoa num continuum
biológico e social, a regulamentação de direitos e deveres individuais são aspectos que, de

estudos de gênero. Para Scott, quando se fala em gênero, a referência que se faz é ao discurso da diferença dos
sexos. Este termo não se refere apenas às idéias, mas também às instituições, às estruturas, às práticas cotidianas,
aos rituais e a tudo que constitui as relações sociais. Portanto, o gênero é a organização social da diferença entre
os sexos. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas constrói o sentido dessa realidade (GROSSI,
Mirian; HEILBORN, Maria Luiza; RIAL, Carmem. Entrevista com Joan W. Scott. Revista Estudos Feministas,
Rio de Janeiro, v.8, n.1, 1998, p. 115). Warat infere que, quando se fala em gênero, está se colocando em
discussão as implicações que o exercício do poder tem sobre a configuração da subjetividade masculina e
feminina. Trata-se do gênero determinando as áreas de poder diferenciadas para ambos os tipos de subjetividade
masculina ou feminina, com distintos efeitos sociais. (WARAT, Luis Alberto. A questão de gênero no direito. In
DORA, Denise Dourado. Feminino e masculino – igualdade e diferença na justiça. Porto Alegre: Sulina, 1997, p.
59). De acordo com Heilborn, “o conceito de gênero ambiciona distinguir entre o fato do dimorfismo sexual da
espécie humana e a caracterização de masculino e feminino que acompanham nas culturas a presença de dois
sexos na natureza. Este raciocínio, explica a autora, apóia-se na idéia de que há machos e fêmeas na espécie
humana, mas a qualidade de ser homem e ser mulher é condição realizada pela cultura”. (HEILBORN, Maria
Luiza. De que gênero estamos falando? Sexualidade, Gênero e Sociedade, a. 1, n. 2, dez. 1994, p. 01-08).
12
No fragmento de uma entrevista realizada por Vargas, a entrevistada fala de sua ‘vergonha’ em não ter filhos:
“E vou ser até sincera. Às vezes, eu fico até com vergonha. Porque, às vezes, eu fico pensando assim: ‘será que
– um exemplo, uma suposição – a pessoa...’ como minha cunhada. Teve três filhos, tem até um bebê agora com
três meses. Aí, ela deixa muito o bebê comigo. Eu fico pensando: ‘será que se eu falar o meu problema, ela vai
duvidar?’Vai ficar depois, assim, qualquer coisa vai querer jogar na minha cara que eu não tenho filho e que eu
sou uma pessoa até, assim, recalcada?”. (VARGAS, Eliane Portes. Op. cit., p. 326-8).
10

alguma forma, são tensionados diante da circunstância da ausência de prole. Ocorre que cada
sociedade segue um costume coerente que lhe é próprio e é socialmente compartilhado.13

Desde a Antiguidade que a procriação, como um fato da natureza capaz de agregar


valores e concepções dos homens, é um território onde transitam ponderações sobre
comportamentos considerados adequados ou não e sobre as devidas recomendações em
relação aos cuidados que deveriam ser tomados nas relações heterossexuais que teriam por
objetivo a consecução dos fins precípuos de um intercurso sexual. Contemporaneamente,
substituiu-se as palavras dos sábios ou dos pajés pelas dos clínicos e especialistas médicos na
hipótese de não concretização da demanda por filhos. Isto porque, como no início da
organização moderna das sociedades ocidentais, se acredita que pela forma como se realizam
as uniões sexuais é possível determinar as características do embrião e marcar seu
desenvolvimento.14

Esta simbologia ainda está muito presente entre nós. O projeto de ser humano advindo
da união sexual ou da terapêutica médica está fadado a carregar os estigmas/símbolos
anteriores à sua própria existência. Tal responsabilidade pode ser medida pelos cuidados na
seleção, organização e normatização daqueles que terão acesso, por exemplo, aos
procedimentos de RA.15 O equilíbrio observado em sua plenitude na natureza deve ser
preservado naquilo que o homem maneja, a fim de que seja compatível com a perfectibilidade
encontrada na ordem do natural. Por isso, o reforço em um modelo tradicional de constituição
familiar, a fim de evitar possíveis descaminhos.

Assim sendo, para que se compreendam as repercussões da descoberta de novos níveis


de organização, estrutura e funcionamento dos seres vivos, isto é, do processo de construção
do conhecimento sobre a natureza viva e suas condições de possibilidades, devemos nos
remeter ao contexto de reformulação simbólica civilizacional operada a partir do século XVII.

13
HÉRITIER, Françoise. A coxa de Júpiter – reflexões sobre os novos modos de procriação. Revista Estudos
Feministas, v. 8, n.1, 2000, p. 98.
14
ROTANIA, Alejandra. Op. cit., p. 43.
15
Doravante a expressão será indicada por RA. Inicialmente, tais práticas médicas que permitiam que pessoas
estéreis fossem capazes de procriar eram denominadas ‘artificiais’. Posteriormente, a expressão foi substituída
por ‘reprodução assistida’, segundo Corrêa, em função de impasses e contradições surgidos no uso e na difusão
da tecnologia, sendo preferível, assim, mantê-la no domínio do natural. (CORRÊA, Marilena Villela. Op. cit., p.
184).
11

No período entre os séculos XVII e XIX, observa-se a instauração daquilo que


denominamos como Modernidade. Opera-se um recorte nas fronteiras simbólicas do
conhecimento sobre a reprodução: por um lado, é fato natural resistente ao olhar, arredio à
compreensão e coberto de segredos; por outro, expõe-se às influências de uma nova visão de
mundo.

As características do processo hermenêutico sobre a origem e especificidade da vida


revelam-se em um contexto histórico dividido por duas estruturas ontológicas distintas. De
um lado, a natureza torna-se um complexo de corpos entendidos em termos de medição,
volume e movimento, articulados por relações de causa e efeito, desprovidos de finalidade,
em que a subjetividade humana se destaca na sua unicidade e superioridade de razão e
vontade. De outro, está uma visão da natureza que parece ajustar-se aos esquemas teóricos
dos antigos, a qual escorrega para o mistério e coaduna-se com a idéia de um ser humano
vinculado ao todo existente, ao cosmos.16

É nesse contexto dicotômico entre a natureza como objeto intelegível e mensurável e a


natureza como algo a ser descoberto que são renovadas as associações entre a mulher, a
sexualidade, a fertilidade e a sacralidade da natureza.

Conforme Rotania, o indeterminado, o acaso e o mistério são paulatinamente negados


e refutados. A natureza se transforma gradualmente em ‘objeto da ciência da natureza’ no
contexto de um modelo cognitivo que passa a interpretá-la como algo que pode ser conhecido
e concomitantemente manipulado pela técnica.17

Na fase atual do desenvolvimento da racionalidade humana sob a qual nos


encontramos se propõe a discussão sobre o falso dilema irreconciliável entre natureza e
cultura no contexto das práticas médicas de Reprodução Assistida no Brasil.

Assim sendo, este trabalho, tendo como tema o processo de regulamentação jurídica
das tecnologias reprodutivas no Brasil, pretende confrontar as diferentes perspectivas de

16
ROTANIA, Alejandra. Op. cit., p. 48-9.
17
Os remanescentes valorativos positivos da natureza feminina foram revertidos, por volta da segunda metade do
século XVI e primeira metade do século XVII, coincidentemente no período da emergência da visão racional-
mecanicista. (Ibidem, p. 55-6).
12

modelos familiares possíveis para a hipótese de utilização de técnicas de RA. Destaca-se


assim, preliminarmente, que existem diferentes tipos de representação familiar, entretanto, um
modelo em especial se pretende hegemônico no contexto dos debates para a regulamentação
da RA e, por esse prisma político, mais desejável em detrimento de outros possíveis. Tal
modelo familiar hegemônico encontra apoio entre alguns dos atores envolvidos no processo
de construção da normatização em discussão, e isto implica restrições e padronizações que
serão apresentadas e discutidas ao longo do texto.

Pretende-se, através da antropologia do sujeito moral e de direito atribuída em cada


uma dessas bases teóricas, contemplar suas influências e repercussões sobre as categorias
utilizadas para elaboração da normatização em RA.

Para tanto, faz-se necessário fixarmos e explicitarmos o campo conceitual


compreendido pelas tecnologias reprodutivas. Estas podem ser dividias em métodos de baixa
e de alta complexidade. Entre as técnicas de baixa complexidade, citam-se a programação das
relações sexuais e a inseminação intra-uterina (IIU), pois são de baixo custo. Entre as de alta
complexidade, incluem-se a fertilização in vitro convencional e a injeção intracitoplasmática
de espermatozóide (ICSI).18

As tentativas de reprodução artificial, mutação e/ou manipulação genéticas não são


propriamente ‘novas’. A primeira experiência em inseminação artificial em mamíferos data
do século XIV. No âmbito da fecundação humana artificial, as experiências mais antigas eram
as realizadas in vivo, independente do intercurso sexual, v. g. inseminação artificial homóloga
e heteróloga, ao passo que a fecundação artificial in vitro, por envolver a manipulação
laboratorial dos gametas fora do útero, é mais recente.19

18
PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. 6. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 187.
19
No campo da reprodução humana, as experiências de Inseminação Artificial iniciam no século XVIII. Em
1791, o médico inglês Hunter realizou a experiência de injetar esperma de um homem na vagina de sua esposa.
Entretanto, somente em 1799 foi relatada a primeira gravidez resultante do procedimento. Cf. Dossiê
Reprodução Humana Assistida. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.
Agosto de 2003. De acordo com Rohden, no Brasil, a fecundação artificial já era descrita pelo periódico Brazil
Medico, em 1912, da seguinte forma: “A técnica de fecundação artificial é simples. Estando tudo preparado, faz-
se com que o coito se realize com um condom (camisa de Vênus), onde o esperma se ajunta, recolhe-se-o depois
em uma cápsula esterilizada, e com uma seringa de Braun injeta-se um pouco dele no útero”. ROHDEN,
Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo, contracepção e natalidade na medicina da mulher. Rio de Janeiro:
UFRJ/Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Tese, 2000.
13

Na primeira metade do século XX, os estudos sobre as células e o desenvolvimento da


genética contribuem para a complexificação e especificação dos processos reprodutivos e
genéticos.

Em 1953, nos Estados Unidos, é realizada a primeira fecundação por inseminação


artificial com esperma congelado. Com a possibilidade de congelamento de células
germinativas, desenvolvem-se instituições específicas para o cuidado desse tipo de material
genético, como os bancos de sêmen, e, hoje, os bancos de óvulos e de embriões.20

A fertilização in vitro (FIV) e a transferência de embriões em animais começam a ser


desenvolvidas nos anos cinqüenta, dando origem à FIVETE21 - técnica básica dos ‘bebês de
proveta’. As tentativas tornadas públicas de utilização dessa técnica em humanos data do
início da década de setenta. Em 1978, na Inglaterra, é realizada a primeira fecundação in vitro
levada a termo com o nascimento de Louise Brown – o primeiro ‘bebê de proveta’ 22 do
mundo.

Nas primeiras décadas do século XX, o assunto ganha espaço em razão da queda das
taxas de natalidade e dos resultados deste fenômeno para as nações. De outra forma, no
cenário médico brasileiro alguns estudos passam a tratar da ausência de fecundidade e suas
conseqüências para, primeiramente os indivíduos e para o casal, posteriormente, para a
sociedade.23
20
Na França, existem bancos de sêmen desde 1973 (Centre d’Étude et de Conservation du Sperme – CECOS).
No Brasil, o primeiro banco de sêmen foi instalado no Hospital Albert Einstein, em 1993. Nos referidos bancos
de armazenamento, os gametas são congelados e os pré-embriões são criopreservados até que concretizem seus
fins ou no caso de embriões excedentes, sejam doados, utilizados em pesquisa ou eliminados. Pelo fato de não
haver uma normatização a respeito do destino desses embriões, cada clínica opera segundo seus próprios
critérios organizacionais, a despeito de a Resolução n. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina proibir o
descarte de pré-embriões excedentes, conforme item V, número 2, que trata da criopreservação de gametas ou
pré-embriões, in verbis: “o número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos
pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser
criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído”. Outra questão bastante conflituosa envolvendo os
bancos de sêmen diz respeito à responsabilidade destes em guardar semelhança física entre doadores e usuários.
Observa-se, aqui, um dado semelhante às expectativas conhecidas em relação à filiação por adoção. Também na
adoção privilegia-se tal aproximação de características físicas entre adotante e adotado. Há uma supervalorização
da identificação pelos atributos físicos em relação à palavra, afetividade e convivência. Conforme noticia Corrêa,
um estudo revelou que 80% dos casais que recorreram à inseminação artificial por doador e tiveram êxito na
rede francesa de CECOS pediam que, em uma demanda por outro filho, fosse utilizado o sêmen do mesmo
doador para que as crianças guardassem semelhança física. (CORRÊA, Marilena Villela. Op. cit., p. 201).
21
Em inglês, in vitro fertilization embrio-transfert (FIV-ET).
22
A expressão ‘bebê de proveta’ é equivocada, pois a proveta é um instrumento de medida de volume de
líquidos. A inseminação, em realidade, ocorre em tubos de ensaio ou placas de Petri.
23
ROHDEN, Fabíola. Op. cit., p. 238. De acordo com Citeli, na década de 80, os pesquisadores constatavam
uma queda brusca de fecundidade no Brasil. (CITELI, Maria Teresa. Op. cit., p. 184).
14

Apesar da preocupação com a referida queda das taxas de crescimento populacional,


hoje, observa-se no Brasil o argumento da solidariedade para com o contingente cada vez
maior de crianças abandonadas e/ou órfãos para limitar ou, em algumas hipóteses mais
extremas, impedir o acesso às tecnologias reprodutivas. Partindo de outra lógica, também a
defesa da autonomia não é bem aceita na sociedade brasileira. Logo, estes argumentos não
servem para fundamentar um possível direito ao acesso às tecnologias reprodutivas, pois esse
‘direito de gerar’ através do uso dessa tecnologia implicaria a alteração da sacralidade da
maternidade e a exigência da presença de um pai, seja o biológico ou o social. O acesso
irrestrito às práticas médicas de RA desestabilizaria uma ‘relativa’ segurança que existe
quando os indivíduos associam as uniões heterossexuais à continuidade da espécie humana.
Dessa forma, na hipótese de não alinhamento dos estilos de vida com um determinado modelo
hegemônico de família, há a necessidade de se combatê-lo, daí porque os projetos de leis
retratarem essa tentativa de manutenção das relações de parentesco e filiação circunscrita aos
critérios de conjugalidade e heterossexualidade. É o que ocorre com as adoções e é o que se
pretende com a normatização das tecnologias reprodutivas conforme as propostas existentes
até o momento.

Do ponto de vista normativo, como já foi antecipado na introdução deste trabalho, o


único ato em vigor que se propõe a regulamentar os procedimentos de reprodução
medicamente assistida é a Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1.358/92. Trata-se
de uma norma pouco conhecida fora da classe médica e que elenca alguns princípios básicos,
inspirados em legislações estrangeiras.

Esta resolução tem como critério de acessibilidade a indicação terapêutica do uso das
técnicas de reprodução medicamente assistida. Em nenhum momento essa Resolução do
Conselho Federal de Medicina menciona impedimentos ao emprego das técnicas em
indivíduos solteiros.24

Diante desse contexto, faz-se necessário adentrarmos nos conceitos relativos aos
procedimentos e refletirmos sobre os efeitos do uso das tecnologias conceptivas.

24
Assim resolve o Conselho Federal de Medicina quanto aos usuários das técnicas de reprodução assistida: “1 -
Toda mulher capaz, nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta
Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em
documento de consentimento informado. 2 – Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do
cônjuge ou do companheiro, após processo semelhante de consentimento informado”.
15

1.1 Os procedimentos médicos e as implicações na saúde: o corpo manipulado

As técnicas de reprodução medicamente assistidas desenvolvidas até o presente


momento no campo da biomedicina apresentam uma grande variedade de procedimentos que
concretizam a reprodução humana in vivo ou in vitro, os quais independem do intercurso
sexual. A fim de elucidar a linguagem e as idéias exigidas para o enfrentamento do tema, a
partir de agora serão adotados os conceitos básicos abaixo referidos, tendo em vista que o
objetivo não é discorrer intensamente sobre os procedimentos, mas sim lançar outros olhares
sobre suas implicações, sobretudo no campo do direito.25

Dessa forma, dizemos que a Inseminação Artificial (IA) se desenvolve quando os


espermatozóides ou o sêmen são capacitados em meio de cultura e introduzidos por meio de
sonda no trato genital feminino. A Inseminação Artificial pode ser homóloga ou heteróloga.
Será homóloga quando utilizar o sêmen ou espermatozóide do parceiro da mulher inseminada.
Neste caso, pressupõe-se a existência de um vínculo jurídico de natureza familiar (casamento
ou união estável) entre o homem e a mulher em que será realizada a inseminação. A
inseminação heteróloga, por sua vez, implica a utilização do sêmen ou espermatozóide de um
doador. Assim sendo, não há vínculo jurídico entre a mulher e o homem de quem provém o
sêmen utilizado no procedimento. Como todo o procedimento médico, a inseminação sujeita a
mulher a diversos riscos identificados sob a designação genérica de ‘síndrome de
hiperestimulação ovariana’, podendo culminar em falência renal e acidentes trombóticos.26

Na Fertilização in vitro ou na Transferência de Embriões (FIVETE) a fertilização do


óvulo é realizada em laboratório e depois de três dias aproximadamente os pré-embriões de 4
a 8 células são transferidos para a cavidade uterina. Portanto, trata-se de um procedimento de
fertilização extracorpórea. Uma das principais implicações que se pode destacar quanto à
prática da fertilização in vitro diz respeito à possibilidade de o óvulo e/ou a própria gestação

25
As definições foram coletadas a partir de PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Op. cit., p.
188-9; ROTANIA, Alejandra. Op. cit., p. 83-132 e SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 53-73.
26
Cf. SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 56-7. De acordo com Oliveira, a estimulação hormonal gera, entre
outros efeitos colaterais, desequilíbrios hidroeletrolíticos, turvação visual, hipertrofia dos ovários. (OLIVEIRA,
Fátima. Filhos(as) da tecnologia: questões éticas da procriação assistida. O Mundo da Saúde, v. 21, n. 3,
mai./jun. 1997, p. 170).
16

ser desenvolvida em ‘maternidade de substituição’. Esse recurso é empregado quando além da


infertilidade soma-se a dificuldade para levar a termo uma gestação, como, por exemplo, por
má formação uterina. Segundo o Conselho Federal de Medicina, o recurso à maternidade de
substituição ou doação temporária do útero é possível, desde que exista um problema médico
que impeça ou contra-indique a gestação.27

Na Transferência Intratubária de Gametas (GIFT), os espermatozóides processados e


os óvulos recém colhidos por aspiração vaginal ou por laparoscopia são transferidos
diretamente para as trompas onde ocorrerá a fertilização in vivo. A principal utilização desse
procedimento é no tratamento da infertilidade sem causa explicada, também conhecida como
idiopática.28

Na Transferência Intrafalopiana de Zigoto (ZIFT), o óvulo já fertilizado em


laboratório é transferido para a trompa de Falópio.

Na Injeção Intracitoplasmática do Espermatozóide (ICSI), um único espermatozóide é


injetado no citoplasma do óvulo (zona pelúcida) por meio de um micromanipulador.
Desenvolvida no início dos anos 90, a ICSI foi utilizada na reprodução de seres humanos
antes mesmo de ser testada em outros animais. Esse procedimento faz com que a etapa de
seleção natural do espermatozóide mais apto seja artificialmente suprimida, pois o
espermatozóide é introduzido no óvulo, podendo ocorrer, nesse intervalo, reações metabólicas
que originam possíveis anomalias genéticas ou atraso no desenvolvimento psicomotor.29

Na Transferência ou Injeção de Citoplasma ou Heteroplasmia Mitocondrial 30,


aproximadamente 10 a 20% do óvulo de uma doadora jovem são transferidos para o óvulo de
uma paciente receptora em idade mais avançada para possibilitar embriões com maior poder
de implantação. Ao ser injetado citoplasma de óvulos mais jovens, ocorre uma transferência

27
Ver Resolução n. 1.358/92, item VII, de 1 a 7. Como uma implicação importante, destaca-se que a taxa de
nascimentos de prematuros resultantes de fertilização in vitro é aproximadamente seis vezes maior (24 a 29,5%)
que sua ocorrência em gravidezes que não recorreram às tecnologias (4 a 6%). (SILVA, Reinaldo Pereira e. Op.
cit., p. 66-7).
28
São necessários os seguintes procedimentos preparatórios: uma laparoscopia ou minilaparoscopia na mulher,
sendo exigida sua internação, bem como uma histerossalpingografia, a fim de avaliar o estado das trompas. Cf.
SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., 58-9.
29
Essa técnica é indicada para casos de infertilidade masculina – por escassez ou baixa mobilidade dos
espermatozóides. Cf. SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 67-8.
30
Alguns autores chamam de ‘técnica de revitalizaçao’.
17

de enzimas para o óvulo da receptora. Essas enzimas colaboram para fortalecer o mecanismo
de distribuição cromossomática que se encontra prejudicado nos óvulos de uma mulher em
idade mais avançada.

Na Fecundação sem Espermatozóide, as espermátides ‘redondas’ (células precursoras


dos espermatozóides que não possuem o flagelo) são resgatadas dos testículos, maturadas em
laboratório e inserida no óvulo através da ICSI.

Para além da delimitação conceitual dos procedimentos de RA, deve ser relatado,
ainda que sumariamente, o percurso anterior à manipulação propriamente dita. Com este
dado, pode-se compreender e avaliar as implicações dos procedimentos técnicos sobre os
corpos, sobretudo o feminino. A descrição deste processo nos permite vislumbrar a não
trivialidade das manipulações pelas quais passa o corpo feminino.

O Método de Ovulação Programada (MOP) consiste na estimulação hormonal


ovariana e indução do desenvolvimento folicular através de duas substâncias: o clomifeno e o
hMG (human Menopausal Gonadotropim). Ainda hoje, é difícil controlar a ovulação
programada, podendo ocorrer riscos de saúde para as mulheres submetidas ao tratamento.31

O passo seguinte à ovulação programada é o controle do tratamento. Este controle


consiste na coleta de sangue e no exame ecográfico para determinar o número dos folículos de
tamanho grande presente nos ovários.

Posteriormente, se procede, ainda, ao desencadeamento da ovulação com o auxílio do


hormônio hCG (human Chorionic Gonadotropim), a fim de determinar com precisão o
momento da coleta de óvulos maduros. Usando o tratamento hormonal sabe-se que 34 a 36
horas após é possível programar o horário das intervenções.

A coleta dos óvulos se realiza por celioscopia, isto é, por anestesia geral ou punção
sob controle ecográfico (anestesia local). Uma grande agulha é introduzida sucessivamente
em cada um dos folículos maduros; o conteúdo é aspirado com ajuda de uma seringa, ou de
31
O clomifeno é utilizado para levar à maturação dos folículos. O hMG, ministrado via intramuscular, é um
complexo hormonal extraído da urina de mulheres menopáusicas, cuja atuação é induzir o crescimento do
folículo num ciclo natural. Cf. ROTANIA, Alejandra. Op. cit., p. 84-5.
18

uma bomba a vácuo e levado ao laboratório. Esta agulha de punção pode ser introduzida no
abdome por diferentes vias: através do fundo da cavidade vaginal ou pelo canal da uretra.32

Por fim, procede-se à ‘lavagem uterina’ que consiste em procedimento preparatório à


fertilização. Decorridos três ou quatro dias da fecundação e antes da implantação, o útero é
‘lavado’e o embrião é transferido ao útero de quem o gestará.33

Como se observou, os aspectos conceituais referentes à RA apresentam uma instância


em processo de construção e consolidação. As definições, assim, sinalizam uma construção
teórica multidisciplinar que agrega aspectos do dinamismo dos eventos tecnológicos e a
relativa parcimônia com que é acompanhada e compreendida pelos diferentes ramos das
ciências, em especial pelas ciências jurídicas e sociais.

Dessa forma, destacamos que essa não banalização dos procedimentos e a sua
necessária explicitação nos possibilita ter outras perspectivas quanto aos questionamentos que
são realizados aos sujeitos-pacientes que se submetem a essas intervenções no próprio corpo.
É possível que em uma leitura mais apressada se possa ainda repetir um discurso que vincula
as técnicas de RA a meros desejos individualistas de realização pessoal ou de um casal. O que
se pretende por aqui é dimensionar, através da confrontação com outros dados e argumentos,
o fenômeno das tecnologias reprodutivas no contexto brasileiro, para além de um discurso que
opõe tecnologia e mulheres, moralidade e imoralidade, normalidade e anormalidade.

Se, por um lado, temos implicações de ordem prática e moral quanto aos
procedimentos, por outro, tais efeitos, muitas vezes inevitáveis, são alvo de um
aperfeiçoamento do aparato tecno-científico, a fim de melhorar os níveis de eficácia dos
tratamentos e procedimentos para auxiliar na concretização das demandas por um filho.34
Entretanto, sabe-se que esses ‘novos’ modos de reprodução não estão ligados numa relação de
causalidade pura ao desenvolvimento tecnológico e científico. Ao contrário, conforme nos
32
Conforme noticia Silva, tem-se desenvolvido uma técnica para recuperar por aspiração os gametas femininos
através de uma agulha guiada por ultra-som, evitando a laparoscopia. Esta nova técnica, ainda que menos
custosa e invasiva, não descarta o risco de uma hemorragia oculta. (SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 62-
3).
33
ROTANIA, Alejandra. Op. cit., p. 83.
34
Segundo Brauner, as taxas de sucesso nos procedimentos em RA, nas clínicas mais famosas, não chegam a
15%. Esse número é discutível, sem dúvida, pois não há segurança e confiabilidade nos dados, eis que não há
recomendação para o registro dessas práticas pelo Conselho Nacional de Saúde, nem uma obrigatoriedade no
acatamento dos protocolos do Conselho Federal de Medicina, no que diz respeito a clínicas particulares.
19

sugere a análise de Héritier, somos apresentados a diferentes fórmulas que, em algum tempo e
espaço, foram atualizadas e ressignificadas, em outras sociedades.35

Os sistemas de filiação (que consagram o pertencimento a um grupo socialmente


definido), os sistemas de parentesco (que determinam o modo pelo qual classificamos e
denominamos nossos parentes consangüíneos e aliados), as modalidades de aliança
matrimonial e os modelos familiares são dados eminentementes sociais. Isso significa que, se
qualquer dessas instituições fosse biologicamente fundada e, portanto, natural e necessária,
ela se apresentaria universalmente da mesma forma.36

Tanto estas instituições não são biologicamente fundadas que observamos os mais
variados estilos de vida familiar: famílias nucleares, reconstituídas (formadas pela
convivência entre os filhos do homem e da mulher de uma união anterior), monoparentais
(por circunstâncias ou por opção). O que a própria Constituição Federal de 1988 chamou de
‘entidade familiar’, no seu artigo 226, parágrafo 4 , nada mais é que a legitimação de fatos
sociais que passavam ao largo da proteção do Estado, mas que, diante da sua
representatividade dentro da sociedade, tiveram sua expressividade acatada como forma de
garantir os direitos dos sujeitos que compartilham daquelas relações, notadamente os filhos.

Partimos do pressuposto de que não é razoável nem racional pensar em um único


modelo de família, mas sim em uma pluralidade de organizações familiares que figuram, a
seu tempo, em bases constitucionais. Não há espaço para distinções ou hierarquizações
apriorísticas entre as várias espécies de famílias, uma vez que cumprem com sua função
teleológica. Nesse sentido, as famílias monoparentais formadas com o recurso das tecnologias
reprodutivas não deveriam, de antemão, sofrer qualquer impedimento, sobretudo legal, para a
sua constituição. Como veremos adiante, a lógica subjacente aos argumentos restritivos do
acesso, por exemplo, de mulheres solteiras, à RA, fixa-se na necessidade de realinhar tais
práticas à ordem da natureza. Esse tema, entretanto, propicia que se vislumbre algumas

35
Sua reflexão não se apóia em considerações de caráter moral sobre a difícil classificação dos fatos em normal e
anormal, natural ou artificial, haja visto que os fatos referentes ao parentesco e a filiação são, via de regra, em
toda a parte, uma questão de convenção social. Não sugere, ainda, que se possa adotar modelos passíveis de
adaptação a qualquer sociedade.
36
As regras que definem a filiação, este lugar necessário e de direito do qual depende o reconhecimento do lugar
dos sujeitos na família e na sociedade, são ancoradas naquilo que o corpo humano, e portanto a natureza
humana, tem de mais irredutível: a diferença dos sexos. Cf. HÉRITIER, Françoise. Op. cit., p. 99.
20

interfaces, entre as quais podemos destacar a desbiologização da reprodução e das relações de


parentesco e filiação.

1.1.1 Ausência de prole e o dever de descendência: a reprodução como um direito ou um


dever?

Com o processo de urbanização, costumes foram sendo substituídos: a grande prole


deu lugar a um número reduzido de filhos. Esse número reduzido de filhos possibilitou um
maior convívio e estreitamento das relações, permitindo que a afetividade fosse erigida a
elemento base da família, indicando, assim, uma modificação no modelo tradicional de
constituição familiar.37

Estes aspectos contribuíram para que se instalasse um descompasso entre o discurso


jurídico e a pluralidade social, esta se impondo ao direito como realidade inafastável e, por
outro lado, impulsionadora de uma mobilização dos núcleos familiares para que buscassem
alternativas para uma maior proteção dos seus interesses.

Imprimiu-se uma ‘nova tábua de valores’,38 onde a tutela da dignidade humana refletiu
diretamente nos valores fundantes das relações parentais e familiares.39

O grupo familiar originado do vínculo matrimonial já não é o único destinatário de


reconhecimento. Acima da exigência do vínculo jurídico, há a proteção à formação social que
apresente as condições de estabilidade e responsabilidade social necessárias ao

37
CARBONERA, Silvana M. O papel jurídico do afeto nas relações jurídicas. In: FACHIN, Luiz Edson (coord.).
Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 283. De acordo com
Costa, a família brasileira, no período colonial, constituía-se por razões que consideravam, tão-somente, os
interesses e benefícios econômicos e sociais do grupo familiar. Os motivos de ordem afetiva raramente pesavam
na determinação de uma união conjugal. O casamento não celebrava, portanto, o reconhecimento social da união
amorosa entre indivíduos. O amor não era um pressuposto necessário para a ligação conjugal. No entanto, esta
espécie de prática matrimonial entrou em desuso já no século XIX. O núcleo familiar formado com apelo
exclusivo à defesa da propriedade revelou-se pouco hábil na proteção da infância. As preliminares para a
garantia de um bom casamento mudaram de tom. O compromisso essencial do casal passa a ser com filhos. Não
se tratava mais, nas palavras de Costa, de amar o pai sobre todas as coisas, e sim a raça e o Estado como a si
mesmo. No casamento idealmente concebido o cuidado com a prole converteu-se no grande paradigma para a
defesa da raça e do Estado. Cf. COSTA, Jurandir Freira. Ordem médica e norma familiar. 4. ed. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1999, p. 215-219.
38
TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações de família. In: TEIXEIRA, Sálvio de
Figueiredo (coord.). Direitos de família e do menor. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 48.
39
CARBONERA, Silvana M. Guarda de filhos na família constitucionalizada. Porto Alegre: Sérgio Fabris
Editor, 2000, p. 36.
21

desenvolvimento das potencialidades de cada um de seus membros e ao manejo da educação


dos filhos.

Para além das estruturas sociais organizadoras das relações afetivas entre homens e
mulheres, foi preciso desenvolver mecanismos de adaptação para o fato da ausência, seja
voluntária ou não, de descendência.40

O ser humano, assim sendo, diante daquilo que é observável e inteligível sobre os
fatos da natureza e de sua capacidade de analisá-los criticamente, construiu suas instituições e
estrutura social, os quais realizam a função de legitimar os fatos sociais. Dessa forma, foram
engendradas as mais variadas formas de superação desse ‘problema’41 e de conferir
legitimidade e inscrição social dos filhos.

O estatuto dos filhos naturais é sempre visto de forma mais ou menos satisfatória. Não
existem, até nossos dias, sociedades humanas que sejam fundadas unicamente sobre a simples
consideração da procriação biológica ou que lhe tenham atribuído a mesma importância que a
filiação socialmente definida. Todas consagram a primazia do social – da convenção jurídica
que funda o social – sobre o biológico puro. A filiação não é, portanto, um simples derivado
da procriação. Isto porque sempre existiram mulheres e homens que, ao se unirem, não
produziram filhos. Assim sendo, havia a necessidade de contornar tal situação, o que
acarretou na construção de diferentes mecanismos de superação da ausência de filhos ditos
naturais por filhos advindos de laços afetivo-sociais.42

40
Sabe-se que a ausência voluntária de prole é observada como uma expressão do egoísmo e individualismo
exacerbado dos ‘tempos modernos’, merecedora, portanto, de um juízo depreciativo. Diferentemente, mas
também negativa do ponto de vista social, a ausência não desejada de filhos enseja sentimentos de culpa e
vergonha pela incapacidade de gerar, além da prevalência de um mal-estar gerado pela sensação de
incompletude. Tais sentimentos, por óbvio, divergem segundo os recortes de gênero e de classe social.
41
O ‘problema’ da ausência de filhos pode ser ilustrado com estes dois trechos de falas de duas mulheres
entrevistadas por Vargas: “As [mulheres] que não conseguem, muitos têm pena. É o primeiro sentimento que
vem, né? Coitada não pode ter filho”. O outro trecho destaca a impossibilidade de ter filhos como um
‘problema’ que legitima a mulher a procurar um tratamento: “Mesmo sabendo que pelo menos não é assim, não
é coisa que ela arrumou, que é coisa que aconteceu. Ela já nasceu com esse problema. Mas ela se sente
diferente. Ainda mais quando ela vê uma mulher ou grávida ou o neném novinho. [...] A mulher que não tem
filho, tem muita gente que fala assim: ‘uma figueira’, né, que não tem fruto”. Cf. VARGAS, Eliane Portes. Op.
cit., p. 329-330.
42
Se as instituições sociais como o casamento, a filiação ou as formas de organização familiar fossem fundadas
biologicamente, elas não variariam e se apresentariam sempre de uma mesma forma universal e necessária, o que
não encontra correspondente no mundo dos fatos, em conformidade ao mencionado anteriormente.
22

Ao nascer, a criança não existe como ser humano único e inteiro. Ela é vista como
resultado, por exemplo, da justaposição de um certo número de componentes, alguns destes
herdados dos próprios genitores. A criança está encerrada numa série de determinismos e
inscrita numa linha de descendência que assinala um continuum. Essa criança só existe como
pessoa quando lhe é atribuída sua respectiva identidade social, identidade essa marcada pelo
nome. De acordo com Héritier, uma demanda por filhos parece tratar-se mais de um desejo de
descendência e de um desejo de realização do que de um desejo de filho, e mais da
necessidade de cumprir um dever para consigo mesmo e com a coletividade do que da
reivindicação de um direito de possuir. Dessa forma, nessa perspectiva, o desejo e o dever de
descendência também se constituiriam em um desejo e dever de realização. As duas
dimensões não estão dissociadas, e, portanto, a supervalorização de uma em detrimento da
outra é um dado a ser problematizado, pois pode revelar pressupostos estrategicamente não
explicitadas.

Observa-se que os argumentos utilizados para a restrição do acesso às práticas de RA,


de uma maneira geral, apontam para uma dimensão de concretização de desejos egoístas, para
a satisfação de interesses meramente individuais ou de um casal. Pensar diferentemente deste
lugar comum é questionar até que ponto a reprodução, como uma necessidade humana, pode
ser encarada a partir de uma perspectiva de um dever e não de um direito. Em sendo um dever
de descendência, a demanda por filhos e, por outro lado, a ausência involuntária dos mesmos
inserem-se em um contexto normativo: o dever-ser do homem é, então, continuar e zelar pela
sua vida e de outros.43

Dessa forma se justifica que aqueles que não cumprem esse dever de continuidade da
espécie devam procurar ‘remediar’ tal obrigação, seja pela adoção, seja pelo recurso às
tecnologias reprodutivas.44

43
Nesse sentido, Corrêa afirma que, em alguns modelos societais, o indivíduo tem o dever de assegurar sua
continuidade pela descendência. No Ocidente, ele procria também por esses motivos, mas principalmente porque
‘deseja ter filhos’. Mesmo que persista uma forte pressão social a favor da realização desse desejo, a procriação,
em nossa sociedade, não é tida como um dever social inquestionável. E nos casos de impossibilidade de
realização, esse desejo era ‘resolvido’ pela adoção. (CORRÊA, Marilena Villela. Op. cit., p. 189).
44
Sobre uma aparente oposição entre as tecnologias reprodutivas e a adoção, ver: BRAUNER, Maria Claudia
Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 45-148. De acordo com Brauner, embora a adoção constitua uma experiência construtiva e
enriquecedora, ela não representa o caminho escolhido por todos os que não podem gerar naturalmente. Nesse
sentido, a autora reconhece a legitimidade do recurso aos tratamentos para a infertilidade e esterilidade
oferecidos pela ciência moderna (Ibidem, p. 64). No mesmo sentido, ver: CORRÊA, Marilena Villela. Op. cit., p.
189-190.
23

De fato, a preocupação em resolver socialmente a ausência involuntária de filhos


implicou, em quase todas as sociedades, arranjos mais ou menos públicos entre os indivíduos
dos dois sexos, indicando que a esterilidade foi sempre mal vista e repudiada como uma
infelicidade. Todavia, em quase todas as sociedades humanas, a falta de filhos é, antes de
tudo, uma responsabilidade das mulheres. Em muitas sociedades, uma mulher só é
considerada e designada como tal depois de ter procriado. Na China, mulheres que não têm
filhos são apontadas como “demônios de uma natureza tão perigosa, que mesmo os outros
demônios se afastam de seu caminho”.45

Segundo Héritier, o conjunto de questões com as quais nos defrontamos no campo da


assistência médica à reprodução humana, cujas soluções imaginamos que se tornem possíveis
de uma forma radicalmente nova, pelos avanços científicos e tecnológicos, tem encontrado
soluções não técnicas, ancoradas na estrutura social e no imaginário coletivo dos grupos que
as têm adotado.

Essas soluções não técnicas estão apoiadas, sobretudo, na palavra (ordem da cultura).
É pela palavra, pelo discurso que o homem vai preencher e significar a forma pela qual as
aproximações e distanciamentos entre a ordem da cultura e da natureza (neste caso referido,
pelos laços sangüíneos) engendrados pelo homem devem ser compartilhados pelos
indivíduos.

Nesse sentido concordamos com Héritier, pois, no caso específico da RA, algumas das
práticas referidas na literatura e no próprio discurso biomédico nada mais são do que
mecanismos - aperfeiçoados pelo desenvolvimento científico e tecnológico - já manejados,
em alguma medida, por diferentes sociedades através de suas estruturas e instituições sociais.
Encontramos na sociedade contemporânea as mesmas práticas de manutenção e preservação
da espécie diante das impossibilidades fisiológicas, entretanto elas estão sob diferentes
registros.46
45
HÉRITIER, Françoise. Op. cit., p. 104. Outra das entrevistadas por Vargas vincula o ‘não poder engravidar’ ao
‘não ser mulher’, constituindo-se, assim, em uma das medidas da própria identidade que se vê ameaçada: “Só
porque a gente não pode ter filho a gente não é mulher? Ela se sente mais mulher porque pode engravidar, ter
filho [...] Eu já ouvi também falando de mim que mulher que não pode ter filho não é ... [...] Falaram que eu não
era mais mulher. Porque eu não posso ter filho, eu não sou mulher”. Cf. VARGAS, Eliane Portes. Op. cit., p.
336.
46
Para exemplificar, destacamos dois relatos de práticas observadas entre os Samo de Burkina Fasso. O primeiro
trata de uma das formas de casamento em que uma menina é prometida desde o seu nascimento ou infância.
Entretanto, antes de ser entregue ao seu marido, a jovem mantém durante três anos, no máximo, relações com
24

De acordo com Héritier, todas as fórmulas que nós pensamos serem novas são
possíveis socialmente e já foram experimentadas em sociedades particulares. Mas, para que
elas funcionem como instituições, é preciso que elas sejam mantidas sem ambigüidades pela
lei do grupo, inscritas firmemente na estrutura social e que correspondam ao imaginário
coletivo das representações de pessoa e identidade. Nesse sentido, cabe nos perguntar se terá a
lei formalmente constituída e válida o condão de apaziguar os conflitos morais que estão
envolvidos nessa discussão sobre o acesso às tecnologias reprodutivas?

O social não é jamais redutível ao biológico, nem, a fortiori, ao genético. Não é


também definível como uma simples associação de direitos individuais. Encontramo-nos num
campo de disputas onde cada um apela, em função de seus interesses, ora ao biológico ora ao
social.

1.2 Estado da arte no Brasil: as demandas por filhos e a oferta de serviços de


atendimentos

Além da ausência de normatização, verifica-se um crescente aumento do interesse pela


questão da intervenção médica no processo reprodutivo, seja na academia, na mídia brasileira,
nas clínicas privadas ou serviços públicos que oferecem esse tipo de tratamento.

Os dados que permitem compor o estado da arte das tecnologias reprodutivas no Brasil
são incompletos e insuficientes. Colaboram para essa lacuna a falta de notificação dos
procedimentos de RA, a inexistência de controle e fiscalização das clínicas, a insuficiência de
registro e a precariedade dos dados.

um amante de sua escolha, e isto é inteiramente oficial, uma vez que o amante a visita na casa paterna. Os
próprios primogênitos nascidos sob tais circunstâncias sabem, segundo uma metáfora usual, que nasceram ‘na
casa de seu avô’. A jovem se une ao seu marido logo após o nascimento de um filho, que é considerado o
primogênito de sua união legítima. No segundo caso, observa-se que, frente à ausência de filhos, a mulher finge
concordar em deixar o seu marido legítimo, toma um marido secundário e retorna a seu esposo grávida ou mãe
de um ou vários filhos, que serão deste último. Tal prática mascara, portanto, o fato da esterilidade masculina, e
podemos, dessa forma, identificá-la como uma inseminação por doador, ainda que sua razão de ser ocorra em um
registro simbólico diverso daquele que encontramos em nossa sociedade. Podemos depreender de tal prática que
tanto a palavra quanto o sangue estabelecem a filiação, entretanto, estes diferentes mecanismos não se
distinguem quanto a inserção de uma filho na linhagem parental. Cf. HÉRITIER, Françoise. Op. cit., p. 107.
25

No Brasil, o acesso às tecnologias conceptiva, que se dá majoritariamente em clínicas


particulares, e a desregulamentação sobre o tema geram falta de transparência e credibilidade
dos dados sobre efeitos colaterais de medicações, número de embriões produzidos,
implantados, congelados, descartados, gestações múltiplas, entre outros.

Atualmente, existem 117 clínicas cadastradas na Sociedade Brasileira de Reprodução


Humana e na Rede Latino-americana de Reprodução Humana. Destaca-se que, segundo o
cadastro das clínicas de RA da Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida de 2001, cerca
de 47% estão concentradas no estado de São Paulo e, destas, 54% localizam-se na capital.47

A Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (FEGRASGO), a Sociedade


Brasileira de Reprodução Humana (SBRH), a Sociedade Brasileira de Reprodução Assistida
(SBRA) e a Rede Latino-americana de Reprodução Assistida (Redlara) encontram-se
empenhadas em realizar acompanhamentos das clínicas de RA no Brasil. Estas instituições
esforçam-se para elaborar normas técnicas em conjunto com a Secretaria de Vigilância
Sanitária, o Conselho Federal de Medicina e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisas
(CONEP/CNS). O procedimento para acompanhamento das clínicas de RA consiste em
visitas às mesmas, a fim de verificar a veracidade e a adequação dos métodos empregados,
além da análise dos aspectos éticos. A lista de itens que seriam monitorados inclui a relação
de número de casos reportados à Rede Latino-americana (Redlara) e registrados no Centro de
RA; registros pormenorizados das gestações; existência e registro de consentimento
informado; avaliação dos profissionais, clínicos e de laboratório; protocolos de limpeza e
assepsia; controle de contaminação ambiental; equipamentos; controle de qualidade dos
equipamentos, dos meios de cultura, do espaço físico para o trabalho e da capacitação
continuada dos profissionais de laboratório; tamanho do centro; eficácia e avaliação geral da
veracidade das informações reportadas.48

Observa-se que se desenvolve em larga escala, sem qualquer medida legal ou política
pública inibitória, um processo de mercantilização em relação às práticas médicas de
assistência à reprodução humana. Esse, a nosso ver, é um dos principais pontos que leva à
recomendação da normatização de tais práticas, a fim de coibir a violação das dignidades

47
Cf. Dossiê Reprodução Humana Assistida, 2003, p. 19-20.
48
Ibidem, p. 43-4.
26

objetivamente atingidas, bem como de toda a sociedade que não pode aceitar tal degradação
da condição humana de seus semelhantes e das futuras gerações.49

1.3 A necessidade de uma normatização: contradições e limites no poder legislativo


brasileiro

Com as tecnologias reprodutivas intervindo diretamente no delineamento das


presunções de maternidade e paternidade, alguns países optaram por legislações que variam
entre a permissividade e a restrição.

Leite e Brauner traçam um panorama das regulamentações sobre RA em alguns destes


países. Nos Estados Unidos, em função da tradição federativa, cada estado possui suas regras
específicas. Dessa forma, tem se tornado comum a invocação do ‘right of privacy’ como
fundamento para reconhecer as práticas em RA como exercício do direito de gerar perante a
Suprema Corte norte-americana.50

A Lei alemã de proteção dos embriões, de 13 de dezembro de 1990, não adota o


critério de indicação terapêutica como requisito para utilização de RA. Além disso, prevê a
punição com pena privativa de liberdade de até 3 (três) anos ou sanção pecuniária para os
casos de realização de qualquer procedimentos de reprodução medicamente assistida sem o
consentimento da mulher ou do homem.51

49
Diferentemente da ausência de regulamentação como no caso brasileiro, na França, as restrições legais para o
acesso às práticas em RA levam muitas mulheres a praticar o “tourisme procréatif”. Ocorre que diante dos
impedimentos da lei francesa para o uso das tecnologias reprodutivas por homossexuais, estes facilmente
ingressam em outros países da União Européia e até nos Estados Unidos, a fim de realizarem uma inseminação
artificial. Cf. NEIRINCK, Claire. L’enfant que l’on ne peut concevoir. In: ________ (org.). La famille que je
veux, quand je veux? Evolution du droit de la famille. Ramonville Saint-Agne: Éditions Érés, 2003, p. 52.
50
LEITE, Eduardo de Oliveira. As procriações artificiais e o direito. aspectos médicos, religiosos, psicológicos,
éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 270.
51
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana. Op. cit., p. 97. De acordo com
Andorno, a lei alemã de proteção ao embrião, que regulamenta indiretamente a procriação artificial, assegura, em
primeiro lugar, o respeito à vida humana e as condições futuras da vida social e, seulement après, reconhece a
legítima liberdade da ciência e da técnica. Cf. ANDORNO, Roberto. La distinction juridique entre les personnes
et les choses: à l’épreuve des procréations artificielles. Paris: LGDJ, 1996, p. 199.
27

Na Espanha, a Lei n. 35, de 22 de novembro de 1988, prevê que as técnicas de RA são


indicadas nos casos de esterilidade humana, a fim de facilitar a procriação quando outros
métodos terapêuticos tenham sido descartados por ineficácia ou inadequação. Outro critério
adotado para a indicação diz respeito à prevenção e tratamento de enfermidades de origem
genética ou hereditária. Para tanto, o acesso é permitido à mulher solteira, bastando o próprio
consentimento esclarecido. Se casada, há a necessidade de o marido também expressar o
consentimento.52

A lei francesa n. 94-654, de 29 de julho de 1994, relativa à doação e utilização de


elementos e produtos do corpo humano, à assistência médica para a procriação e ao
diagnóstico pré-natal, tem como critério de indicação para uso das técnicas de RA os casos de
infertilidade de caráter patológico, medicamente diagnosticados.53 Outra indicação, a exemplo
da lei espanhola, refere-se aos casos em que se pode ou que é necessário evitar a transmissão
ao feto de uma enfermidade particularmente grave. Quanto aos usuários, devem estar casados
ou viver em união estável pelo período mínimo de 2 (dois) anos.54

Quanto às propostas de projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional


brasileiro, observam-se diferentes espécies de restrições às práticas de reprodução
medicamente assistida.

De uma maneira geral, podemos destacar que os projetos de leis não tratam da
regulamentação com relação às clínicas particulares que oferecem, até mesmo na Internet,
seus serviços. Quase todas as propostas tendem a tratar de aspectos técnico-operacionais,
como, por exemplo, a quantidade de embriões que devem ser implantados, a criopreservação
de embriões, a permissão ou não de pesquisa em células germinativas, entre outros. Tais
questões revelam uma preocupação ética em relação ao tratamento dispensado às vidas em
52
LEITE, Eduardo de Oliveira. As procriações artificiais e o direito. Op. Cit., p. 292-300; BRAUNER, Maria
Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana. Op. cit., p. 99-101. Segundo Andorno, a exposição
de motivos da lei espanhola deixa transparecer um discurso que garante o laissez-faire científico, em detrimento
do respeito à vida humana quando, por exemplo, afirma que ‘a ciência deve agir sem entraves’. Para o jurista
francês, a lei espanhola, quanto à sua forma, dá a impressão de que o legislador usou de equilíbrio e prudência,
procurando conciliar as exigências da dignidade humana com o progresso da ciência. Por outro lado, quanto ao
conteúdo, a lei legitima as manipulações da vida embrionária com grande permissividade. (ANDORNO,
Roberto. Op. cit., p. 214).
53
O artigo 2141-2 do Código de Saúde Pública francês é explícito: ‘a assistência médica a procriação tem por
finalidade remediar uma infertilidade cuja característica patológica foi medicamente diagnosticada’.
(NEIRINCK, Claire. L’enfant que l’on ne peut concevoir. In: ________ (org.). La famille que je veux, quand je
veux? Evolution du droit de la famille. Ramonville Saint-Agne: Éditions Érés, 2003, p. 50)
54
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana. Op. cit., p. 102-4.
28

potencial contidas nos embriões, pré-embriões, células totipotentes e células germinativas. De


outra forma, as vidas das pacientes/usuárias aparecem substancialmente relegadas a um
segundo plano, pois há uma notável priorização da proteção da garantia da dignidade daqueles
entes em potência.

Tal preocupação ética - legítima, por certo - tomou vulto maior, sobretudo, pelos
investimentos e subsídios aplicados às pesquisas nessa área para o desenvolvimento de
tratamentos de doenças degenerativas graves. De um lado, existem pessoas que tentam
sobreviver sob condições de saúde adversas; por outro, cientistas e pesquisadores buscam
minimizar esse sofrimento através de pesquisas para tratamento dessas doenças, utilizando,
para tanto, todo o conhecimento já desenvolvido em genética.

O problema da regulamentação das práticas médicas em RA diz respeito às condições


de possibilidade e eficácia de um ‘quadro jurídico-normativo’ que, no mínimo, não viole a
dignidade humana e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, de modo a
reconhecer as capacidades e atribuir poderes-deveres jurídicos aos indivíduos. Conforme
Mota Pinto, a construção desse quadro normativo deve ser a garantia jurídica de realização do
direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Dessa forma, não se pode compreender tal
direito apenas como ausência de interferência na liberdade, mas como decorrência do próprio
princípio da dignidade humana, eis que exige da atividade legislativa uma regulamentação
protetiva desse desenvolvimento.55

No caso específico da regulamentação das práticas médicas em RA, alguns articulistas


ensaiam suas objeções com o argumento de que a dinamicidade com que o desenvolvimento
tecnocientífico opera nas questões de bioengenharia tornaria qualquer tentativa de construção
de um quadro jurídico-normativo uma perda de tempo. Por outro lado, aqueles que vêem
como uma necessidade imperiosa e urgente a aprovação de uma legislação podem falhar ao
modelar as concepções e estilos de vida de modo a evitar aquilo que lhes pareceria diferente e
bizarro em comparação ao que é considerado o correto dentro do universo das relações filiais
já estabelecidas no mundo dos fatos.

55
MOTA PINTO, Paulo. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Portugal-Brasil, ano 2000.
Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 159.
29

Observamos a esta altura uma estreita relação entre o direito ao livre desenvolvimento
da personalidade - no caso brasileiro depreendido da interpretação do princípio da dignidade
humana - e o contexto explicativo dos projetos de leis que tratam da normatização das práticas
em RA.

Se concordamos com a proposição de Mota Pinto que faz referência à exigência da


atividade do legislador para a proteção e garantia do direito ao desenvolvimento de
personalidade, então é possível que a indeterminação conceitual sobre o que é um ‘direito ao
livre desenvolvimento da personalidade’ não se constitua necessariamente em um dilema
insolúvel. O referido quadro jurídico-normativo é passível de construção, desde que não vede
outras possibilidades de constituição e exercício dos direitos de liberdades albergados pelo
princípio da dignidade humana. Sendo assim, uma regulamentação para as práticas em RA é
possível e desejável, contanto que não inviabilize o exercício do direito ao livre
desenvolvimento da personalidade e dos demais correlatos – mais adiante trataremos da
correlação entre dignidade da pessoa humana, direitos de liberdade e direitos reprodutivos
como marcos normativos para o acesso às práticas em RA.

Observa-se que, de alguma forma, os projetos de leis em tramitação no Congresso


Nacional brasileiro tentam, uns em maior, outros em menor medida, encaminhar alguns destes
questionamentos, correndo o risco, sabe-se, de tornarem-se obsoletos antes mesmo de sua
aprovação e sancionamento.

Outro ponto relevante a ser ponderado refere-se à unanimidade quanto à elegibilidade


de mulheres inférteis para o acesso aos procedimentos em RA e o uso destes, com a condição
de que sejam esgotados os outros métodos convencionais. Como vimos anteriormente, o
diagnóstico médico para infertilidade é impreciso, podendo, até mesmo, reconhecer-se em
alguns casos que não há causa fisiológica alguma para a ausência de filhos.

A seguir, são historiados os projetos de leis que tramitam, seja na Câmara dos
Deputados, seja no Senado Federal.

O Projeto de Lei 2.855/1997, do Deputado Confúcio Moura, no seu artigo 4º, afirma
que toda mulher capaz, independentemente de seu estado civil, poderá ser usuária das técnicas
30

de RA, desde que tenha solicitado e concordado livre e conscientemente em documento de


consentimento informado. Não inclui como necessária a autorização do cônjuge ou
companheiro e veda o uso de RA para fins de clonagem. Permite a criopreservação de
embriões por um período de 5 anos, após os quais os mesmos poderão ser descartados ou
utilizados para fins científicos. Os embriões também poderão, conforme o projeto, ser
utilizados para pesquisas e finalidades farmacêuticas, sob aprovação da Comissão Nacional de
RA, criada pelo próprio projeto. Não permite redução seletiva de embriões, exceto se houver
risco de vida para a gestante, mas permite a seleção para evitar transmissão de doenças.
Também prevê o sigilo da operação e estabelece que um doador só poderá ter dois filhos em
um mesmo estado. Em relação à gestação substituta, exige a aprovação da Comissão, já
citada, quando a mãe não for parente até quarto grau da doadora.56

O Projeto de Lei n. 3.638/93 do Deputado Luiz Moreira, no seu Título II, informa
sobre as usuárias da técnica de RA. O artigo 8º assim prevê: “Toda a mulher, capaz nos
termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta lei pode ser
receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em
documento de consentimento informado”. Prevê, ainda, que são proibidos a redução
embrionária, o comércio de gametas e pré-embriões e também a doação temporária de útero
(gestação substituta). Regulamenta a criopreservação de gametas e pré-embriões e os
procedimentos relativos aos mesmos.57

56
Tramitação: 03/03/97 - Apresentação do projeto pelo Deputado Confúcio Moura.
23/04/97 – Nomeação do relator Deputado Sérgio Arouca (PPS/RJ) na Comissão de Seguridade Social e
Família.
02/02/99 – Arquivamento pela mesa diretora nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos
Deputados.
10/02/99 – Desarquivamento nos termos do artigo 105, § único, do Regimento Interno.
12/03/99 – Nomeação do Deputado Jorge Costa (PMDB/PA) na Comissão de Seguridade Social e Família.
15/12/1999 – Lançamento do parecer favorável do Deputado Jorge Costa (PMDB/PA).
17/05/2000 - Aprovação unânime do parecer favorável do relator Deputado Jorge Costa.
31/05/2000 – Encaminhamento à Comissão de Constituição e Justiça e Redação (CCJR).
04/08/2000 – Nomeação do relator Deputado Sérgio Miranda (PCdoB/MG) na CCJR.
31/01/2003 – Arquivamento nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.
27/03/2003 – Desarquivamento nos termos do artigo 105 do R.I.
16/04/2003 - Na CCJR, designação do Deputado Sérgio Miranda (PCdoB/MG) como relator.
05/06/2003 – Apensamento do PL-1135/2003.
02/07/2003 – Apensamento do PL-1184/2003.
02/07/2003 – Encaminhamento à Coordenação de Comissões Permanentes.
57
Tramitação: 17/03/93 - Apresentação do projeto pelo Deputado Luiz Moreira.
31/05/93 – Nomeação do Deputado Liberato Caboclo como relator pela CSSF.
02/02/95 – Arquivamento de acordo com o artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
15/03/95 – Desarquivamento conforme artigo 105 do Regimento Interno.
14/09/99 – Designação, na CCJR, do Deputado Marcelo Deda (PT/SE) como relator.
18/04/2001 – Redistribuição ao relator Deputado Fernando Coruja (PDT/SC).
31

O projeto tem a intenção de transformar a Resolução n. 1.358/92, do Conselho Federal


de Medicina, em lei. Segundo o autor, “[o projeto] vem, de vez, equacionar o problema de
acordo com os atuais conhecimentos científicos e os nossos valores morais e culturais”.

Atualmente, esse projeto está sob o número de PL 00054/2002. Após a incorporação


de várias emendas, propõe que, na hipótese de a mulher ser casada ou estar em união estável,
é necessário o consentimento do cônjuge ou companheiro, sendo que o casal deve decidir, em
conjunto, quanto ao destino dos embriões. Proíbe o descarte de embriões e a redução seletiva.
Preserva o sigilo dos envolvidos no processo de RA e estabelece que o doador só produza
uma gestação para cada um milhão de habitantes, por causa da endogamia. Nessa última
redação, diferentemente do projeto inicial, permite doação temporária do útero em mulheres
com parentesco até segundo grau.

Há, ainda, outros quatro projetos de leis, os quais variam muito pouco em relação aos
anteriormente relatados. Ocorre que foram primeiramente arquivados, desarquivados e, por
fim, apensados aos já referidos projetos de leis. A seguir, tais projetos serão brevemente
descritos.

O Projeto de Lei 4.665/2001, de autoria do Deputado Lamartine Posella, pretende,


conforme ementa, dispor sobre a autorização da fertilização humana in vitro para os casais
comprovadamente incapazes de gerar filhos pelo processo natural de fertilização e dá outras
providências. Atualmente está anexado ao PL 2.855/97.58
13/08/2001 - Parecer do relator Deputado Fernando Coruja (PDT/SC), pela constitucionalidade, juridicidade e
técnica legislativa, com emenda.
02/04/2002 – Aprovação por unanimidade do parecer.
09/04/2002 - Encaminhamento à CCP.
08/05/2002 – Encaminhamento do ofício da Secretaria Geral da Mesa 594/02, à CCJR, dirigindo este projeto
para elaboração da redação final, nos termos do artigo 58, parágrafo quarto e artigo 24, II, do Regimento Interno.
17/05/2002 – Designação do Deputado Aldir Cabral como relator da redação final.
21/05/2002 – Aprovação da redação final com a abstenção dos Deputados Nelson Pellegrino, Waldir Pires, Ben-
hur Ferreira, Gilmar Machado, José Dirceu e Luiz Eduardo Greenhalgh.
05/06/2002 - Remessa ao Senado Federal, através do ofício PS-GSE/370/02.
05/09/2002 – Devolução pelo senhor Senador Lúcio Alcântara e encaminhamento à SSCLSF.
30/10/2002 – Leitura do requerimento n. 519, de 2002, de autoria do Senador Lúcio Alcântara, solicitando a
tramitação conjunta da matéria com o projeto de lei do senado n. 90, de 1999, por versarem sobre o mesmo
assunto. À SSCLSF, para inclusão em ordem do dia do requerimento lido.
14/11/2002 – Leitura e aprovação do requerimento n. 543/2002, da senhora Heloisa Helena, solicitando o
adiamento da votação do requerimento n. 519/2002, para o dia 16 de dezembro de 2002.
06/12/2002 – Inclusão, em ordem do dia da sessão deliberativa ordinária de 16/12/2002, do requerimento n.
519/2002, de tramitação conjunta com o PLS n. 90/99. Votação, em turno único.
58
Tramitação: 16/05/2001 - Apresentação e leitura do projeto de lei pelo Deputado Lamartine Posella (PMDB -
SP).
32

O Projeto de Lei 6.836/2002, do Deputado Pompeo de Mattos, inova ao vincular uma


regulamentação sobre fertilização in vitro à criação de um serviço de atendimento e
tratamento para endometriose.59

O projeto de Lei 00120/2003, do Deputado Roberto Pessoa dispõe sobre a


investigação de paternidade de pessoas nascidas de técnicas de RA, permitindo a estas
saberem a identidade de seus pais ou mães biológicos.60

Por fim, o Projeto de Lei 1.135/2003, do Deputado Dr. Pinotti, dispõe sobre a
reprodução humana assistida, definindo normas para realização de inseminação artificial,
fertilização in vitro, barriga de aluguel (gestação de substituição ou doação temporária do
útero) e criopreservação de gametas e pré–embriões.61

Entretanto, o projeto de lei em fase mais adiantada para a sua aprovação - com
aceitação entre congressistas e determinados grupos integrantes de diferentes lobbies -
restringe o acesso à RA somente aos cônjuges ou ao homem e à mulher em união estável
(substitutivo do PL n. 90/99, Senador Roberto Requião).62
18/05/2001 – Apensado ao PL 2.855/1997.
31/01/2003 – Arquivamento nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.
27/03/2003 - Desarquivamento em razão do desarquivamento do PL 2.855/1997.
59
Tramitação: 21/05/2002 - Apresentação do projeto de lei pelo Deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS).
19/06/2002 – Designação do Deputado Jorge Alberto (PMDB/SE) como relator.
31/01/2003 – Arquivamento nos termos do Artigo 105 do Regimento Interno.
08/04/2003 – Desarquivamento nos termos do Artigo 105 do Regimento Interno.
22/05/2003 – Rejeição pelo parecer do Deputado-relator Jorge Alberto.
60
Tramitação: 19/02/2003 - Apresentação do projeto de lei pelo Deputado Roberto Pessoa (PFL-CE).
20/03/2003 – Designação da Deputada Laura Carneiro como relatora.
02/07/2003 – Apensamento ao PL 1.184/2003 (número de origem PL 90/99).
61
Tramitação: 28/05/2003 - Apresentação do Projeto de Lei pelo Deputado Dr. Pinotti (PMDB-SP).
05/06/2003 – Apensado ao PL 2855/1997.
62
Tramitação: 19/03/99 - Relator Senador Roberto Requião (PMDB/PR).
11/11/99 - Parecer favorável do relator Senador Roberto Requião (PMDB/PR) na forma de substitutivo. Pronto
para ordem do dia da comissão.
05/04/2000 - Em reunião extraordinária, o relator vota parcialmente favorável à incorporação, em seu relatório,
da emenda 2, de autoria do Senador Luiz Estevão, com o acréscimo da expressão “respeitada a vontade da
mulher receptora, a cada ciclo reprodutivo”. Rejeita as emendas 3 e 4, de autoria do Senador Roberto Freire. A
presidência adia a discussão da matéria em virtude da falta de quorum. Anexadas as seguintes emendas: de
autoria do Senador Luiz Estevão, 2 (fls. 25 e 26); de autoria do Senador Roberto Freire; 3, 4 e 5 (fls. 27, 28 e 29,
respectivamente);de autoria do Senador José Eduardo Dutra; 6, 7, 8, 9 e 10 (fls. 30, 31, 32, 33, 34 e 35,
respectivamente). Ao gabinete do Senador Roberto Requião para emitir parecer a respeito das demais emendas e
conseqüente reformulação do relatório em razão das 9 emendas apresentas até o presente momento.
11/05/2000 - Ao senhor Senador Tião Viana (PT/AC) para relatar a matéria.
13/11/2000 - Requerimentos n. 23 e 28/00 - CAS de autoria do Senador Tião Viana, aprovados em 07 e
27/06/2000 respectivamente, solicitando audiência pública com a finalidade de instruir a matéria.
33

O Projeto de Lei n. 90/99 do Senador Lúcio Alcântara prevê as hipóteses de indicação


para utilização da RA, bem como elege a possível cliente/paciente das técnicas, conforme
dispõe o artigo 2º: “A utilização da RA só será permitida, na forma autorizada pelo poder
Público e conforme o disposto nesta Lei, para auxiliar na resolução dos casos de infertilidade
e para a prevenção e tratamento de doenças genéticas ou hereditárias, e desde que: [...] IV - a
receptora seja uma mulher capaz, nos termos da lei, que tenha solicitado ou autorizado o
tratamento de maneira livre e consciente, em documento de consentimento informado a ser
elaborado conforme o disposto no art. 3º” (grifos nossos).

Por fim, o Substitutivo ao Projeto de Lei n. 90/99 do Senador Roberto Requião


pretende restringir a aplicação da RA, destinando-a apenas às mulheres casadas ou em união
estável e exigindo o consentimento do cônjuge ou companheiro, conforme dispõe seu artigo
2º: “A utilização da Procriação Medicamente Assistida só será permitida, na forma autorizada
nesta Lei e em seus regulamentos, nos casos em que se verifica infertilidade e para a
prevenção de doenças genéticas ligadas ao sexo, e desde que: [...] III - a receptora da técnica
seja apta, física e psicologicamente, após avaliação que leve em conta sua idade cronológica e
outros critérios estabelecidos em regulamento. §1º- Somente os cônjuges ou o homem e a
mulher em união estável poderão ser beneficiários das técnicas de Procriação Medicamente
Assistida” (grifos nossos).

O projeto original, de autoria do Senador Lúcio Alcântara, era mais amplo, no sentido
de uma maior autonomia em relação ao exercício dos direitos reprodutivos através da RA.

31/10/2001 - Reunida a comissão, o projeto é retirado de pauta para reexame a pedido do relator. A matéria
retorna ao gabinete do Senador Tião Viana.
12/12/2001 - Reunida a comissão, são concedidas vistas ao Senador Jonas Pinheiro e a Senadora Marina Silva.
15/05/2002 - Os Senadores Lúcio Alcântara, Roberto Requião, Geraldo Althoff, Benício Sampaio e Romero
Jucá apresentam emendas ao substitutivo. É a matéria encaminhada ao Senador Tião Viana para exame das
emendas.
25/03/2003 - Aguardando leitura de pareceres. Anexada legislação citada nos pareceres da CCJ e CAS, às fls.
218 - 223. Juntou-se, às fls. n 224 - 275, notas taquigráficas das audiências públicas realizadas pela Comissão de
Assuntos Sociais, em 8 e 15/5/2001, para instrução da matéria.
19/05/2003 – Juntou-se, às fls. 279-296, o Ofício n. 104/2003 GSTV, de 28 de março de 2003, através do qual o
Senador Tião Viana externa ao Presidente do Senado Federal sua posição contrária a ofício do Presidente da
Ordem dos Advogados do Brasil que solicita o sobrestamento da matéria.
19/05/2003 – Juntou-se, às fls. 297-300, o Ofício n. 664/2003, de 19 de maio de 2003, através do qual o Primeiro
Vice-Presidente do Senado Federal, no exercício da Presidência, comunica ao Presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil que a presente matéria foi aprovada terminativamente pelas comissões técnicas da Casa e
foi encaminhada cópia do Ofício n. 104/2003 GSTV, do Senador Tião Viana.
02/07/2003 – Apensados os PL 2.855/1997 e PL 120/2003.
13/08/2003 - Mudança do regime de tramitação da matéria para Regime de Prioridade.
Fonte: www.cfemea.org.br. Atualizado em 25/01/2004.
34

Contudo, sua versão atual está sob a forma de um substitutivo aprovado na Comissão de
Constituição e Justiça do Senado que implica alguns retrocessos quanto à elegibilidade para o
acesso às técnicas de RA, negando, expressamente, às mulheres solteiras a possibilidade de
seu uso. Proíbe, ainda, o congelamento de pré-embriões e criminaliza a redução embrionária.
O substitutivo também permite a seleção terapêutica e inova ao propor que o filho conheça a
identidade do pai após a maioridade. Estabelece que o doador deve ser ‘pai’ de apenas um
beneficiário. Permite, ainda, a doação temporária do útero entre mulheres com parentesco até
o segundo grau.

Atualmente estão apensados a este projeto os projetos de lei n. 2.855/97, do Deputado


Confúcio Moura, e n. 00120/2003, do Deputado Roberto Pessoa.

Diniz assevera que a possibilidade inicialmente aberta de que mulheres solteiras ou


fora da conjugalidade heterossexual tenham acesso às novas tecnologias reprodutivas está
sendo descartada nos debates mais recentes no Congresso Nacional: “Por um lado, a criança
estabelece a necessidade do pai para a composição da ‘família completa’ e, por outro, a
restrição da elegibilidade para as mulheres em união estável pressupõe a figura do cônjuge,
uma exigência que imediatamente elimina a possibilidade de mulheres homossexuais
recorrerem à reprodução assistida”.63

Como se pode verificar, de um modo geral, os projetos de lei negam a possibilidade de


acesso às tecnologias reprodutivas na hipótese de seu uso destinar-se a um projeto
monoparental.

Tal veto, salvo melhor interpretação, é fundado na exigibilidade de proteção à família,


dada sua importância e relevo na sociedade brasileira. Resta, então, confrontarmos os
fundamentos sobre os quais ocorre a exclusão da possibilidade de formação de organizações
familiares monoparentais.

63
DINIZ, D. Tecnologias reprodutivas, ética e gênero: o debate legislativo brasileiro. Encontro Anual da
ANPOCS, Petrópolis, 2000, mimeo, p. 19.
35

Para tanto, faz-se imprescindível recorrermos ao aporte rawlsiano, na medida em que


esse filósofo nos fala da família como uma das instituições sociais mais importantes.64 Todo o
esforço de diálogo com o referencial teórico desse autor tem como objetivo possibilitar uma
justificação teleológica das famílias monoparentais, a partir das idéias de razão pública e de
plano racional de vida.

1.3.1 Primeiro limite legislativo: a idéia de razão pública

Primeiramente, situando-nos no construtivismo rawlsiano, os princípios de justiça,


aplicados à estrutura básica da sociedade,65 são sustentados a partir da cultura política pública,
ou a partir de idéias e princípios fundamentais compartilhados por uma sociedade
democrática.66 Essas idéias, princípios e valores políticos compartilhados de igual maneira por
todos os cidadãos é o que Rawls chama de razão pública.67

Ao Estado, nessa perspectiva, nega-se a realização de um juízo de valor sobre o modo


pelo qual os indivíduos projetaram a sua trajetória pessoal. Pressupõe-se, de outra forma, um
determinado conceito de vida boa. Entretanto, não há como descrever esta vida boa, pois cada
sujeito tem a liberdade de construí-la a sua maneira, de acordo com sua concepção de bem.

64
Além da família, o autor destaca a constituição política da sociedade, os acordos econômicos e sociais, a
proteção legal da liberdade de pensamento e consciência, os mercados competitivos e a propriedade particular.
Vale destacar uma importante alteração discursiva verificada no texto de Rawls. Em Uma teoria da justiça,
Rawls adjetiva a família com a expressão monogâmica (Op. cit., p. 08). Em suas outras obras, essa locução não
mais é encontrada. Essa alteração discursiva se justifica pela ‘mudança de paradigma’ de que nos fala o
professor Nythamar F. de Oliveira. Ocorre que monogamia é uma categoria de doutrinas abrangentes -
notadamente religiosas -, portanto não faz parte da idéia de família como instituição social inserida em uma
concepção política de justiça. Em Uma teoria da justiça, Rawls apresenta uma doutrina moral e abrangente – que
se aplica a todos os sujeitos e a todas as formas de vida. Entretanto, em O liberalismos político, obra destinada a
revisar e explicitar alguns pontos da reflexão anterior, o autor modifica seu paradigma. A partir de então ele não
fala mais em uma doutrina moral, mas em uma concepção política de justiça. Nas palavras de Rawls: “[...] em
meu resumo dos objetivos de Teoria, a tradição do contrato social aparece como parte da filosofia moral e não se
faz distinção alguma entre filosofia moral e política. Em Teoria, uma doutrina moral da justiça de alcance geral
não se distingue de uma concepção estritamente política de justiça. [...] A ambigüidade de Teoria está eliminada
agora, e a justiça como equidade é apresentada, desde o começo, como uma concepção política de justiça”.
(RAWLS, John. O liberalismo político. Op. Cit., p. 24-5).
65
Um princípio é considerado justo quando selecionado em condições imparciais e através de um procedimento
imparcial. Por ‘estrutura básica’ se entende as principais instituições políticas e a maneira pela qual se combinam
em sistema unificado de cooperação social de uma geração para a outra. Portanto, o foco inicial de uma
concepção política de justiça é a estrutura das instituições básicas e os princípios, critérios e preceitos que se
aplicam a ela, bem como a forma pela qual essas normas devem estar expressas no caráter e nas atitudes dos
membros da sociedade que realizam seus ideais. (RAWLS, John. O liberalismo político. Op. Cit., p. 53-4).
66
Em Rawls, as leis morais tomam dimensão política, na medida em que extrapolam as concepções individuais,
pois fundam-se em juízos racionais.
67
A razão pública descreve o que é possível e pode vir a ser, mesmo que isso nunca ocorra, e não é menos
fundamental por isso. (RAWLS, John. O Liberalismo político. Op. Cit., p. 262).
36

Ela deve, entretanto, conformar-se aos princípios de justiça, os quais gozam de legitimidade
no senso comum pactuado na posição original.68

A sociedade moderna, assim, caracterizaria-se pela pluralidade de concepções de bem.


Ocorre que, como se verificou nos destaques aos projetos de leis anteriormente analisados, a
pluralidade de concepções familiares não foi preservada. Com base em uma representação
hegemônica de constituição do bem comum, exaure-se a possibilidade de realização de um
projeto familiar racional e razoável, apoiado em princípios compartilháveis de respeito à
autonomia, à individualidade e à dignidade humana.

Observa-se, neste ponto, que o conjunto das idéias rawlsianas se articulam em uma
concepção do tipo ideal de indivíduo e cidadão. Em outras palavras, ao expressar uma
característica específica dos cidadãos de sociedades bem-ordenadas, qual seja, a capacidade
de engendrar e reformar o estado das coisas, Rawls infere que estes possuem um senso de
discernimento que os faz reagir e reivindicar alterações quando as estruturas e instituições já
não viabilizam ou oferecem suporte para o desenvolvimento e consecução dos objetivos
racionais e razoáveis dos sujeitos.

Dessa forma, a cidadania em Rawls passa por um pressuposto de apropriação das


condições de possibilidade para o exercício das capacidades e habilidades dos sujeitos em prol
da realização de um plano racional de vida. Esse pressuposto, portanto, é requisito primeiro
para um sistema eqüitativo de cooperação, pois somente assim os sujeitos poderão
compreender suas ações influenciando e influenciadas por todos os membros da sociedade.
Aquilo que um indivíduo projeta e realiza para si, conseqüentemente, e de outra forma não
poderia ser, reflete no outro. O outro também é parte integrante do sistema e espera-se que
nele se espelhe tal concepção.

1.3.2 Segundo limite legislativo: a idéia de bem e o plano racional de vida

68
A idéia da posição original é estabelecer um processo eqüitativo, com vistas à escolha dos princípios de
justiça. Para tanto, faz-se necessário que as partes situem-se atrás de um ‘véu da ignorância’, pois somente assim
haveria condições para a universalização dos princípios eleitos. Ver: RAWLS, J. Uma teoria da justiça. Op. Cit.,
p. 146-153. Para uma crítica da posição original de Rawls, ver: DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio.
Barcelona: Ariel, 1999, p. 234-275.
37

Em Rawls temos que a definição de bem trata-se nas fronteiras de uma diretriz geral
para a construção de expressões sucedâneas que possam ser utilizadas para dizer o que, após
uma reflexão, queremos dizer. Não se trata de definição do bem no sentido tradicional, como
um conceito desenvolvido pela racionalidade analítica. Em outras palavras, o bem não é
passível de definição, ao contrário, informa sobre os procedimentos que um indivíduo deve
racionalizar para uma avaliação/alcance do seu bem.69

O objetivo da teoria rawlsiana é fornecer um critério para a construção do bem


individual. Esse critério se define com referência ao plano racional que seria escolhido com
plena racionalidade deliberativa. Nesse sentido, o bem como racionalidade deixa a questão
das escolhas/circunstâncias sob a responsabilidade do sujeito e das contingências de sua
situação.

Eis aqui outro limite observável à atividade legislativa no que toca especificamente à
normatização dos procedimentos em RA. O legislador, ao circunscrever a elegibilidade para o
acesso às tecnologias conceptivas, pressupõe o bem de uns e nega a faculdade de construção
por outros. Para aqueles que se enquadram nos limites apostos pelas propostas normativas, o
bem – neste caso, a concretização de um projeto parental – é promovido e assegurado. Para
quaisquer outros, a inadequação ao paradigma não confere legitimidade para a concretização
daquele mesmo bem.

Na definição do que é o bem, assevera Rawls, espera-se uma racionalização individual


apoiada em uma universalidade moral. Em outras palavras, significa que o ponto de vista
varia de um caso para outro, e a definição do que é bom não contém uma fórmula geral
definitiva.70

Rawls constrói sua teoria da justiça a partir da idéia de que a definição do que é o bem
se dá individualmente. O sujeito, através da racionalidade deliberativa, irá estabelecer o seu
plano racional de vida e, assim, preencher o conteúdo daquilo que lhe é bom.

69
RAWLS, J. Uma teoria da justiça, p. 444.
70
Ibidem, p. 446.
38

Mas como podemos afirmar que determinado plano é racional? Um plano será racional
se for consistente com os princípios da escolha racional aplicados a todas as características
relevantes da situação. Além disso, será racional quando se constituir no plano que seria
escolhido pela pessoa com racionalidade deliberativa plena - plena consciência dos fatos
relevantes e após cuidadosa consideração das conseqüências.71

Dessa forma, podemos dizer que um plano racional de vida possui três características
básicas: a) deve estar de acordo com os princípios da escolha racional; b) deve ser elaborado
através da racionalidade delibertativa – consciência dos fatos e das conseqüências; c) os
interesses e objetivos serão racionais se forem previstos pelo plano que foi escolhido pelo
sujeito como sendo racional.

Cada indivíduo pode estabelecer seu plano racional de vida, desde que esteja em
acordo com os princípios da escolha racional. Um sujeito poderá ser criticado quando ele
violar os princípios da escolha racional ou, então, quando não se tratar do plano que essa
pessoa escolheria se analisasse com cuidado as suas perspectivas à luz de um completo
conhecimento da própria situação.72

Um plano racional de vida estabelece o ponto de vista básico a partir do qual todos os
juízos de valor relacionados a uma pessoa em particular são feitos e, por fim, ganham
consistência.

Uma pessoa é feliz, portanto, quando está a caminho da execução bem sucedida de um
plano racional de vida, traçado em condições mais ou menos favoráveis, e quando está
razoavelmente confiante de que seu plano pode ser realizado. Mas a felicidade, segundo
Rawls, não está para todos da mesma forma: como os planos variam de pessoa para outra,
indivíduos diferentes encontram sua felicidade fazendo coisas diferentes.

71
Rawls conceitua o termo racionalidade deliberativa a partir de Sidwick. “O plano racional para uma pessoa é
aquele que ela escolheria com racionalidade deliberativa. É o plano que seria escolhido como o resultado de uma
reflexão cuidadosa, na qual o agente revisaria, à luz de todos os fatos relevantes, como seria realizar esses planos
e, portanto, adquiriria uma certeza sobre o curso de ação que realizaria de forma mais efetiva os seus desejos
mais fundamentais” (Ibidem, p. 461).
72
Ibidem, p. 452.
39

As condições para a felicidade ou para o desenvolvimento do plano racional


dependem, internamente, de dotes, aptidões e esclarecimento sobre as circunstâncias e
condições favoráveis e, externamente, de boa sorte.73

Considerando que a felicidade não se dá para todos da mesma forma e que nossa
sociedade encoraja a busca de mecanismos de realização pessoal, desde que esses não
agridam a dignidade humana individual ou intersubjetiva, é possível deduzirmos que as
restrições ao acesso de mulheres solteiras às tecnologias reprodutivas operam no sentido de
negá-lhes a possibilidade de serem felizes, pois a filiação para elas constitui-se em um dos
objetivos de seus projetos de vida.

Assim sendo, vê-se que um plano racional de vida pode ser comparado com os efeitos
profundos que a escolha de uma concepção da justiça tem sobre os objetivos e interesses
encorajados pela estrutura básica da sociedade.74

Podemos, então, localizar o plano racional de vida em uma perspectiva individual, ao


contrário da concepção política de justiça, que se desenvolve em perspectiva social.
Entretanto, tais características não se excluem mutuamente, por óbvio, uma vez que as
instituições e as estruturas básicas da sociedade potencializam as escolhas individuais regidas
pelos princípios de justiça.

Se os princípios os princípios da escolha racional para a formulação de um plano


racional de vida não dizem respeito aos desejos e necessidades dos indivíduos, mas ao modo
pelo qual devemos organizá-los, resta a dúvida sobre qual o melhor plano para a realização do
bem dos sujeitos.
73
Se o plano racional não é dado, mas sim engendrado individualmente, como é possível saber que nossas
escolhas são racionais? Para responder a essa questão alguns princípios da escolha racional devem ser
observados. 1. Princípio dos meios efetivos: devemos adotar a alternativa que realiza o plano da melhor maneira
possível. Dado o objetivo, devemos atingi-lo com o menor gasto possível dos meios; ou dados os meios,
devemos atingir o objetivo na maior medida possível. Através de uma avaliação dos meios podemos ponderar
sobre a pluralidade de objetivos que compõem o plano. 2. Princípio da inclusividade: um plano deve ser
preferido a outro se a sua execução atingir todos os objetivos desejados no outro plano e também pelo menos
mais um objetivo. Deve-se seguir o plano mais inclusivo, pois esse tipo de plano poderá realizar um conjunto
maior de objetivos na medida em que nada do que poderia ter sido realizado pelo outro plano ficaria por fazer. 3.
Princípio da maior probabilidade: devemos preferir planos que atinjam objetivos com maior chance de
realização. Os princípios referidos não são suficientes para classificar os planos que estão à disposição dos
sujeitos. Eles não dizem respeito a qualidade ou intensidade dos desejos e das necessidades. Funcionam como
princípios de cálculo que orientam na elaboração de um plano racional de vida. (Ibidem).
74
Ibidem, p. 460.
40

Rawls afirma que existe um princípio formal que fornece apenas uma resposta
genérica a questão de sabermos qual seria o melhor plano. É o princípio segundo o qual
devemos adotar o plano que maximiza o saldo líquido de satisfação esperada.75

Em outras palavras, os sujeitos são orientados a tomar a direção em que há maiores


probabilidades de realizar os objetivos mais importantes. Entretanto, esse princípio também é
incapaz de dar um procedimento explícito de decisão. Fica a cargo do indivíduo decidir o que
ele mais quer e julgar a importância relativa de seus vários objetivos.

O que determina o bem verdadeiro é o plano objetivamente racional para o indivíduo.


Isto significa que devemos ter uma compreensão das conseqüências, sejam boas ou ruins.

Segundo o filósofo estadunidense, é irracional nos preocuparmos em encontrar o


melhor plano, aquele que escolheríamos se tivéssemos a informação completa. Deve se levar
em conta os custos da deliberação, em outras palavras, o processo.76

O bem como racionalidade não atribui nenhum valor especial ao processo decisório.
Pressupõe-se que a reflexão cuidadosa irá variar de um indivíduo para outro.

Para projetar o plano racional de vida é necessária uma racionalidade deliberativa,


como vimos anteriormente. Para realizar tal projeto, pressupõe-se que o sujeito seja dotado de
determinadas competências e habilidades. Entretanto, as circunstâncias nas quais
compreendemos nossos desejos podem ser contraditórias e, portanto, a racionalidade
deliberativa não responderá à necessidade de compreendermos e avaliarmos as contingências
em envolvem os interesses e os desejos pessoais. Não se pode negar que os processos de
constituição e desenvolvimento do sistema de desejos influem na tomada das decisões.

O nosso bem, assim, é determinado pelo plano racional de vida que seria possível
adotar se o futuro fosse adequadamente previsto e imaginado. O critério do bem é hipotético,
de uma maneira que lembra o critério da justiça. Quando surge a dúvida sobre se algo está de
acordo com o nosso bem, a resposta depende do quanto essa ação irá se adaptar ao plano

75
Ibidem, p. 460.
76
Ibidem, p. 462.
41

escolhido. Portanto, a idéia de bem pode ser adaptada, através de um juízo deliberativo, de
acordo com a possibilidade de incrementar ou desorganizar o plano racional eleito.

Nesse sentido, cada ação ou escolha deve passar pela análise dos critérios de
racionalidade deliberativa, uma vez que o conceito de bem não serve como critério; ele é
hipotético, contingencial. O que é perene é o procedimento de análise das circunstâncias para
saber se se enquadra no plano racional de vida ou não.

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