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Nesse sentido, o objetivo geral constitui-se em uma análise das implicações de uma
regulação restritiva quanto ao acesso às tecnologias reprodutivas. Tal objetivo desdobra-se na
análise dos projetos de leis que tramitam no Congresso Nacional a respeito da regulação das
tecnologias reprodutivas, bem como na identificação do discurso jurídico sobre a concepção
de família e de pessoa presentes no ordenamento jurídico brasileiro.
Entretanto, o projeto de lei mais debatido e comentado, em fase adiantada para a sua
aprovação, limita o acesso à reprodução medicamente assistida somente aos cônjuges ou ao
homem e à mulher em união estável (substitutivo do PL n. 90/99). Em outras palavras, o
referido anteprojeto faz uma opção pelo critério da conjugalidade heterossexual e da
estabilidade dos relacionamentos para conferir acessibilidade às tecnologias conceptivas.
Cabe aqui explicitar a razão da referência a este autor em particular. Ocorre que em
Rawls foi possível vislumbrar uma concepção de justiça que não promovesse a exclusão de
diferentes estilos de vida familiar, bem como privilegiasse a autonomia individual para
conceber e concretizar um plano de vida compatível com as demais liberdades dos sujeitos em
sociedade. Dessa forma, ainda que este filósofo político em especial tenha merecido
importantes e justas críticas quanto ao seu projeto de construção de uma teoria da justiça –
marcada explicitamente pelo liberalismo político –,vale a pena destacar seus argumentos
naquilo que racionalmente estabelece uma relação de pertinência e aplicabilidade com uma
sociedade e um ordenamento jurídico complexo como o brasileiro.1
De acordo com Oliveira, nenhuma outra obra de filosofia política tem recebido tanta
atenção nos meios acadêmicos e culturais do mundo inteiro quanto Uma Teoria da Justiça de
John Rawls. O trabalho monumental de Rawls, afiança Oliveira, emerge como ponto de
referência necessário para explorarmos o cenário ético-política contemporâneo, opondo
universalistas e comunitaristas, construtivistas e intuicionistas, deontologistas e utilitaristas.2
1
Para um cotejamento crítico dos argumentos rawlsianos, ver: HABERMAS, Jürgen; RAWLS, John. Debate
sobre el liberalismo político. Barcelona: Ediciones Paidós, 1998; HABERMAS, Jürgen. A inclusão do outro –
estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2002; LEITE, Luiz Bernardo. Uma questão de justiça:
Habermas, Rawls e MacIntyre. In: FELIPE, Sonia T. (org.). Justiça como eqüidade. Florianópolis: Insular, p.
209-230, 1998; RAMOS, César Augusto. A crítica comunitarista de Walzer à teoria da justiça de John Rawls. In:
FELIPE, Sonia T. (org.). Justiça como eqüidade. Florianópolis: Insular, 1998, p. 231-243; TAYLOR, Charles. A
política de reconhecimento. In: _______. Multiculturalismo. Lisboa: Instituto Piaget, [s.d.], p. 45-94; VAN
PARIJS, Philippe. Difference principles. In: FREEMAN, Samuel. (ed.). The Cambridge Companion to Rawls.
Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p. 200-240; NAGEL, Thomas. Rawls and liberalism. . In:
FREEMAN, Samuel. (ed.). The Cambridge Companion to Rawls. Cambridge: Cambridge University Press,
2003, p. 62-85.
2
Cf. OLIVEIRA, Nythamar F. de. Tractatus ethico-politicus: genealogia do ethos moderno. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 1999, p. 163-4. Nedel assevera que John Rawls é indubitavelmente um dos mestres da filosofia
moral e política mais respeitáveis da atualidade. Sua teoria da justiça se afigura incontornável pelos que se
prezam como estudiosos aplicados e sérios da ética social e da filosofia política, em nossos dias. (NEDEL, J. A
teoria ético-política de John Rawls: uma tentativa de integração de liberdade e igualdade. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2000, p. 188). Por fim, Nozick aponta: “Os filósofos políticos têm agora de trabalhar com a teoria
de Rawls ou explicar por que não o fazem”. (NOZICK, R. Anarquia, Estado e Utopia. Rio de Janeiro: J. Zahar,
4
1991, p. 202).
5
3
Geertz nos fala da interdependência entre o direito e a antropologia. Tais campos funcionam à luz do saber
local, tendo em vista a semelhança com que focalizam o objeto de seus estudos: “para conhecer a cidade é
preciso conhecer as ruas”. De fato, esse trabalho não se propõe a impregnar de significados jurídicos algumas
práticas sociais – especialmente em relação à filiação e parentesco – tão pouco corrigir raciocínios jurídicos
através de interpretações antropológicas. Como sugere Geertz, trata-se de um ir e vir hermenêutico entre dois
campos, a fim de formular as questões morais e políticas relevantes para os dois campos. (GEERTZ, Cliford. O
saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 249-253).
6
As práticas de reprodução assistida são uma realidade que se populariza nos diferentes
segmentos sociais e ganha discussões acaloradas entre os profissionais das áreas médica e
jurídica.5
Do ponto de vista desta análise, existem dois processos que nos interessam
prioritariamente: a construção da normatividade, sobretudo nos debates para a elaboração e
aprovação de uma legislação para regulamentação das práticas médicas em Reprodução
Assistida, bem como as moralidades subjacentes às decisões judiciais sobre a representação
de família e parentesco.
Esses dois processos estão interligados, eis que se pretende que a normatividade
legislativa venha embasada em critérios e paradigmas concretizados pelos sujeitos no seu agir
humano compartilhado, especificamente no que tange ao modo pelo qual se realizam os
diferentes estilos de convivência familiar. Dessa forma, se o contexto explicativo para a
constituição de normas para a Reprodução Assistida se dá no âmbito da discussão sobre
parentesco e relações familiares, torna-se indispensável resgatar os possíveis
encaminhamentos orquestrados sob o domínio do discurso jurídico, notadamente da
jurisprudência, a fim de melhor compreendermos a vigência da representatividade dos estilos
familiares significativos para esse campo específico e suas repercussões.
acumulados nas últimas décadas de estudos sobre reprodução vegetal e animal. De acordo
com Rotania, as tecnologias, os procedimentos, os produtos e os processos vêm sendo
aplicados na procriação direta ou indiretamente tanto para a contracepção quanto para a
concepção artificial, avaliação pré-natal, manipulação embrionária, diagnósticos e
terapêuticas.6
6
ROTANIA, A. A celebração do temor: biotecnologias, reprodução, ética e feminismo. Rio de Janeiro: E-
papers, 2001,p. 77-8.
7
Necessário faz-se advertir para a diferença entre engenharia genética e práticas médicas de assistência à
reprodução humana. A engenharia genética compreende as técnicas dirigidas para a alteração ou modificação da
herança de alguma espécie, seja com o fim de superar enfermidades de origem genética (terapia gênica), seja
para promover o melhoramento da espécie através da manipulação de determinadas características genéticas
(clonagem humana). A terapia gênica consiste na correção de genes defeituosos através da técnica do DNA
recombinante. A clonagem, por sua vez, consiste na retirada do núcleo de uma célula reprodutora e introdução,
nessa célula, do material genético do ser que irá ser clonado, copiado. Ver: GEDIEL, José Antônio Peres.
Tecnociência, dissociação e patrimonialização jurídica do corpo humano. In: FACHIN, Luiz Edson (coord.).
Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, p. 57-85, 1998; LEIVAS,
Paulo Gilberto Cogo. A genética, a eugenia e o conceito de dignidade humana. In: MARTINS-COSTA, Judith.
A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 551-570. De outra forma, as
práticas médicas de assistência à reprodução humana operam na perspectiva de mediação da demanda por filhos.
Tal demanda, entretanto, pode vir acrescida de outras particularidades como a possibilidade de escolha e ou
manejamento de caracteres físicos dos embriões, ou mesmo escolha desses embriões em bancos de sêmen de
doadores considerados inteligentes, por exemplo. No Brasil, o artigo 8 , III, da Lei 8.974, de 05.01.1995,
chamada Lei de Biossegurança, permite a intervenção em material genético humano exclusivamente para
tratamento de anomalias genéticas.
8
Segundo Vargas, a ausência de filhos não necessariamente está ligada a doença, mas
passou a ser tratada historicamente como uma patologia médica.8 Sob a perspectiva de uma
patologia, houve a necessária correspondência entre tratamento e intervenção médica e
infertilidade, eis que esta está intimamente ligada ao corpo humano, mais precisamente ao
corpo feminino.9
8
VARGAS, Eliane Portes. Gênero e infertilidade na ótica feminina. In BARBOSA, Regina et. al. (orgs.).
Interfaces Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva. Campinas: Editora da UNICAMP, 2002, p. 311.
9
Pode-se, ainda, pensar a infertilidade no contexto das experiências humanas universais de sofrimento, aflição,
perturbação, mal-estar, concebida como doença física na tradição cultural ocidental e, portanto, tratável pelo
sistema de saúde. (VARGAS, Eliane Portes. Op. cit., p. 342, nota 15). De outra forma, a Organização Mundial
da Saúde define a infertilidade como a ausência de concepção natural depois de, pelo menos, um ano de
intercurso sexual periódico sem proteção anticoncepcional. A infertilidade pode ser relacionada a diversas
causas. Consoante nos afirma Silva, as causas mais comuns de infertilidade são de origem feminina: lesões das
trompas de falópio, tumores no útero, lesões do colo uterino, endometriose, transtornos hormonais, anomalias no
aparelho reprodutor. As causas de origem masculina representariam, aproximadamente, 30% do total das
infertilidades, destacando-se: impotência coeundi, alterações no sêmen ou diminuição da capacidade fecundante,
transtornos hormonais, anomalias ou transtornos testiculares, tumores nos testículos, tratamentos de tumores
malignos nos testículos ou em outros órgãos, infecções de próstata. (SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 50-
2). Segundo Corrêa, o perfil de prevalência da infertilidade feminina está associado, em nosso país, a um perfil
médico-sanitarista deficiente. Nas suas palavras, “ainda que de magnitude desconhecida, o problema da
infertilidade poderia ser minorado pelo combate às causas preveníveis (fibroses e bloqueio de trompas) através
de um bom sistema de saúde pública. Como isto não ocorre, acredita-se que um grande potencial de usuários
para as tecnologias reprodutivas está reprimido, em função dos elevados custos” (CORRÊA, Marilena Villela. A
tecnologia a serviço de um sonho: um estudo sobre a reprodução assistida. Rio de Janeiro: UERJ / Programa de
Pós-Graduação do Instituto de Medicina Social, Tese de Doutorado, 1997, p. 178). Como pode-se verificar, a
infertilidade tem uma configuração difícil, com diagnósticos médicos e critérios pouco precisos enquanto
categoria. Existe um grande número de situações de infertilidade nas quais não há obstáculo fisiológico
irreversível para a ocorrência de uma gravidez, mesmo assim ela não ocorre. Embora não seja possível
determinar definitivamente tal conceito, alguns projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional restringem
o acesso às novas tecnologias reprodutivas às hipóteses de ‘infertilidade’ comprovadamente diagnosticada, como
o substitutivo ao PL 90/99.
10
Destaca-se, ainda, para além das diferenças de gênero no que diz respeito à infertilidade que há uma
considerável diferença de classe social quanto à acessibilidade aos serviços de saúde para o fato da ausência de
filhos. Existem poucos serviços públicos, os quais possuem critérios rigorosos de seleção dos possíveis
pacientes/usuários. Em virtude da grande demanda e da diminuta oferta de vagas, muitas vezes há uma fila de
espera de mais de um ano para o atendimento. Além da desproporção entre a demanda e a oferta no setor
público, ocorre que o Sistema Único de Saúde não cobre os medicamentos utilizados nas diferentes fases do
‘tratamento’ médico. Dessa forma, para as classes sociais mais abastadas a oferta e as possibilidades de escolhas
são maiores. De acordo com Corrêa, há que se considerar, também, que nenhuma das etapas da Reprodução
Assistida é custeada por qualquer tipo de plano ou seguro de saúde, público ou privado. (CORRÊA, Marilena
Villela. Op. cit., p. 164-5).
11
VARGAS, Eliane Portes. Op. cit., p. 316. Cabe esclarecer que os estudos que refletem sobre a construção dos
papéis sociais atribuídos a homens e mulheres vêm ganhando espaço na academia com os, assim denominados,
9
Esse dado é relevante, pois torna possível olhar para a questão do acesso às
tecnologias reprodutivas tendo presente a dinâmica em que se opera essa busca por
descendência, que é específica e não se configura nos mesmos modelos familiares a que se
atribui uma certa hegemonia nas sociedades contemporâneas ocidentais.
O fato irrefutável com que devemos concordar é que todas as sociedades humanas
possuem uma exigência comum: a procriação.
estudos de gênero. Para Scott, quando se fala em gênero, a referência que se faz é ao discurso da diferença dos
sexos. Este termo não se refere apenas às idéias, mas também às instituições, às estruturas, às práticas cotidianas,
aos rituais e a tudo que constitui as relações sociais. Portanto, o gênero é a organização social da diferença entre
os sexos. Ele não reflete a realidade biológica primeira, mas constrói o sentido dessa realidade (GROSSI,
Mirian; HEILBORN, Maria Luiza; RIAL, Carmem. Entrevista com Joan W. Scott. Revista Estudos Feministas,
Rio de Janeiro, v.8, n.1, 1998, p. 115). Warat infere que, quando se fala em gênero, está se colocando em
discussão as implicações que o exercício do poder tem sobre a configuração da subjetividade masculina e
feminina. Trata-se do gênero determinando as áreas de poder diferenciadas para ambos os tipos de subjetividade
masculina ou feminina, com distintos efeitos sociais. (WARAT, Luis Alberto. A questão de gênero no direito. In
DORA, Denise Dourado. Feminino e masculino – igualdade e diferença na justiça. Porto Alegre: Sulina, 1997, p.
59). De acordo com Heilborn, “o conceito de gênero ambiciona distinguir entre o fato do dimorfismo sexual da
espécie humana e a caracterização de masculino e feminino que acompanham nas culturas a presença de dois
sexos na natureza. Este raciocínio, explica a autora, apóia-se na idéia de que há machos e fêmeas na espécie
humana, mas a qualidade de ser homem e ser mulher é condição realizada pela cultura”. (HEILBORN, Maria
Luiza. De que gênero estamos falando? Sexualidade, Gênero e Sociedade, a. 1, n. 2, dez. 1994, p. 01-08).
12
No fragmento de uma entrevista realizada por Vargas, a entrevistada fala de sua ‘vergonha’ em não ter filhos:
“E vou ser até sincera. Às vezes, eu fico até com vergonha. Porque, às vezes, eu fico pensando assim: ‘será que
– um exemplo, uma suposição – a pessoa...’ como minha cunhada. Teve três filhos, tem até um bebê agora com
três meses. Aí, ela deixa muito o bebê comigo. Eu fico pensando: ‘será que se eu falar o meu problema, ela vai
duvidar?’Vai ficar depois, assim, qualquer coisa vai querer jogar na minha cara que eu não tenho filho e que eu
sou uma pessoa até, assim, recalcada?”. (VARGAS, Eliane Portes. Op. cit., p. 326-8).
10
alguma forma, são tensionados diante da circunstância da ausência de prole. Ocorre que cada
sociedade segue um costume coerente que lhe é próprio e é socialmente compartilhado.13
Esta simbologia ainda está muito presente entre nós. O projeto de ser humano advindo
da união sexual ou da terapêutica médica está fadado a carregar os estigmas/símbolos
anteriores à sua própria existência. Tal responsabilidade pode ser medida pelos cuidados na
seleção, organização e normatização daqueles que terão acesso, por exemplo, aos
procedimentos de RA.15 O equilíbrio observado em sua plenitude na natureza deve ser
preservado naquilo que o homem maneja, a fim de que seja compatível com a perfectibilidade
encontrada na ordem do natural. Por isso, o reforço em um modelo tradicional de constituição
familiar, a fim de evitar possíveis descaminhos.
13
HÉRITIER, Françoise. A coxa de Júpiter – reflexões sobre os novos modos de procriação. Revista Estudos
Feministas, v. 8, n.1, 2000, p. 98.
14
ROTANIA, Alejandra. Op. cit., p. 43.
15
Doravante a expressão será indicada por RA. Inicialmente, tais práticas médicas que permitiam que pessoas
estéreis fossem capazes de procriar eram denominadas ‘artificiais’. Posteriormente, a expressão foi substituída
por ‘reprodução assistida’, segundo Corrêa, em função de impasses e contradições surgidos no uso e na difusão
da tecnologia, sendo preferível, assim, mantê-la no domínio do natural. (CORRÊA, Marilena Villela. Op. cit., p.
184).
11
Assim sendo, este trabalho, tendo como tema o processo de regulamentação jurídica
das tecnologias reprodutivas no Brasil, pretende confrontar as diferentes perspectivas de
16
ROTANIA, Alejandra. Op. cit., p. 48-9.
17
Os remanescentes valorativos positivos da natureza feminina foram revertidos, por volta da segunda metade do
século XVI e primeira metade do século XVII, coincidentemente no período da emergência da visão racional-
mecanicista. (Ibidem, p. 55-6).
12
18
PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Problemas atuais de bioética. 6. ed. rev. e ampl. São
Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 187.
19
No campo da reprodução humana, as experiências de Inseminação Artificial iniciam no século XVIII. Em
1791, o médico inglês Hunter realizou a experiência de injetar esperma de um homem na vagina de sua esposa.
Entretanto, somente em 1799 foi relatada a primeira gravidez resultante do procedimento. Cf. Dossiê
Reprodução Humana Assistida. Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos.
Agosto de 2003. De acordo com Rohden, no Brasil, a fecundação artificial já era descrita pelo periódico Brazil
Medico, em 1912, da seguinte forma: “A técnica de fecundação artificial é simples. Estando tudo preparado, faz-
se com que o coito se realize com um condom (camisa de Vênus), onde o esperma se ajunta, recolhe-se-o depois
em uma cápsula esterilizada, e com uma seringa de Braun injeta-se um pouco dele no útero”. ROHDEN,
Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo, contracepção e natalidade na medicina da mulher. Rio de Janeiro:
UFRJ/Programa de Pós-graduação em Antropologia Social, Tese, 2000.
13
Nas primeiras décadas do século XX, o assunto ganha espaço em razão da queda das
taxas de natalidade e dos resultados deste fenômeno para as nações. De outra forma, no
cenário médico brasileiro alguns estudos passam a tratar da ausência de fecundidade e suas
conseqüências para, primeiramente os indivíduos e para o casal, posteriormente, para a
sociedade.23
20
Na França, existem bancos de sêmen desde 1973 (Centre d’Étude et de Conservation du Sperme – CECOS).
No Brasil, o primeiro banco de sêmen foi instalado no Hospital Albert Einstein, em 1993. Nos referidos bancos
de armazenamento, os gametas são congelados e os pré-embriões são criopreservados até que concretizem seus
fins ou no caso de embriões excedentes, sejam doados, utilizados em pesquisa ou eliminados. Pelo fato de não
haver uma normatização a respeito do destino desses embriões, cada clínica opera segundo seus próprios
critérios organizacionais, a despeito de a Resolução n. 1.358/92 do Conselho Federal de Medicina proibir o
descarte de pré-embriões excedentes, conforme item V, número 2, que trata da criopreservação de gametas ou
pré-embriões, in verbis: “o número total de pré-embriões produzidos em laboratório será comunicado aos
pacientes, para que se decida quantos pré-embriões serão transferidos a fresco, devendo o excedente ser
criopreservado, não podendo ser descartado ou destruído”. Outra questão bastante conflituosa envolvendo os
bancos de sêmen diz respeito à responsabilidade destes em guardar semelhança física entre doadores e usuários.
Observa-se, aqui, um dado semelhante às expectativas conhecidas em relação à filiação por adoção. Também na
adoção privilegia-se tal aproximação de características físicas entre adotante e adotado. Há uma supervalorização
da identificação pelos atributos físicos em relação à palavra, afetividade e convivência. Conforme noticia Corrêa,
um estudo revelou que 80% dos casais que recorreram à inseminação artificial por doador e tiveram êxito na
rede francesa de CECOS pediam que, em uma demanda por outro filho, fosse utilizado o sêmen do mesmo
doador para que as crianças guardassem semelhança física. (CORRÊA, Marilena Villela. Op. cit., p. 201).
21
Em inglês, in vitro fertilization embrio-transfert (FIV-ET).
22
A expressão ‘bebê de proveta’ é equivocada, pois a proveta é um instrumento de medida de volume de
líquidos. A inseminação, em realidade, ocorre em tubos de ensaio ou placas de Petri.
23
ROHDEN, Fabíola. Op. cit., p. 238. De acordo com Citeli, na década de 80, os pesquisadores constatavam
uma queda brusca de fecundidade no Brasil. (CITELI, Maria Teresa. Op. cit., p. 184).
14
Esta resolução tem como critério de acessibilidade a indicação terapêutica do uso das
técnicas de reprodução medicamente assistida. Em nenhum momento essa Resolução do
Conselho Federal de Medicina menciona impedimentos ao emprego das técnicas em
indivíduos solteiros.24
Diante desse contexto, faz-se necessário adentrarmos nos conceitos relativos aos
procedimentos e refletirmos sobre os efeitos do uso das tecnologias conceptivas.
24
Assim resolve o Conselho Federal de Medicina quanto aos usuários das técnicas de reprodução assistida: “1 -
Toda mulher capaz, nos termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta
Resolução, pode ser receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em
documento de consentimento informado. 2 – Estando casada ou em união estável, será necessária a aprovação do
cônjuge ou do companheiro, após processo semelhante de consentimento informado”.
15
25
As definições foram coletadas a partir de PESSINI, Leo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul. Op. cit., p.
188-9; ROTANIA, Alejandra. Op. cit., p. 83-132 e SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 53-73.
26
Cf. SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 56-7. De acordo com Oliveira, a estimulação hormonal gera, entre
outros efeitos colaterais, desequilíbrios hidroeletrolíticos, turvação visual, hipertrofia dos ovários. (OLIVEIRA,
Fátima. Filhos(as) da tecnologia: questões éticas da procriação assistida. O Mundo da Saúde, v. 21, n. 3,
mai./jun. 1997, p. 170).
16
27
Ver Resolução n. 1.358/92, item VII, de 1 a 7. Como uma implicação importante, destaca-se que a taxa de
nascimentos de prematuros resultantes de fertilização in vitro é aproximadamente seis vezes maior (24 a 29,5%)
que sua ocorrência em gravidezes que não recorreram às tecnologias (4 a 6%). (SILVA, Reinaldo Pereira e. Op.
cit., p. 66-7).
28
São necessários os seguintes procedimentos preparatórios: uma laparoscopia ou minilaparoscopia na mulher,
sendo exigida sua internação, bem como uma histerossalpingografia, a fim de avaliar o estado das trompas. Cf.
SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., 58-9.
29
Essa técnica é indicada para casos de infertilidade masculina – por escassez ou baixa mobilidade dos
espermatozóides. Cf. SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 67-8.
30
Alguns autores chamam de ‘técnica de revitalizaçao’.
17
de enzimas para o óvulo da receptora. Essas enzimas colaboram para fortalecer o mecanismo
de distribuição cromossomática que se encontra prejudicado nos óvulos de uma mulher em
idade mais avançada.
Para além da delimitação conceitual dos procedimentos de RA, deve ser relatado,
ainda que sumariamente, o percurso anterior à manipulação propriamente dita. Com este
dado, pode-se compreender e avaliar as implicações dos procedimentos técnicos sobre os
corpos, sobretudo o feminino. A descrição deste processo nos permite vislumbrar a não
trivialidade das manipulações pelas quais passa o corpo feminino.
A coleta dos óvulos se realiza por celioscopia, isto é, por anestesia geral ou punção
sob controle ecográfico (anestesia local). Uma grande agulha é introduzida sucessivamente
em cada um dos folículos maduros; o conteúdo é aspirado com ajuda de uma seringa, ou de
31
O clomifeno é utilizado para levar à maturação dos folículos. O hMG, ministrado via intramuscular, é um
complexo hormonal extraído da urina de mulheres menopáusicas, cuja atuação é induzir o crescimento do
folículo num ciclo natural. Cf. ROTANIA, Alejandra. Op. cit., p. 84-5.
18
uma bomba a vácuo e levado ao laboratório. Esta agulha de punção pode ser introduzida no
abdome por diferentes vias: através do fundo da cavidade vaginal ou pelo canal da uretra.32
Dessa forma, destacamos que essa não banalização dos procedimentos e a sua
necessária explicitação nos possibilita ter outras perspectivas quanto aos questionamentos que
são realizados aos sujeitos-pacientes que se submetem a essas intervenções no próprio corpo.
É possível que em uma leitura mais apressada se possa ainda repetir um discurso que vincula
as técnicas de RA a meros desejos individualistas de realização pessoal ou de um casal. O que
se pretende por aqui é dimensionar, através da confrontação com outros dados e argumentos,
o fenômeno das tecnologias reprodutivas no contexto brasileiro, para além de um discurso que
opõe tecnologia e mulheres, moralidade e imoralidade, normalidade e anormalidade.
Se, por um lado, temos implicações de ordem prática e moral quanto aos
procedimentos, por outro, tais efeitos, muitas vezes inevitáveis, são alvo de um
aperfeiçoamento do aparato tecno-científico, a fim de melhorar os níveis de eficácia dos
tratamentos e procedimentos para auxiliar na concretização das demandas por um filho.34
Entretanto, sabe-se que esses ‘novos’ modos de reprodução não estão ligados numa relação de
causalidade pura ao desenvolvimento tecnológico e científico. Ao contrário, conforme nos
32
Conforme noticia Silva, tem-se desenvolvido uma técnica para recuperar por aspiração os gametas femininos
através de uma agulha guiada por ultra-som, evitando a laparoscopia. Esta nova técnica, ainda que menos
custosa e invasiva, não descarta o risco de uma hemorragia oculta. (SILVA, Reinaldo Pereira e. Op. cit., p. 62-
3).
33
ROTANIA, Alejandra. Op. cit., p. 83.
34
Segundo Brauner, as taxas de sucesso nos procedimentos em RA, nas clínicas mais famosas, não chegam a
15%. Esse número é discutível, sem dúvida, pois não há segurança e confiabilidade nos dados, eis que não há
recomendação para o registro dessas práticas pelo Conselho Nacional de Saúde, nem uma obrigatoriedade no
acatamento dos protocolos do Conselho Federal de Medicina, no que diz respeito a clínicas particulares.
19
sugere a análise de Héritier, somos apresentados a diferentes fórmulas que, em algum tempo e
espaço, foram atualizadas e ressignificadas, em outras sociedades.35
Tanto estas instituições não são biologicamente fundadas que observamos os mais
variados estilos de vida familiar: famílias nucleares, reconstituídas (formadas pela
convivência entre os filhos do homem e da mulher de uma união anterior), monoparentais
(por circunstâncias ou por opção). O que a própria Constituição Federal de 1988 chamou de
‘entidade familiar’, no seu artigo 226, parágrafo 4 , nada mais é que a legitimação de fatos
sociais que passavam ao largo da proteção do Estado, mas que, diante da sua
representatividade dentro da sociedade, tiveram sua expressividade acatada como forma de
garantir os direitos dos sujeitos que compartilham daquelas relações, notadamente os filhos.
35
Sua reflexão não se apóia em considerações de caráter moral sobre a difícil classificação dos fatos em normal e
anormal, natural ou artificial, haja visto que os fatos referentes ao parentesco e a filiação são, via de regra, em
toda a parte, uma questão de convenção social. Não sugere, ainda, que se possa adotar modelos passíveis de
adaptação a qualquer sociedade.
36
As regras que definem a filiação, este lugar necessário e de direito do qual depende o reconhecimento do lugar
dos sujeitos na família e na sociedade, são ancoradas naquilo que o corpo humano, e portanto a natureza
humana, tem de mais irredutível: a diferença dos sexos. Cf. HÉRITIER, Françoise. Op. cit., p. 99.
20
Imprimiu-se uma ‘nova tábua de valores’,38 onde a tutela da dignidade humana refletiu
diretamente nos valores fundantes das relações parentais e familiares.39
37
CARBONERA, Silvana M. O papel jurídico do afeto nas relações jurídicas. In: FACHIN, Luiz Edson (coord.).
Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 283. De acordo com
Costa, a família brasileira, no período colonial, constituía-se por razões que consideravam, tão-somente, os
interesses e benefícios econômicos e sociais do grupo familiar. Os motivos de ordem afetiva raramente pesavam
na determinação de uma união conjugal. O casamento não celebrava, portanto, o reconhecimento social da união
amorosa entre indivíduos. O amor não era um pressuposto necessário para a ligação conjugal. No entanto, esta
espécie de prática matrimonial entrou em desuso já no século XIX. O núcleo familiar formado com apelo
exclusivo à defesa da propriedade revelou-se pouco hábil na proteção da infância. As preliminares para a
garantia de um bom casamento mudaram de tom. O compromisso essencial do casal passa a ser com filhos. Não
se tratava mais, nas palavras de Costa, de amar o pai sobre todas as coisas, e sim a raça e o Estado como a si
mesmo. No casamento idealmente concebido o cuidado com a prole converteu-se no grande paradigma para a
defesa da raça e do Estado. Cf. COSTA, Jurandir Freira. Ordem médica e norma familiar. 4. ed. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1999, p. 215-219.
38
TEPEDINO, Gustavo. A disciplina civil-constitucional das relações de família. In: TEIXEIRA, Sálvio de
Figueiredo (coord.). Direitos de família e do menor. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1993, p. 48.
39
CARBONERA, Silvana M. Guarda de filhos na família constitucionalizada. Porto Alegre: Sérgio Fabris
Editor, 2000, p. 36.
21
Para além das estruturas sociais organizadoras das relações afetivas entre homens e
mulheres, foi preciso desenvolver mecanismos de adaptação para o fato da ausência, seja
voluntária ou não, de descendência.40
O ser humano, assim sendo, diante daquilo que é observável e inteligível sobre os
fatos da natureza e de sua capacidade de analisá-los criticamente, construiu suas instituições e
estrutura social, os quais realizam a função de legitimar os fatos sociais. Dessa forma, foram
engendradas as mais variadas formas de superação desse ‘problema’41 e de conferir
legitimidade e inscrição social dos filhos.
O estatuto dos filhos naturais é sempre visto de forma mais ou menos satisfatória. Não
existem, até nossos dias, sociedades humanas que sejam fundadas unicamente sobre a simples
consideração da procriação biológica ou que lhe tenham atribuído a mesma importância que a
filiação socialmente definida. Todas consagram a primazia do social – da convenção jurídica
que funda o social – sobre o biológico puro. A filiação não é, portanto, um simples derivado
da procriação. Isto porque sempre existiram mulheres e homens que, ao se unirem, não
produziram filhos. Assim sendo, havia a necessidade de contornar tal situação, o que
acarretou na construção de diferentes mecanismos de superação da ausência de filhos ditos
naturais por filhos advindos de laços afetivo-sociais.42
40
Sabe-se que a ausência voluntária de prole é observada como uma expressão do egoísmo e individualismo
exacerbado dos ‘tempos modernos’, merecedora, portanto, de um juízo depreciativo. Diferentemente, mas
também negativa do ponto de vista social, a ausência não desejada de filhos enseja sentimentos de culpa e
vergonha pela incapacidade de gerar, além da prevalência de um mal-estar gerado pela sensação de
incompletude. Tais sentimentos, por óbvio, divergem segundo os recortes de gênero e de classe social.
41
O ‘problema’ da ausência de filhos pode ser ilustrado com estes dois trechos de falas de duas mulheres
entrevistadas por Vargas: “As [mulheres] que não conseguem, muitos têm pena. É o primeiro sentimento que
vem, né? Coitada não pode ter filho”. O outro trecho destaca a impossibilidade de ter filhos como um
‘problema’ que legitima a mulher a procurar um tratamento: “Mesmo sabendo que pelo menos não é assim, não
é coisa que ela arrumou, que é coisa que aconteceu. Ela já nasceu com esse problema. Mas ela se sente
diferente. Ainda mais quando ela vê uma mulher ou grávida ou o neném novinho. [...] A mulher que não tem
filho, tem muita gente que fala assim: ‘uma figueira’, né, que não tem fruto”. Cf. VARGAS, Eliane Portes. Op.
cit., p. 329-330.
42
Se as instituições sociais como o casamento, a filiação ou as formas de organização familiar fossem fundadas
biologicamente, elas não variariam e se apresentariam sempre de uma mesma forma universal e necessária, o que
não encontra correspondente no mundo dos fatos, em conformidade ao mencionado anteriormente.
22
Ao nascer, a criança não existe como ser humano único e inteiro. Ela é vista como
resultado, por exemplo, da justaposição de um certo número de componentes, alguns destes
herdados dos próprios genitores. A criança está encerrada numa série de determinismos e
inscrita numa linha de descendência que assinala um continuum. Essa criança só existe como
pessoa quando lhe é atribuída sua respectiva identidade social, identidade essa marcada pelo
nome. De acordo com Héritier, uma demanda por filhos parece tratar-se mais de um desejo de
descendência e de um desejo de realização do que de um desejo de filho, e mais da
necessidade de cumprir um dever para consigo mesmo e com a coletividade do que da
reivindicação de um direito de possuir. Dessa forma, nessa perspectiva, o desejo e o dever de
descendência também se constituiriam em um desejo e dever de realização. As duas
dimensões não estão dissociadas, e, portanto, a supervalorização de uma em detrimento da
outra é um dado a ser problematizado, pois pode revelar pressupostos estrategicamente não
explicitadas.
Dessa forma se justifica que aqueles que não cumprem esse dever de continuidade da
espécie devam procurar ‘remediar’ tal obrigação, seja pela adoção, seja pelo recurso às
tecnologias reprodutivas.44
43
Nesse sentido, Corrêa afirma que, em alguns modelos societais, o indivíduo tem o dever de assegurar sua
continuidade pela descendência. No Ocidente, ele procria também por esses motivos, mas principalmente porque
‘deseja ter filhos’. Mesmo que persista uma forte pressão social a favor da realização desse desejo, a procriação,
em nossa sociedade, não é tida como um dever social inquestionável. E nos casos de impossibilidade de
realização, esse desejo era ‘resolvido’ pela adoção. (CORRÊA, Marilena Villela. Op. cit., p. 189).
44
Sobre uma aparente oposição entre as tecnologias reprodutivas e a adoção, ver: BRAUNER, Maria Claudia
Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana: conquistas médicas e o debate bioético. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 45-148. De acordo com Brauner, embora a adoção constitua uma experiência construtiva e
enriquecedora, ela não representa o caminho escolhido por todos os que não podem gerar naturalmente. Nesse
sentido, a autora reconhece a legitimidade do recurso aos tratamentos para a infertilidade e esterilidade
oferecidos pela ciência moderna (Ibidem, p. 64). No mesmo sentido, ver: CORRÊA, Marilena Villela. Op. cit., p.
189-190.
23
Essas soluções não técnicas estão apoiadas, sobretudo, na palavra (ordem da cultura).
É pela palavra, pelo discurso que o homem vai preencher e significar a forma pela qual as
aproximações e distanciamentos entre a ordem da cultura e da natureza (neste caso referido,
pelos laços sangüíneos) engendrados pelo homem devem ser compartilhados pelos
indivíduos.
Nesse sentido concordamos com Héritier, pois, no caso específico da RA, algumas das
práticas referidas na literatura e no próprio discurso biomédico nada mais são do que
mecanismos - aperfeiçoados pelo desenvolvimento científico e tecnológico - já manejados,
em alguma medida, por diferentes sociedades através de suas estruturas e instituições sociais.
Encontramos na sociedade contemporânea as mesmas práticas de manutenção e preservação
da espécie diante das impossibilidades fisiológicas, entretanto elas estão sob diferentes
registros.46
45
HÉRITIER, Françoise. Op. cit., p. 104. Outra das entrevistadas por Vargas vincula o ‘não poder engravidar’ ao
‘não ser mulher’, constituindo-se, assim, em uma das medidas da própria identidade que se vê ameaçada: “Só
porque a gente não pode ter filho a gente não é mulher? Ela se sente mais mulher porque pode engravidar, ter
filho [...] Eu já ouvi também falando de mim que mulher que não pode ter filho não é ... [...] Falaram que eu não
era mais mulher. Porque eu não posso ter filho, eu não sou mulher”. Cf. VARGAS, Eliane Portes. Op. cit., p.
336.
46
Para exemplificar, destacamos dois relatos de práticas observadas entre os Samo de Burkina Fasso. O primeiro
trata de uma das formas de casamento em que uma menina é prometida desde o seu nascimento ou infância.
Entretanto, antes de ser entregue ao seu marido, a jovem mantém durante três anos, no máximo, relações com
24
De acordo com Héritier, todas as fórmulas que nós pensamos serem novas são
possíveis socialmente e já foram experimentadas em sociedades particulares. Mas, para que
elas funcionem como instituições, é preciso que elas sejam mantidas sem ambigüidades pela
lei do grupo, inscritas firmemente na estrutura social e que correspondam ao imaginário
coletivo das representações de pessoa e identidade. Nesse sentido, cabe nos perguntar se terá a
lei formalmente constituída e válida o condão de apaziguar os conflitos morais que estão
envolvidos nessa discussão sobre o acesso às tecnologias reprodutivas?
Os dados que permitem compor o estado da arte das tecnologias reprodutivas no Brasil
são incompletos e insuficientes. Colaboram para essa lacuna a falta de notificação dos
procedimentos de RA, a inexistência de controle e fiscalização das clínicas, a insuficiência de
registro e a precariedade dos dados.
um amante de sua escolha, e isto é inteiramente oficial, uma vez que o amante a visita na casa paterna. Os
próprios primogênitos nascidos sob tais circunstâncias sabem, segundo uma metáfora usual, que nasceram ‘na
casa de seu avô’. A jovem se une ao seu marido logo após o nascimento de um filho, que é considerado o
primogênito de sua união legítima. No segundo caso, observa-se que, frente à ausência de filhos, a mulher finge
concordar em deixar o seu marido legítimo, toma um marido secundário e retorna a seu esposo grávida ou mãe
de um ou vários filhos, que serão deste último. Tal prática mascara, portanto, o fato da esterilidade masculina, e
podemos, dessa forma, identificá-la como uma inseminação por doador, ainda que sua razão de ser ocorra em um
registro simbólico diverso daquele que encontramos em nossa sociedade. Podemos depreender de tal prática que
tanto a palavra quanto o sangue estabelecem a filiação, entretanto, estes diferentes mecanismos não se
distinguem quanto a inserção de uma filho na linhagem parental. Cf. HÉRITIER, Françoise. Op. cit., p. 107.
25
Observa-se que se desenvolve em larga escala, sem qualquer medida legal ou política
pública inibitória, um processo de mercantilização em relação às práticas médicas de
assistência à reprodução humana. Esse, a nosso ver, é um dos principais pontos que leva à
recomendação da normatização de tais práticas, a fim de coibir a violação das dignidades
47
Cf. Dossiê Reprodução Humana Assistida, 2003, p. 19-20.
48
Ibidem, p. 43-4.
26
objetivamente atingidas, bem como de toda a sociedade que não pode aceitar tal degradação
da condição humana de seus semelhantes e das futuras gerações.49
49
Diferentemente da ausência de regulamentação como no caso brasileiro, na França, as restrições legais para o
acesso às práticas em RA levam muitas mulheres a praticar o “tourisme procréatif”. Ocorre que diante dos
impedimentos da lei francesa para o uso das tecnologias reprodutivas por homossexuais, estes facilmente
ingressam em outros países da União Européia e até nos Estados Unidos, a fim de realizarem uma inseminação
artificial. Cf. NEIRINCK, Claire. L’enfant que l’on ne peut concevoir. In: ________ (org.). La famille que je
veux, quand je veux? Evolution du droit de la famille. Ramonville Saint-Agne: Éditions Érés, 2003, p. 52.
50
LEITE, Eduardo de Oliveira. As procriações artificiais e o direito. aspectos médicos, religiosos, psicológicos,
éticos e jurídicos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 270.
51
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana. Op. cit., p. 97. De acordo com
Andorno, a lei alemã de proteção ao embrião, que regulamenta indiretamente a procriação artificial, assegura, em
primeiro lugar, o respeito à vida humana e as condições futuras da vida social e, seulement après, reconhece a
legítima liberdade da ciência e da técnica. Cf. ANDORNO, Roberto. La distinction juridique entre les personnes
et les choses: à l’épreuve des procréations artificielles. Paris: LGDJ, 1996, p. 199.
27
De uma maneira geral, podemos destacar que os projetos de leis não tratam da
regulamentação com relação às clínicas particulares que oferecem, até mesmo na Internet,
seus serviços. Quase todas as propostas tendem a tratar de aspectos técnico-operacionais,
como, por exemplo, a quantidade de embriões que devem ser implantados, a criopreservação
de embriões, a permissão ou não de pesquisa em células germinativas, entre outros. Tais
questões revelam uma preocupação ética em relação ao tratamento dispensado às vidas em
52
LEITE, Eduardo de Oliveira. As procriações artificiais e o direito. Op. Cit., p. 292-300; BRAUNER, Maria
Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana. Op. cit., p. 99-101. Segundo Andorno, a exposição
de motivos da lei espanhola deixa transparecer um discurso que garante o laissez-faire científico, em detrimento
do respeito à vida humana quando, por exemplo, afirma que ‘a ciência deve agir sem entraves’. Para o jurista
francês, a lei espanhola, quanto à sua forma, dá a impressão de que o legislador usou de equilíbrio e prudência,
procurando conciliar as exigências da dignidade humana com o progresso da ciência. Por outro lado, quanto ao
conteúdo, a lei legitima as manipulações da vida embrionária com grande permissividade. (ANDORNO,
Roberto. Op. cit., p. 214).
53
O artigo 2141-2 do Código de Saúde Pública francês é explícito: ‘a assistência médica a procriação tem por
finalidade remediar uma infertilidade cuja característica patológica foi medicamente diagnosticada’.
(NEIRINCK, Claire. L’enfant que l’on ne peut concevoir. In: ________ (org.). La famille que je veux, quand je
veux? Evolution du droit de la famille. Ramonville Saint-Agne: Éditions Érés, 2003, p. 50)
54
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. Direito, sexualidade e reprodução humana. Op. cit., p. 102-4.
28
Tal preocupação ética - legítima, por certo - tomou vulto maior, sobretudo, pelos
investimentos e subsídios aplicados às pesquisas nessa área para o desenvolvimento de
tratamentos de doenças degenerativas graves. De um lado, existem pessoas que tentam
sobreviver sob condições de saúde adversas; por outro, cientistas e pesquisadores buscam
minimizar esse sofrimento através de pesquisas para tratamento dessas doenças, utilizando,
para tanto, todo o conhecimento já desenvolvido em genética.
55
MOTA PINTO, Paulo. O direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Portugal-Brasil, ano 2000.
Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 159.
29
Observamos a esta altura uma estreita relação entre o direito ao livre desenvolvimento
da personalidade - no caso brasileiro depreendido da interpretação do princípio da dignidade
humana - e o contexto explicativo dos projetos de leis que tratam da normatização das práticas
em RA.
A seguir, são historiados os projetos de leis que tramitam, seja na Câmara dos
Deputados, seja no Senado Federal.
O Projeto de Lei 2.855/1997, do Deputado Confúcio Moura, no seu artigo 4º, afirma
que toda mulher capaz, independentemente de seu estado civil, poderá ser usuária das técnicas
30
O Projeto de Lei n. 3.638/93 do Deputado Luiz Moreira, no seu Título II, informa
sobre as usuárias da técnica de RA. O artigo 8º assim prevê: “Toda a mulher, capaz nos
termos da lei, que tenha solicitado e cuja indicação não se afaste dos limites desta lei pode ser
receptora das técnicas de RA, desde que tenha concordado de maneira livre e consciente em
documento de consentimento informado”. Prevê, ainda, que são proibidos a redução
embrionária, o comércio de gametas e pré-embriões e também a doação temporária de útero
(gestação substituta). Regulamenta a criopreservação de gametas e pré-embriões e os
procedimentos relativos aos mesmos.57
56
Tramitação: 03/03/97 - Apresentação do projeto pelo Deputado Confúcio Moura.
23/04/97 – Nomeação do relator Deputado Sérgio Arouca (PPS/RJ) na Comissão de Seguridade Social e
Família.
02/02/99 – Arquivamento pela mesa diretora nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos
Deputados.
10/02/99 – Desarquivamento nos termos do artigo 105, § único, do Regimento Interno.
12/03/99 – Nomeação do Deputado Jorge Costa (PMDB/PA) na Comissão de Seguridade Social e Família.
15/12/1999 – Lançamento do parecer favorável do Deputado Jorge Costa (PMDB/PA).
17/05/2000 - Aprovação unânime do parecer favorável do relator Deputado Jorge Costa.
31/05/2000 – Encaminhamento à Comissão de Constituição e Justiça e Redação (CCJR).
04/08/2000 – Nomeação do relator Deputado Sérgio Miranda (PCdoB/MG) na CCJR.
31/01/2003 – Arquivamento nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.
27/03/2003 – Desarquivamento nos termos do artigo 105 do R.I.
16/04/2003 - Na CCJR, designação do Deputado Sérgio Miranda (PCdoB/MG) como relator.
05/06/2003 – Apensamento do PL-1135/2003.
02/07/2003 – Apensamento do PL-1184/2003.
02/07/2003 – Encaminhamento à Coordenação de Comissões Permanentes.
57
Tramitação: 17/03/93 - Apresentação do projeto pelo Deputado Luiz Moreira.
31/05/93 – Nomeação do Deputado Liberato Caboclo como relator pela CSSF.
02/02/95 – Arquivamento de acordo com o artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados.
15/03/95 – Desarquivamento conforme artigo 105 do Regimento Interno.
14/09/99 – Designação, na CCJR, do Deputado Marcelo Deda (PT/SE) como relator.
18/04/2001 – Redistribuição ao relator Deputado Fernando Coruja (PDT/SC).
31
Há, ainda, outros quatro projetos de leis, os quais variam muito pouco em relação aos
anteriormente relatados. Ocorre que foram primeiramente arquivados, desarquivados e, por
fim, apensados aos já referidos projetos de leis. A seguir, tais projetos serão brevemente
descritos.
Por fim, o Projeto de Lei 1.135/2003, do Deputado Dr. Pinotti, dispõe sobre a
reprodução humana assistida, definindo normas para realização de inseminação artificial,
fertilização in vitro, barriga de aluguel (gestação de substituição ou doação temporária do
útero) e criopreservação de gametas e pré–embriões.61
Entretanto, o projeto de lei em fase mais adiantada para a sua aprovação - com
aceitação entre congressistas e determinados grupos integrantes de diferentes lobbies -
restringe o acesso à RA somente aos cônjuges ou ao homem e à mulher em união estável
(substitutivo do PL n. 90/99, Senador Roberto Requião).62
18/05/2001 – Apensado ao PL 2.855/1997.
31/01/2003 – Arquivamento nos termos do artigo 105 do Regimento Interno.
27/03/2003 - Desarquivamento em razão do desarquivamento do PL 2.855/1997.
59
Tramitação: 21/05/2002 - Apresentação do projeto de lei pelo Deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS).
19/06/2002 – Designação do Deputado Jorge Alberto (PMDB/SE) como relator.
31/01/2003 – Arquivamento nos termos do Artigo 105 do Regimento Interno.
08/04/2003 – Desarquivamento nos termos do Artigo 105 do Regimento Interno.
22/05/2003 – Rejeição pelo parecer do Deputado-relator Jorge Alberto.
60
Tramitação: 19/02/2003 - Apresentação do projeto de lei pelo Deputado Roberto Pessoa (PFL-CE).
20/03/2003 – Designação da Deputada Laura Carneiro como relatora.
02/07/2003 – Apensamento ao PL 1.184/2003 (número de origem PL 90/99).
61
Tramitação: 28/05/2003 - Apresentação do Projeto de Lei pelo Deputado Dr. Pinotti (PMDB-SP).
05/06/2003 – Apensado ao PL 2855/1997.
62
Tramitação: 19/03/99 - Relator Senador Roberto Requião (PMDB/PR).
11/11/99 - Parecer favorável do relator Senador Roberto Requião (PMDB/PR) na forma de substitutivo. Pronto
para ordem do dia da comissão.
05/04/2000 - Em reunião extraordinária, o relator vota parcialmente favorável à incorporação, em seu relatório,
da emenda 2, de autoria do Senador Luiz Estevão, com o acréscimo da expressão “respeitada a vontade da
mulher receptora, a cada ciclo reprodutivo”. Rejeita as emendas 3 e 4, de autoria do Senador Roberto Freire. A
presidência adia a discussão da matéria em virtude da falta de quorum. Anexadas as seguintes emendas: de
autoria do Senador Luiz Estevão, 2 (fls. 25 e 26); de autoria do Senador Roberto Freire; 3, 4 e 5 (fls. 27, 28 e 29,
respectivamente);de autoria do Senador José Eduardo Dutra; 6, 7, 8, 9 e 10 (fls. 30, 31, 32, 33, 34 e 35,
respectivamente). Ao gabinete do Senador Roberto Requião para emitir parecer a respeito das demais emendas e
conseqüente reformulação do relatório em razão das 9 emendas apresentas até o presente momento.
11/05/2000 - Ao senhor Senador Tião Viana (PT/AC) para relatar a matéria.
13/11/2000 - Requerimentos n. 23 e 28/00 - CAS de autoria do Senador Tião Viana, aprovados em 07 e
27/06/2000 respectivamente, solicitando audiência pública com a finalidade de instruir a matéria.
33
O projeto original, de autoria do Senador Lúcio Alcântara, era mais amplo, no sentido
de uma maior autonomia em relação ao exercício dos direitos reprodutivos através da RA.
31/10/2001 - Reunida a comissão, o projeto é retirado de pauta para reexame a pedido do relator. A matéria
retorna ao gabinete do Senador Tião Viana.
12/12/2001 - Reunida a comissão, são concedidas vistas ao Senador Jonas Pinheiro e a Senadora Marina Silva.
15/05/2002 - Os Senadores Lúcio Alcântara, Roberto Requião, Geraldo Althoff, Benício Sampaio e Romero
Jucá apresentam emendas ao substitutivo. É a matéria encaminhada ao Senador Tião Viana para exame das
emendas.
25/03/2003 - Aguardando leitura de pareceres. Anexada legislação citada nos pareceres da CCJ e CAS, às fls.
218 - 223. Juntou-se, às fls. n 224 - 275, notas taquigráficas das audiências públicas realizadas pela Comissão de
Assuntos Sociais, em 8 e 15/5/2001, para instrução da matéria.
19/05/2003 – Juntou-se, às fls. 279-296, o Ofício n. 104/2003 GSTV, de 28 de março de 2003, através do qual o
Senador Tião Viana externa ao Presidente do Senado Federal sua posição contrária a ofício do Presidente da
Ordem dos Advogados do Brasil que solicita o sobrestamento da matéria.
19/05/2003 – Juntou-se, às fls. 297-300, o Ofício n. 664/2003, de 19 de maio de 2003, através do qual o Primeiro
Vice-Presidente do Senado Federal, no exercício da Presidência, comunica ao Presidente da Ordem dos
Advogados do Brasil que a presente matéria foi aprovada terminativamente pelas comissões técnicas da Casa e
foi encaminhada cópia do Ofício n. 104/2003 GSTV, do Senador Tião Viana.
02/07/2003 – Apensados os PL 2.855/1997 e PL 120/2003.
13/08/2003 - Mudança do regime de tramitação da matéria para Regime de Prioridade.
Fonte: www.cfemea.org.br. Atualizado em 25/01/2004.
34
Contudo, sua versão atual está sob a forma de um substitutivo aprovado na Comissão de
Constituição e Justiça do Senado que implica alguns retrocessos quanto à elegibilidade para o
acesso às técnicas de RA, negando, expressamente, às mulheres solteiras a possibilidade de
seu uso. Proíbe, ainda, o congelamento de pré-embriões e criminaliza a redução embrionária.
O substitutivo também permite a seleção terapêutica e inova ao propor que o filho conheça a
identidade do pai após a maioridade. Estabelece que o doador deve ser ‘pai’ de apenas um
beneficiário. Permite, ainda, a doação temporária do útero entre mulheres com parentesco até
o segundo grau.
63
DINIZ, D. Tecnologias reprodutivas, ética e gênero: o debate legislativo brasileiro. Encontro Anual da
ANPOCS, Petrópolis, 2000, mimeo, p. 19.
35
64
Além da família, o autor destaca a constituição política da sociedade, os acordos econômicos e sociais, a
proteção legal da liberdade de pensamento e consciência, os mercados competitivos e a propriedade particular.
Vale destacar uma importante alteração discursiva verificada no texto de Rawls. Em Uma teoria da justiça,
Rawls adjetiva a família com a expressão monogâmica (Op. cit., p. 08). Em suas outras obras, essa locução não
mais é encontrada. Essa alteração discursiva se justifica pela ‘mudança de paradigma’ de que nos fala o
professor Nythamar F. de Oliveira. Ocorre que monogamia é uma categoria de doutrinas abrangentes -
notadamente religiosas -, portanto não faz parte da idéia de família como instituição social inserida em uma
concepção política de justiça. Em Uma teoria da justiça, Rawls apresenta uma doutrina moral e abrangente – que
se aplica a todos os sujeitos e a todas as formas de vida. Entretanto, em O liberalismos político, obra destinada a
revisar e explicitar alguns pontos da reflexão anterior, o autor modifica seu paradigma. A partir de então ele não
fala mais em uma doutrina moral, mas em uma concepção política de justiça. Nas palavras de Rawls: “[...] em
meu resumo dos objetivos de Teoria, a tradição do contrato social aparece como parte da filosofia moral e não se
faz distinção alguma entre filosofia moral e política. Em Teoria, uma doutrina moral da justiça de alcance geral
não se distingue de uma concepção estritamente política de justiça. [...] A ambigüidade de Teoria está eliminada
agora, e a justiça como equidade é apresentada, desde o começo, como uma concepção política de justiça”.
(RAWLS, John. O liberalismo político. Op. Cit., p. 24-5).
65
Um princípio é considerado justo quando selecionado em condições imparciais e através de um procedimento
imparcial. Por ‘estrutura básica’ se entende as principais instituições políticas e a maneira pela qual se combinam
em sistema unificado de cooperação social de uma geração para a outra. Portanto, o foco inicial de uma
concepção política de justiça é a estrutura das instituições básicas e os princípios, critérios e preceitos que se
aplicam a ela, bem como a forma pela qual essas normas devem estar expressas no caráter e nas atitudes dos
membros da sociedade que realizam seus ideais. (RAWLS, John. O liberalismo político. Op. Cit., p. 53-4).
66
Em Rawls, as leis morais tomam dimensão política, na medida em que extrapolam as concepções individuais,
pois fundam-se em juízos racionais.
67
A razão pública descreve o que é possível e pode vir a ser, mesmo que isso nunca ocorra, e não é menos
fundamental por isso. (RAWLS, John. O Liberalismo político. Op. Cit., p. 262).
36
Ela deve, entretanto, conformar-se aos princípios de justiça, os quais gozam de legitimidade
no senso comum pactuado na posição original.68
Observa-se, neste ponto, que o conjunto das idéias rawlsianas se articulam em uma
concepção do tipo ideal de indivíduo e cidadão. Em outras palavras, ao expressar uma
característica específica dos cidadãos de sociedades bem-ordenadas, qual seja, a capacidade
de engendrar e reformar o estado das coisas, Rawls infere que estes possuem um senso de
discernimento que os faz reagir e reivindicar alterações quando as estruturas e instituições já
não viabilizam ou oferecem suporte para o desenvolvimento e consecução dos objetivos
racionais e razoáveis dos sujeitos.
68
A idéia da posição original é estabelecer um processo eqüitativo, com vistas à escolha dos princípios de
justiça. Para tanto, faz-se necessário que as partes situem-se atrás de um ‘véu da ignorância’, pois somente assim
haveria condições para a universalização dos princípios eleitos. Ver: RAWLS, J. Uma teoria da justiça. Op. Cit.,
p. 146-153. Para uma crítica da posição original de Rawls, ver: DWORKIN, Ronald. Los Derechos en Serio.
Barcelona: Ariel, 1999, p. 234-275.
37
Em Rawls temos que a definição de bem trata-se nas fronteiras de uma diretriz geral
para a construção de expressões sucedâneas que possam ser utilizadas para dizer o que, após
uma reflexão, queremos dizer. Não se trata de definição do bem no sentido tradicional, como
um conceito desenvolvido pela racionalidade analítica. Em outras palavras, o bem não é
passível de definição, ao contrário, informa sobre os procedimentos que um indivíduo deve
racionalizar para uma avaliação/alcance do seu bem.69
Eis aqui outro limite observável à atividade legislativa no que toca especificamente à
normatização dos procedimentos em RA. O legislador, ao circunscrever a elegibilidade para o
acesso às tecnologias conceptivas, pressupõe o bem de uns e nega a faculdade de construção
por outros. Para aqueles que se enquadram nos limites apostos pelas propostas normativas, o
bem – neste caso, a concretização de um projeto parental – é promovido e assegurado. Para
quaisquer outros, a inadequação ao paradigma não confere legitimidade para a concretização
daquele mesmo bem.
Rawls constrói sua teoria da justiça a partir da idéia de que a definição do que é o bem
se dá individualmente. O sujeito, através da racionalidade deliberativa, irá estabelecer o seu
plano racional de vida e, assim, preencher o conteúdo daquilo que lhe é bom.
69
RAWLS, J. Uma teoria da justiça, p. 444.
70
Ibidem, p. 446.
38
Mas como podemos afirmar que determinado plano é racional? Um plano será racional
se for consistente com os princípios da escolha racional aplicados a todas as características
relevantes da situação. Além disso, será racional quando se constituir no plano que seria
escolhido pela pessoa com racionalidade deliberativa plena - plena consciência dos fatos
relevantes e após cuidadosa consideração das conseqüências.71
Dessa forma, podemos dizer que um plano racional de vida possui três características
básicas: a) deve estar de acordo com os princípios da escolha racional; b) deve ser elaborado
através da racionalidade delibertativa – consciência dos fatos e das conseqüências; c) os
interesses e objetivos serão racionais se forem previstos pelo plano que foi escolhido pelo
sujeito como sendo racional.
Cada indivíduo pode estabelecer seu plano racional de vida, desde que esteja em
acordo com os princípios da escolha racional. Um sujeito poderá ser criticado quando ele
violar os princípios da escolha racional ou, então, quando não se tratar do plano que essa
pessoa escolheria se analisasse com cuidado as suas perspectivas à luz de um completo
conhecimento da própria situação.72
Um plano racional de vida estabelece o ponto de vista básico a partir do qual todos os
juízos de valor relacionados a uma pessoa em particular são feitos e, por fim, ganham
consistência.
Uma pessoa é feliz, portanto, quando está a caminho da execução bem sucedida de um
plano racional de vida, traçado em condições mais ou menos favoráveis, e quando está
razoavelmente confiante de que seu plano pode ser realizado. Mas a felicidade, segundo
Rawls, não está para todos da mesma forma: como os planos variam de pessoa para outra,
indivíduos diferentes encontram sua felicidade fazendo coisas diferentes.
71
Rawls conceitua o termo racionalidade deliberativa a partir de Sidwick. “O plano racional para uma pessoa é
aquele que ela escolheria com racionalidade deliberativa. É o plano que seria escolhido como o resultado de uma
reflexão cuidadosa, na qual o agente revisaria, à luz de todos os fatos relevantes, como seria realizar esses planos
e, portanto, adquiriria uma certeza sobre o curso de ação que realizaria de forma mais efetiva os seus desejos
mais fundamentais” (Ibidem, p. 461).
72
Ibidem, p. 452.
39
Considerando que a felicidade não se dá para todos da mesma forma e que nossa
sociedade encoraja a busca de mecanismos de realização pessoal, desde que esses não
agridam a dignidade humana individual ou intersubjetiva, é possível deduzirmos que as
restrições ao acesso de mulheres solteiras às tecnologias reprodutivas operam no sentido de
negá-lhes a possibilidade de serem felizes, pois a filiação para elas constitui-se em um dos
objetivos de seus projetos de vida.
Assim sendo, vê-se que um plano racional de vida pode ser comparado com os efeitos
profundos que a escolha de uma concepção da justiça tem sobre os objetivos e interesses
encorajados pela estrutura básica da sociedade.74
Rawls afirma que existe um princípio formal que fornece apenas uma resposta
genérica a questão de sabermos qual seria o melhor plano. É o princípio segundo o qual
devemos adotar o plano que maximiza o saldo líquido de satisfação esperada.75
O bem como racionalidade não atribui nenhum valor especial ao processo decisório.
Pressupõe-se que a reflexão cuidadosa irá variar de um indivíduo para outro.
O nosso bem, assim, é determinado pelo plano racional de vida que seria possível
adotar se o futuro fosse adequadamente previsto e imaginado. O critério do bem é hipotético,
de uma maneira que lembra o critério da justiça. Quando surge a dúvida sobre se algo está de
acordo com o nosso bem, a resposta depende do quanto essa ação irá se adaptar ao plano
75
Ibidem, p. 460.
76
Ibidem, p. 462.
41
escolhido. Portanto, a idéia de bem pode ser adaptada, através de um juízo deliberativo, de
acordo com a possibilidade de incrementar ou desorganizar o plano racional eleito.
Nesse sentido, cada ação ou escolha deve passar pela análise dos critérios de
racionalidade deliberativa, uma vez que o conceito de bem não serve como critério; ele é
hipotético, contingencial. O que é perene é o procedimento de análise das circunstâncias para
saber se se enquadra no plano racional de vida ou não.