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A Festa

O espetáculo multicor . Personagens decididos,


monótonos ou previsíveis. Só ele fatídico. Penetrou no
recinto abafado. Sua roupa a berrar discrepância no azul
do brim corajoso contra a formalidade dos ternos bem
passados ou os cetins a tornear belas criaturas.

Ele, sem jeito em meio ao mar de sorrisos


forçados.. Cumprimentou um, dois, três com a cabeça; a
Quarta, a única a lhe pegar na mão, com as duas mãos;
gostava dele. Era a dona da festa.

“Por que tinha vindo”-pensava . O som em


profusão a lhe alfinetar os ouvidos; algumas gargalhadas
e meneios de dança.

“Só você mesmo ? Onde já se viu ?”

Passou a mão nos cabelos desgrenhados; sentiu


vergonha da roupa.
“Onde já se viu alguém mais autêntico?- gostava
dele, sim, gostava, senão não diria tal coisa. Achava-se
desleixado, ridículo.

“Adorei seu aparte.Aquele almofadinha


merecia...”
“Mas você é tanto quanto ele. Há, há!”
Ela fechou o rosto, mas depois sorriu:
“Há, há ! Peraí... vou falar com a minha amiga
ali...”
Todos iguais...todos iguais... e a conversa não
entabulava.
‘Lindo o seu conjunto jeans, hein? Sabe, as
minhas ações na bolsa...”
“Comprei um conversível novinho.”
“Redecorei todo o living e a sala e os quartos
com banheira de hidromassagem...”

Longe, longe, muito longe queria ficar , como


pedia um quadro de navio, pendendo num canto da
sala...
Seus olhos avistaram-na novamente. Repararam
nela. Deu uma volta na sala e veio em sua direção.

“Por que dá festas?”


“Ora, porque quero ter gente legal perto de
mim...”
“Gente legal, ora, ora”
“Seu olhar inquiridor é patético.”
“Tudo aqui é patético...”

Olhou fundo nos seus olhos :

“Mande essa gente às favas e...”


“E o quê? O quê? Vamos, desembuche, não seja
medroso!’
‘Venha ...comigo!”

Ela se assustou, se recompôs e voltou aos outros


convidados.
Decepcionara-se. O que fazia ali, em meio a
tantos diferentes de si? Não ligavam para ele, não
conversavam. O desprezavam. Ele os desprezava
também.
Dirigiu-se à porta, a passos lentos, cabisbaixo.
Nem o notavam. Mas à porta, eis que ela surge, linda, os
cabelos agora soltos a caírem-lhe nos ombros.

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“Vamos? Se você vai eu vou também!”
Ë ...os seus convidados ?”-disse em tom de
mofa..
“Não quero convidar ninguém...”
E saíram pela rua adiante, livres , desimpedidos,
a brisa a beijar-lhes os rostos; eram dois, lado a lado,
agora só um, enlaçados, para tudo que lhes aprazem

O Homem ao avesso

Eurípedes sempre sentira algo diverso em si; ele tinha nascido ao avesso. Não que o
virassem por engano ao nascer ou de propósito; ele era assim e pronto.

Quando pequeno ainda brincavam com ele ; criança não faz muita diferença, só uns mais
afrescalhados é que vinham com fricotes, mas sabiam que ele estava no avesso; ele
também.

Na escola, enquanto os outros saltitavam para lá e para cá, ele ficava só, encostado à
coluna, a mirar os pássaros a brincar no telhado. Às vezes passava horas embevecido, a
olhar as formigas fazendo caminhos no quintal, as poças d´água e as marcas que os pés
faziam no barro.

Seus pais se desesperavam: não sabiam o que fazer:

“O que é que você tem? Misture-se com os outros meninos, meu filho.”
“Maria, esse moleque merece é uns safanões, isso sim; você o mima demais...”

O doutor olhava-o pela lente grossa; o olho aumentado. Concentrou-se, meditou, olhou,
revirou os olhos, resmungou e depois concluiu:

“Ele..foi feito no avesso!”


“Como?”
“Ao avesso!Não adianta tentar desvirar que volta ao avesso.”

“E não tem cura, doutor?”

“Cura? A Natureza o fez assim. Por que contrariá-la?-assumia ares de filósofo o


psicanalista- se todos gostassem do azul o que seria do amarelo?”

“O que o senhor quer dizer?”

“Maria, ele quer dizer é que esse menino tem frescuras e que não quer fazer nada de
produtivo; no meu tempo isso era caso de cinta!”

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Tentaram desvirá-lo. Tentou parecer direito como todo mundo; se esforçou, se esfalfou, é
bem verdade. Forçou a risada, tentou sambar; já era um rapazola, ouvia a conversa dos
outros e tentava imitá-las, mas todos percebiam que tinha alguma coisa errada. Entre a cinta
do pai e o papel ridículo...preferia a cinta.

Continuou no avesso. O que falava não entendiam e nem mais ligavam. Tratavam-no como
uma estátua, coluna solitária nas festas, após o breve cumprimento forçado. Sempre que
conversavam com ele ou era por interesse (era capaz de recitar de A a Z a Enciclopédia
Britânica em três línguas diferentes) ou por troça, como amiúde acontecia. Tanto puxaram e
deram petelecos em suas orelhas que elas até tinham crescido. Eis o que faz a humanidade,
personificada em fedelhos na puberdade, contra o que considera diverso de si: petelecos e
setas de papel.Quando adulta, a humanidade refina suas atitudes: ironias venenosas e
desprezo.

Mas, com tudo isso, nele, que tudo era em avesso, começa a se forjar o lado direito; no
começo ele se rebela; já tinha se acostumado a ser no avesso e isso era uma marca que o
distinguia. Tornara-se zombador e irônico. Todos o detestavam , mas reconheciam que
tinha espírito.

Agora não, sente que começa a formar seu lado direito e esse começa a se insinuar. A
primeira vez foi quando forçou um sorriso para conseguir um favor, e deu certo. E
começaram a se repetir, como cacoete: Um aperto de mão aqui, uma gargalhada ali; uma
posição a mais conquistada.

Mas o lado avesso se insinua novamente; tem uma recaída. Os passarinhos vêm comer em
sua mão; os gatos lambem-lhe o rosto. Sente um ódio dos rapapés que fizera.

Mas logo recoloca o sorriso de borracha no rosto; é mais fácil, mais cômodo. Apruma-se,
faz a barba, enforca o pescoço e sai, decidido, mais direito do que nunca, mais quadrado e
reto e monótono; a vitória completa do conformismo sobre si.

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O Homem que veio de Marte

Eu não sou desse mundo. Sim, vocês vão até estranhar, achar que estou delirando, mas não sou
desse mundo. Senti isso na pele desde que nasci. Era uma criança arredia, ensimesmada;
sentava-me por horas no tamborete, a olhar o nada...

“Ele é estranho, esquisito...há,há, que tonto!...

Sim , mas esses seres estranhos, de outro planeta, também têm sentimentos, embora não
pareça. Ah, esses seres da Terra, todos tão iguais, com as idéias dentro da moda até o último fio
de cabelo; nem um deslize, por mínimo que seja, é perdoado. Ah, humanidade cruel; e se julga
compassiva e filantrópica... Doce encenação!

Nós, homens de Marte, somos voluntariosos e temos nossos caprichos: por que isso tem de ser
assim e não assado ? E... se gosto mais do lilás do que do azul é só uma discussão de gosto e de
sabores e... nada mais do que isso. Os marcianos são tão mais tolerantes; acham-nos brutos, de
mau gosto; não! Nós olhamos o ser como um todo e não apenas banais aparências !

E como vim parar nesse mundo cruel? É o que me pergunto com meus botões...Ah, nada da
nossa concentração marciana, que quer apreciar cores e sabores, as texturas, o colorido...Eles
querem tudo correndo e não apreciam nada.

Chamam alguém de amigo quando encontram um mártir que está disposto a ouvir lamúrias e
mais lamúrias de sua desgraçada vida; queixam-se, mas estão todos cada vez mais gordos e
felizes com suas vidinhas. Um marciano jamais se queixará da vida; ainda que sofra as mais
cruéis dores, sempre olhará nos olhos e não precisa de amigos, pois todos já o são naturalmente
e por toda a vida , não de ocasião, como entre os humanos.

Mas e eu, condenado a viver entre esses seres tão diferentes de mim? Sempre fui um pária, um
deslocado, um destrambelhado. Ah, a humanidade...não perdoa um milímetro do que destoa,
embora seja pródiga em defeitos gritantes... mas, estou eu a me queixar ? Que nada!

Constato um fato: a criança é cruel, o jovem é mais cruel e o adulto, nem se fala...só que o
adulto tem um leve e mal feito verniz de cordialidade, sem o qual voltaríamos às cavernas, para
o que não falta muito. Com efeito, talvez estivesse melhor vivendo entre os primatas. Qualquer
marciano é totalmente incapaz desses atos obscenos.

Mas esses marcianos têm uma coisa: sentimento. E quando os amiguinhos torciam o nariz e
brincavam de má vontade ? E quando não me chamavam para suas festas ? E há pior
sentimento do que se sentir um ser desprezado, que não se enquadra nas suas ridículas normas
e convenções ?

“Ele é um estranho”- e me rotulam; é fácil colocar rótulos; isso é bom, isso serve; aquilo não
serve; classificar as coisas por seu juízo tosco e imperfeito. Assim se regozijam e se acham
acima do bem
e do mal. Mas o marciano é sensível, profundamente sensível; seu gosto é refinado e um ganido
ou uma voz estridente perturba seus sentidos.

Em poucas palavras: nós, marcianos, sabemos o que queremos; vivemos, não por viver, mas
com um propósito; repartir, para nós, é natural e não o acumular.

Ah, e esse vernizinho moral que todo ser humano porta! Todo o mundo mete a mão, mas são
excelentes atores, e como representam bem; fazem-se de castos e falsos moralistas. Um
marciano não entende isso; para ele pão é pão, queijo é queijo; só gostamos da representação
no teatro.

E que necessidade que o homem tem de inflar-se, jactanciosamente, querendo iludir os outros
sobre sua cegueira. He seres inflados, que se gabam, se vangloriam, se entumescem para

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mostrarem seus galões a não sei quem...E os que se disfarçam, querendo ridiculamente parecer
mais novos ou mais velhos ou mais magros ou mais cheios ? Nunca estão contentes com nada,
nada está bom; comem, comem e depois fazem regimes e... os comerciantes faturam...

Ah, tão diferentes nós, marcianos; somos feios, bonitos ? Para vocês podemos ser feios, mas
para nós...nem reparamos nisso; vestimos a roupa mais à mão; não olhamos aparências, mas o
coração enorme que pulsa em nosso peito...

Ah, tristeza de viver nesse mundo tão diverso de mim, cheio de humanos que mal se olham e
julgam conhecer sua alma. Olho para o céu, vejo Marte brilhando, com sua cor vermelha no
firmamento...Lá é meu lar e lá estão meus pares. Não somos melhores ou piores que os
humanos; somos apenas nós.

Não, não sou desse mundo, mas quem disse que quero ser ?

O PRÏNCIPE DESENCANTADO

Era um rapaz humilde, humílimo, que vivia de seu nobre ofício: consertar solas de sapatos,
aprendido com seu pai, há cinqüenta anos na lida com meia-solas e consertos.
Sua vida modesta consistia em ir de casa para a loja e vice-versa; às vezes , com uns trocados contados ia à taverna mais próxima da
vila...

Mas, eis que um dia a coisa muda de figura: vê passar o cortejo da nobreza e, entre eles a mais bela e mais doce das princesas, em seu
vestido rendado, com seu porte nobre e comedido; o sorriso largo e diáfano. Imediatamente seu coração tornou-se seu; dali em diante
faria tudo no mundo para tê-la em seus braços. Mas como ? Ele, um humilde borra-botas, um Zé-ninguém, como a conquistaria; como
ousaria dirigir-lhe a palavra ?

Lembrou-se do sábio-cura da aldeia, que vivia nuns ermos afastados da vila ( naquele tempo podiam ter casa própria). Chegou-se à
residência, bateu à porta; ele era de poucos amigos; abre-se a fresta; sorte que estava de bom-humor e franqueou-lhe a entrada.
E o jovem abriu seu coração e o fez com emoção e sinceridade. O sábio coçou a barba, meditou e disse: “E como tu, um humilde artesão,
julgas que conquistarás o coração de uma nobre de alta linhagem ? “

“Ah, o meu coração é dela, desde o instante que a vi; nada mais faço senão pensar no seu rosto, noite e dia...”

E foi tão convincente em sua declaração que o velho sábio ficou estupefato e...comovido. Por incrível que pareça resolveu ajudá-lo na
empreitada (coisas daquele tempo...). Abriu sua arca e presenteou-o com cem dobrões (não tinha filhos e naquele tempo os sábios eram
bem pagos). Mais que isso; deu-lhe lições e bons modos. E o fez inteligente; o fez culto, espirituoso. Além disso, deu-lhe roupas dignas e
o título de Barão das Astúrias.

Mas o sábio fez-lhe um alerta: “Dei-lhe os meios com os quais conseguirá seu intento; pensa que será feliz assim ? E o jovem assentiu
com a cabeça. Mas o sábio, em sua imensa sabedoria, advertiu: “Um dia retornará a mim e então lhe direi uma verdade...”

O jovem não ligou para isso e, cheio de si e envaidecido, dirigiu-se ao palácio, onde foi recebido imediatamente. E foi tão polido, tão
gentil-homem, tão comovente em sua declaração de amor, que o rei, que até então torcera o nariz, consentiu a união ( o conselheiro já lhe
informara, ao pé do ouvido, que tinha cem peças de ouro depositadas no banco). A princesa, então, estava vivamente apaixonada; só de
vê-lo descer do puro-sangue branco.

Casaram-se e, foram felizes por algumas semanas. A princesa, raramente a via; vivia às voltas com cabeleireiros, costureiras, aias e amas
para manter seu porte principesco. Os nobres, queriam seu dinheiro, pois as finanças do reino não eram lá essas coisas. Ele vivia de
reunião em reunião, a reverenciar pessoas estúpidas, que mal conhecia; só via a princesa em festas e em monótonos saraus...

Saudoso de seus tempos de meia-sola, retorna atônito à casa do sábio, nos ermos da cidade...
“Ah, como eu esperava “, assentiu o ancião, contente em ver confirmada a sua sabedoria.
“Aqui estão os seus dobrões”

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Ansioso, o ancião guardou-os a chave na sua velha arca. ( os sábios não são tão desapegados assim)

“Mas, não te julgavas infeliz; não querias uma vida de rei, regalias...?”

“Ah, mas eu sou o mais infeliz dos homens; julgava não o ser, mas eu queria de volta minha oficina e meus solados...”

“Ah, sim, a inconstância humana! (qual o bem mais precioso para o sábio do que ver confirmada a sua sabedoria ?). Julgamos ver
felicidade sempre na casa do vizinho, mas, na maioria das vezes, está do nosso lado...E a princesa ? Não jurou-lhe amor eterno ?”

“Ah, essa aí; retire-lhe os laçarotes, as perucas, as armações e, nada por dentro. Além de tudo...frígida!”

“Há,há”- riu-se abundantemente o sábio- mas tenho aqui algo a consolar-te:”

E entrou a sua cozinheira; não era linda, mas bem apanhada; estava suja de farinha, com os cabelos mal presos e desgrenhados; tinha o
olhar insinuante. Dali a uns instantes estavam os dois a meter os dedos na panela de chocolate. Era boa cozinheira. Mais alguns minutos e
estavam rolando no gramado ali em frente. A princesa ? Encontrou outro fútil, jactancioso e ganancioso como ela.
O sábio olhava aquilo e, satisfeito com sua sapiência, meditou, coçando a barba e a calva :

“Existe algo melhor na vida do que lamber os beiços e rolar na grama ? “

E voltou para suas meditações, satisfeito em sabedoria e parco em amores.

Aula de Informática

Genebaldo passava distraído pelo Largo do


Paiçandu, quando viu a tabuleta, meio torta e
meio apagada: “Escola Urubupungá; dá-se -
aula de tudo.”
Impressionado com a correção gramatical e com
o alto nível do estabelecimento de ensino,
adentrou no recinto, que era um velho prédio do
centro. O porteiro, com o pé pendendo sobre a
mesa, tirava seu cochilo do almoço, e as moscas
voavam. Acordou, meio estremunhado, e de má
vontade, falou :

--A escola é lá no fundo; sobe a escadinha,


desce pra baixo, passa na portinha baixa, desce
de novo; é lá, no porão!
O indivíduo seguiu passo a passo o que o
porteiro disse e, chegou ao “estabelecimento” :
--Pois não?- disse a atendente, que mal tirou os
olhos das unhas, que lixava.
--Eu vim saber sobre a escola; que curso vocês
dão?
--Aqui na escola tem de tudo: cabeleireiro,
manicure, curso de corte e costura, sapateado,
dança da garrafa, xadrez, culinária...
--Vocês têm curso de datilografia?

Nesse momento, atravessava o


“estabelecimento” um homem de pijama, com
um jornal nas mãos.
--Datilografia ? Meu amigo, isso não existe mais!
– quis se fazer de entendida- aqui nós só
trabalhamos com “computer”- e apontou uma
geringonça do “tempo do computador a lenha”
--Ah, vocês têm curso de computação...

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--É, mas vai preenchendo essa fichinha!São dez
reais para preencher a ficha!
--Pô!Mas que ficha cara! Posso ir ao banheiro?
--Pode, é lá no fundo, atrás da pilha de livros;
não pisa nos gatos!
E, nosso herói, depois de desviar dos livros e
quase pisar numa ninhada de gatos que
miavam, chegou ao “escritório do Vanderlei
Cardoso”. Lá dentro, o homem que passou com
o jornal, estava sentado no trono, com a porta
aberta.

--Zé, fecha a porta!Esqueci!

O homem olhou de soslaio e bateu a porta.


No dia seguinte, a primeira lição de informática,
e, o professor era o mesmo homem do banheiro,
só que um pouco mais bem vestido que na
véspera, mas de chinelos.
--Nós não nos conhecemos de algum lugar?-
disse, cumprimentando Genebaldo.
Só houve um probleminha: o computador estava
mais gasto que pneu de Fusca 66 e não pegava
nem no tranco. O jeito foi utilizar a moderna
tecnologia brasileira e pimba- uma pancada bem
no meio da “ïnformática” do computador. E não
é que o bicho “pegou”, mostrando na tela
nublada algo da pré-história da computação.
De repente, chega uma mulher:

--Com licença, dá pra ir mais pra lá que eu


tenho que almoçar?

E no meio da aula de informática, a mulher


“traçava” sua marmita :

--Quer um pedacinho de cuscuz?


--Não, obrigado!

Depois da “aula “ de informática, Gene voltou ao


seu trabalho e só voltou à escola na semana
seguinte e , assustado, sentiu um forte cheiro de
óleo queimado; a “secretária” fritava algumas
coxinhas. Indagada sobre o ocorrido por
Genebaldo, respondeu:

--Escola? Ah, a escola; fechou; agora aqui é


comida por quilo!

O Fuscão paraguaio

Givanildo sempre sonhou em ter o seu carango, mas as despesas com a sua volumosa prole
sempre o impediram de passar da condição de humilde pedestre à dos privilegiados
proprietários de automóvel ou de 'alguma coisa com rodas que anda”, o que estaria mais de
acordo com o nosso felizardo. Economizou o dinheirinho suado em seus 'bicos' na Praça da
República, não fez a “fezinha” e deixou de comprar aqueles cds de 1 Real para juntar uns
cobres. E toca lá pra agência.
O dono do 'estabelecimento' estava na porta, apoiado na parede, olhando o céu, como se

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pensasse “ vai chover hoje ou vai aparecer algum trouxa nessa piroska???”

--O senhor é o dono daqui?

Pronto, apareceu; é esse!--Pois não, amigo, em que posso servi-lo? ( Quando eles vêm com
esse papo, lá vem bomba!Bum!)

--Eu tava afim de um carrinho, não muito novo, né, cê sabe, grana curta e nem muito velho

O vendedor pensou com seus poucos botões da camisa: “ Cada Zé- Mané que me aparece
por aqui; esse não tem um gato pra puxar pelo rabo ! “-miauurr! “Droga, pisei no rabo do
Mimi!”--Quanto cê; tem?

--Tenho umas moedas; conta aí, faz favor!

O vendedor teve vontade de mandá-lo pra Pindamongambaga da Serra, mas aí acendeu uma
lampadinha; lembrou daquele Fusca; ano 53, todo “baleado”, olhou pro canto da loja e , eis
que vê uma coisa coberta de ferrugem e toda desconjuntada, uma roda meio torta, um farol
rachado,cor- de- burro quando foge, o burro , no caso era o nosso dito cujo,o Givanildo.

--Tenho um negócio quente pro cê!

--Negócio bom, né? Tô precisando de um carango .Cê sabe, dar uma voltinha com a patroa
e as crianças, ir a mercado, festa ; tudo a pé não dá!

--Mas é claro, meu amigo-disse, dando uns tapinhas nas costas daquele candidato a
motorista; teto ele já tinha, dando um jeito, fazendo um suado “puxadinho” no terreno da
sogra; o duro era ter que agüentar seus impropérios; agora estava melhorando de vida e de
estatus- esse aqui é dos bons, só tá meio largadão, mas o dono não cuidava muito; é só dar
umas ‘garibadas”

Givanildo olhou incrédulo a montanha de sucata que queria lhe empurrar – é isso aí?

Contrafeito, o vendedor já via o seu fim-de-semana em Cidade Ocian ir pras


cucuias-É!!Tá meio baleado, mas chegou ontem de Assuncion; é importado; montado lá
mesmo com peças de sucata daqui!

-Mas é isso que eu queria!-Ufa!- Suspirou Anacreonte, o nosso vendedor com nome
de filme épico-Tá feito; vou levar. Dá pra testar?

Depois de uns dez minutos, lá vem o vendedor com a chave do carango; Givanildo
exultava; sairia enfim de sua humilde condição de pedestre para um classe mais elevada-
daqueles que , mesmo precariamente, podem se mover de uma forma mais suave sobre o
asfalto, o que não era pouco para ele, sempre tão relegado a um segundo plano.Pagaria a
"máquina" em prestações a perder de vista financiadas pela Urubupungá Financeira S/A.
Eis que o motor ruge, tosse, apaga e liga de novo.

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-Deve ser a bateria; vou te dar outra de brinde, recondicionada.

E eis que sai nosso herói, agora motorizado, ou mais ou menos isso; acena para um
conhecido, morrendo de inveja (será ou teria rido?) Não importa, agora rolava pelas ruas;
rolava mesmo, pois um dos pneus soltou; logo depois os amortecedores batiam na lataria
velha e teve que empurrá-lo, com a ajuda dos amigos, umas três vezes até chegar ao
casebre. A mulher e os inúmeros filhos pularam de alegria e o auto foi colocado na
garagem , onde ficou parado , enferrujando ao relento, feito um troféu pela sua nova
condição de "pedestre motorizado" .
Ângelo Ranieri

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