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Amor e uma autocaravana

por Clara Silva, Publicado em 20 de Janeiro de 2010

http://www.ionline.pt/conteudo/42715-amor-e-uma-autocaravana

A vida corre-lhes sobre rodas. Foram dormir para os carros por


opção e não por necessidade. Não faltam plasmas, parabólicas e
periquitos

João Lourenço, 35 anos, equipou a sua carrinha de raiz. A evolução pode ser vista
em www.estudionomada.com

Carlos e Isilda Lopes têm uma vista diferente todos os dias. Às vezes preferem acordar e
espreguiçar-se em frente ao Mediterrâneo. Outras gostam de estar perto da civilização e
estacionam a autocaravana perto do mais concorrido centro comercial de Lisboa, o
Colombo. Já Teófilo Ramos pode deixar o despertador tocar até dez minutos antes das
aulas começarem. A sua carrinha está estacionada quase em frente à escola e, ao contrário
dos colegas, não tem de gastar dinheiro todos os meses com o aluguer de uma casa.

Inês Sousa orgulhava-se de ter a melhor vista de Lisboa: estacionada em frente ao Tejo, ia
para o trabalho de bicicleta até engravidar e comprar uma casa mais espaçosa no Porto.

Há quem prefira a liberdade da vida sobre rodas às paredes de um apartamento. Laurinda é


um bom exemplo disso. Apesar de ter casa numa das zonas mais cobiçadas de Lisboa, a
Avenida de Roma, não troca a sua autocaravana por nada. Na companhia do seu periquito
Quicas, tem a mesma rotina que tinha em casa: cozinha, toma banho, lava a loiça e até fala
com os amigos na internet.

A única preocupação constante de todos os que optam por este estilo de vida é encher
semanalmente o depósito da água e despejar a casa-de-banho numa estação apropriada.
"Infelizmente há poucos sítios em Portugal onde isso se possa fazer", diz Isilda Lopes que já
percorreu a Europa na sua autocaravana. "França é o melhor país para viajar assim. Há
condições excepcionais e áreas próprias de paragem."

Em Lisboa são poucos os sítios onde as carrinhas e autocaravanas são bem-vindas e cada
vez mais são afixados sinais de proibição de estacionamento. "Costumava ficar ao pé da
Torre de Belém e do Padrão dos Descobrimentos, mas depois proibiram", conta Maria, de
49 anos, que há dois anos vive numa autocaravana. A sua empresa vai abrir uma filial em
Madrid e Maria terá de vender a autocaravana. "É uma cidade mais perigosa e por isso
prefiro vendê-la aqui", diz. "Estou a pedir 30 mil euros por ela."

Uma autocaravana por estrear custa em média 60 mil euros, mas há quem opte por uma
carrinha comercial a menos de metade do preço e a transforme numa casa. É o caso de João
Lourenço, que só não tem uma casa-de-banho.

Carlos e Isilda Lopes- Reformados

“Comprar uma autocaravana foi o melhor investimento que fiz na vida”, diz Carlos Lopes,
65 anos, com um sorriso. “Éramos jovens de mais para ficar num banco de jardim à espera
que o tempo passasse”, acrescenta a mulher Isilda, 56 anos. Há nove anos, o casal comprou
uma autocaravana e desde então pára de viajar. “Já percorremos a Europa quase toda”,
dizem-nos com entusiasmo. “A próxima viagem será a Moscovo. Temos de partir em Abril e
devemos demorar quatro meses.” Lá fora chove, mas dentro da autocaravana está quente.
“Aqui temos aquecimento, temos tudo”, diz Carlos. Na bancada da cozinha vêem-se livros
de receitas e sacos de compras. “Hoje fomos até ao Dolce Vita na Amadora”, diz Isilda. Duas
velas ardem na mesa enfeitada com folhas secas e a cadela Rosinha observa tudo sentada
numa cadeira. “Temos duas casas, uma em Aveiro e outra em Porto Covo, mas acabamos
por passar mais tempo na autocaravana”, contam. Pararam em Lisboa “para ir ao cinema
ver o „Avatar‟” e porque tinham “saudades da civilização”. “Mas não ficamos mais de dois
dias no mesmo sítio”, esclarece Isilda, que gosta de deixar bem claro que autocaravanismo
não é campismo. Uma caixa por baixo da televisão denuncia que o casal tem TV Cabo. “E a
televisão é giratória, para podermos ver na cama”, diz Isilda.

Laurinda- Reformada

Laurinda trocou a sua casa na Avenida de Roma, em Lisboa, por uma autocaravana que
estaciona onde lhe dá jeito. “Em casa ficava reduzida às quatro paredes, ia à janela e via os
carros a passar como formigas”, conta depois de lavar a loiça do jantar. A autocaravana
parece um apartamento apertado, com todas as divisões à vista. Numa mesa forrada com
um napperon estão vários cadernos, um computador e um periquito que agita as asas na
gaiola. “É o Quicas”, apresenta Laurinda, antes de abrir a gaiola e pedir “miminhos” vezes
sem conta. “Não há problema, as janelas estão fechadas e posso soltá-lo”, diz. Quicas
esvoaça alguns segundos ao pé do lava-loiça e aterra exausto numa pilha de roupa em cima
da cama. Não é a única ave presente. Ao lado do volante, um galo muda de cor consoante o
tempo. “Aqui convivo mais com as pessoas. Gosto de me deitar a ouvir a chuva ou o vento.
Estou em contacto com tudo”, conta Laurinda. Só vai a casa duas vezes por semana para
lavar a roupa, passar a ferro “ou fazer comidas mais complicadas”. À noite, costuma
entreter-se no Skype a falar com amigos autocaravanistas franceses que conheceu em
viagens. Antes de se reformar, Laurinda, que prefere não revelar a idade e o apelido –
“tenho metade e outros tantos” – também vivia numa rulote com o marido. “Vendíamos
candeeiros e viajávamos pelo país”, recorda.
João Lourenço- Designer Gráfico

Todos os dias João Lourenço almoça na sua carrinha, uma Volkswagen Transporter que
comprou há cinco anos. Embora tenha uma casa, não dispensa uma refeição na carrinha
que equipou de raiz e onde já viveu durante três meses. “Quando a comprei vinha
completamente vazia e depois transformei-a”, conta o designer gráfico de 35 anos. A paixão
“por tornar os carros habitáveis” já era antiga. “Tive um jipe que também tinha uma cama,
mas não era tão espaçoso, não podia cozinhar.” Decidiu então comprar um carro maior, que
não comprometesse “a mobilidade dentro da cidade”, no qual construiu um quarto e uma
cozinha. “Aprofundei os conhecimentos mais técnicos na internet, por exemplo como
instalar electricidade e gás.” O resultado foi uma casa com rodas, onde só falta casa de
banho. “Mas isso não me chateia, na natureza resolve-se.”

Inês Soares- Médica

A dificuldade de arranjar uma casa em Lisboa com vista para o rio Tejo levou Inês a
comprar uma autocaravana. “Tinha vivido num T0 com um terraço brutal e não consegui
encontrar nenhuma casa parecida”, conta a médica de 30 anos. Comprou uma
autocaravana para sete pessoas, “onde havia espaço para guardar todos os livros”, e esteve
um ano estacionada em Belém. “Ia trabalhar de bicicleta ou de carro”, que também estava
estacionado à porta da caravana. Ao fim de um ano, teve de mudar de sítio: “A polícia pôs
um sinal de proibido justamente onde eu estava.” Instalou-se em Algés, ao pé do
restaurante Siesta, onde os pescadores já a conheciam. “Um deles até me levava fruta.”
Quando engravidou foi para o Porto, a sua cidade natal, e comprou uma casa. “Achei que
era o mais sensato. Com namorado e filha não há espaço para tudo.”

Teófilo Ramos- Estudante de Artes Circenses

Quando sai das aulas no Chapitô, Teófilo regressa a casa na Graça, isto é, à sua carrinha,
uma Renault Traffic que comprou em segunda mão. “Precisava de uma carrinha porque
durmo sempre fora de casa e para transportar os materiais das animações que faço”, conta
o estudante de Artes Circenses, 20 anos. Há dois anos saiu de Espinho para morar em
Lisboa, mas em vez de gastar dinheiro a alugar uma casa optou por viver sozinho na
carrinha. “Tenho algumas limitações. Não tenho água à discrição, mas tomo banho na
escola e não posso gastar muita luz.” Fora isso é como uma pequena casa. Os armários estão
cheios de instrumentos musicais e objectos de malabarismo. “É como se fosse um
camarim”, explica. Aos fins-de-semana, demora seis horas a chegar ao Porto: “Vou por
nacionais porque só a portagem é 40 euros.”

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