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Do potro ao garanhão

Andy Beck
White Horse Equine Ethology Project - 2004

Nota do tradutor

O artigo original, sob o título “The male horse”, pode ser acessado no endereço eletrônico http://www.equine-
behavior.com/Part_4.htm. A tradução que segue não é fiel ao estilo e forma do texto original, entretanto
procurei preservar o conteúdo em toda a sua riqueza de informações. Todas as intervenções realizadas,
embora se restrinjam principalmente à forma e estilo, tiveram por base minha própria experiência proveniente
do estudo do comportamento e vivência com cavalos durante o período de 2000 a 2009, e que resultou num
conjunto de práticas que denominei manejo ecológico do cavalo – a ser publicado.
O texto de Andy Beck é riquíssimo em informações sobre o comportamento natural do cavalo e consiste
numa contribuição importante para a transformação dos métodos tradicionais de manejo, uma prerrogativa
essencial ao desenvolvimento cultural humano, bem como à evolução da relação homem-cavalo.
Dedico esse trabalho à minha querida irmã, Margarete Kitaka Mendes, iniciante neste universo transformador
do espírito humano.

Jaime Nogueira Mendes Jr.


Holambra – SP
Março de 2010

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A imagem de garanhões lutando entre si tem sido um tema comum em manifestações


artísticas durante séculos, o que não é difícil de entender considerando o embate titânico de
poder e força física produzido por essa imagem tão poderosa e tão profundamente
estigmatizada em nossa memória cultural, de tal forma que para muitas pessoas a agressão
primitiva e o poder por meio da violência estão relacionados com a noção de cavalo,
resultando numa forma cultural de monomania. E é exatamente essa noção que, há muito
tempo, deve ser questionada.

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Ao longo desse artigo, nós vamos remover o véu do exagero que recobre a natureza integral
do cavalo e revelar aquilo que se esconde atrás do mito.
Comecemos com uma breve sinopse dos primeiros anos de vida de um cavalo macho em
ambiente natural. Nascido dentro de um grupo familiar típico, ou harém, o potro é
submetido à cultura de seu grupo desde o nascimento. Dependendo da cultura particular de
cada grupo e do nível hierárquico de sua mãe, o parto pode ocorrer sob a vigília do
garanhão e uma ou duas éguas de alto nível na hierarquia do grupo. Dentro das doze horas
iniciais após o parto, os membros da família formam uma procissão para ver o recém-
nascido.
Nos primeiros estágios de sua vida, o potro jamais estará desacompanhado, seja brincando,
pastando ou descansando. Dentro da estrutura social do grupo, ele sempre estará sob a
vigília de sua mãe ou de uma babá, que pode ser uma irmã, um irmão ou uma tia mais
velha.
As boas maneiras, um elemento essencial no sistema social eqüino, serão introduzidas e
reforçadas na educação do potro. Sua dieta será guiada pelos mais velhos que ensinarão o
que comer e por quanto tempo comer. O potro aprenderá, por observação, o protocolo da
corte e do acasalamento. Ele aprenderá a jogar com seus companheiros de manada os jogos
de morder e escoicear, incluindo a etiqueta para esses jogos, bem como a quem esse
comportamento poderá ser dirigido.
Na verdade, o potro receberá um paradigma para toda a sua vida como membro de um
grupo social que inclui regras sociais, sexuais, recreacionais e alimentares. De modo
semelhante a um homem integrado socialmente, é esta educação completa que resulta num
indivíduo equilibrado.
Ao final do período de sua infância, o potro experimentará a rejeição de seu grupo e será
forçado a deixar a manada para iniciar uma nova fase em sua vida, passando a integrar um
grupo de machos solteiros.
Formar um grupo de solteiros é uma estratégia comum em espécies sociais, incluindo a
espécie humana. De forma semelhante aos jovens do sexo masculino de várias culturas
humanas que deixam seu grupo familiar para viverem em grupos masculinos por períodos
que se estendem por mais de sete anos, assim também o fará o potro expulso de seu grupo
familiar.

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O caráter social desses grupos é especialmente interessante. Neste sentido, o
comportamento dos membros do grupo em relação ao recém-chegado é muito revelador. O
grupo todo se aglomera ao seu redor e, em clima de muita excitação, cada um dos veteranos
fazem, repetidamente, contatos dirigidos à axila na região frontal e ao focinho, assoprando
e inalando o ar vigorosamente pela narina. Esse procedimento tem como função, entre
outros aspectos socializantes, sentir e registrar em suas memórias o cheiro de cada
indivíduo.
No intervalo de quinze minutos após o contato, o grupo retorna para o pastejo com o novato
incorporado à coluna de cavalos que segue flanqueada por dois garanhões ou potros de
maior nível hierárquico. Nessa formação, os dois indivíduos dominantes guiam o grupo
pelas áreas de pastagem por um processo de indução progressiva, facilitando a descoberta
de fontes de água, limites geográficos e outras informações essenciais para o caso uma fuga
rápida ser necessária. Uma hora após o contato, o grupo todo é capaz de reagir em conjunto
a estímulos externos, realizando manobras com excelente coesão na manada.
Diferentemente, a adição de um novo membro a um grupo de éguas adultas ou potras revela
um comportamento totalmente adverso. A recém-chegada é, na melhor das hipóteses,
ignorada, sendo comumente hostilizada e perseguida. A sua completa aceitação no grupo
pode demorar uma semana ou mais. A razão para essa diferença de comportamento entre
grupos de machos solteiros e grupos de fêmeas poderia ser explicado de modo simples
argumentando-se que grupos de fêmeas não é uma ocorrência natural. Contudo, há uma
explicação básica na abordagem biológica: para os membros de um grupo feminino, a
chegada de uma nova fêmea oferece poucos motivos para celebração. Exceto para o caso de
animais solitários ou do grupo ser tão pequeno a ponto da segurança estar comprometida
devido ao número insuficiente para manter a vigília, a adição de um novo membro significa
simplesmente aumento na competição por alimento e água sem nenhuma vantagem social.
Já para o caso do grupo de machos solteiros, a questão é totalmente outra. Em seu ambiente
natural, os grupos de solteiros atuam na periferia de um harém com seu respectivo
garanhão. A adição de um novo integrante aumenta a vantagem do grupo de solteiros para
empreender seus ataques ao harém em busca de fêmeas em idade reprodutiva.
A estrutura espacial de um harém com seu garanhão é, geralmente, organizada a partir de
um núcleo contendo indivíduos com alto nível hierárquico. Os indivíduos com posições

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inferiores na hierarquia, incluindo potros e potras com idade entre três e quatro anos,
permanecem, a maior parte do tempo, distantes do núcleo principal.
Com o elemento surpresa a seu favor, o grupo de solteiros parte para o ataque. O macho
dominante desse grupo, com idade entre cinco e seis anos, fixa sua atenção numa única
potra, ou, dependendo das circunstâncias, em duas ou três. Enquanto isso, seus
companheiros de manada correm em círculo, sitiando o harém, criando confusão e
oportunidade para o seu líder. O garanhão do harém se dirige ao núcleo principal, reunindo
as éguas mais velhas e seus filhotes em um grupo coeso. O garanhão tem pouco interesse
em suas filhas mais velhas que, por meio do processo natural de exogamia, seriam expulsas
do bando em algum momento. E, diante das circunstâncias, sua única esperança é defender
as éguas com as quais ele está mais fortemente ligado. Defender suas filhas não é prático,
nem benéfico.
Já para o grupo de solteiros, a recompensa por um ataque bem sucedido é que seu líder
deixará o grupo para formar seu próprio harém, permitindo que cada integrante suba um
grau na escala hierárquica, tornando mais próximo o dia em que eles também possam
capturar suas próprias fêmeas.
A partir deste breve exame sobre o comportamento natural do potro e do garanhão,
seguiremos com uma análise comparativa acerca do paradigma dominante que determina
como os potros são tradicionalmente criados e mantidos em cativeiro.
Os métodos tradicionais de manejo caracterizam-se pela produção de potros dentro de
grupos muito pequenos contendo apenas éguas ou, ainda mais freqüentemente, na
companhia apenas de sua mãe. O desmame é realizado precocemente com intervenção
humana em vez de ser deixado aos cuidados da mãe, resultando num alto grau de estresse e
ansiedade devido à separação, geralmente seguida de isolamento e solidão.
Esses potros são impedidos de observar e apreender o modelo comportamental de um
garanhão, bem como de brincar e de se relacionar socialmente, que são aspectos essenciais
ao seu desenvolvimento e equilíbrio psicológico.
Se aplicássemos a mesma metodologia para jovens e crianças de nossa própria espécie, não
seria surpreendente se aumentasse a freqüência de adultos portadores de disfunções sociais
tais como impulsividade, necessidades sociopáticas e incapacidade de iniciar, manter e
finalizar uma relação sexual. Há evidências científicas que demonstram resultados

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semelhantes para outras espécies de animais sociais (veja e.g. CARTHY & HOWSE –
Comportamento animal – EPU – EDUSP – vol 14), e não há razões para supor que com o
cavalo seria diferente.
Muitos cavalos com excelente aparência física escondem problemas mentais que resultam,
freqüentemente, em agressões dirigidas a tratadores e treinadores, bem como em acidentes
e ferimentos, tornando o manejo perigoso e dispendioso. Perde-se a possibilidade de um
trabalho cooperativo entre homem e cavalo, e passa-se a empregar uma série de
dispositivos de contenção e proteção, além do uso de embocaduras (freios) para garanhões
que se assemelham a instrumentos medievais de tortura. Os resultados finais sempre
incluem animais extremamente estressados, além de um dos grandes problemas definido
pela baixa taxa de fecundidade que sempre resulta em custos elevados devido à necessidade
do uso de testes veterinários para gravidez e aumento do tempo de manejo. Mesmo se
deixássemos de lado qualquer questão ética em relação ao manejo do cavalo e nos
concentrássemos apenas em seu aspecto financeiro, o sistema tradicional de manejo ainda
seria um grande fracasso.
Para o cavalo, assim como para o homem, o ambiente é uma força poderosa modeladora do
desenvolvimento físico e psicológico. Embora tenha havido muitos avanços na
compreensão da relação entre o ambiente e o desenvolvimento infantil humano, há ainda
uma grande barreira a ser cruzada antes de se aplicar a mesma lógica para a criação dos
filhotes de outras espécies sociais.
Apesar da qualidade da água e do alimento sejam fatores importantes no desenvolvimento
do cavalo, o ambiente em seu sentido amplo desempenha um papel decisivo nesse
processo, podendo resultar numa diferença de dois anos no desenvolvimento físico entre
cavalos domésticos intensivamente manejados e cavalos de raças semelhantes em estado
selvagem. Por exemplo, potras pertencentes a grupos em estado selvagem podem não
apresentar estro (cio) até a idade de quatro anos, diferentemente de potras domésticas que
podem iniciar a ovulação a partir de 24 e 30 meses de idade.
Os potros respondem de forma semelhante. Potros selvagens permanecem sexualmente
imaturos por tempo muito superior aos potros domésticos criados em companhia de sua
mãe ou com um pequeno grupo de éguas. Esses potros domésticos criados em grupos de
fêmeas tendem a ser muito precoces, tornando-se sexualmente ativos por volta dos dois

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anos de idade. Contudo, a resposta das éguas aos potros nessa situação tendem a ser muito
fracas, pois a precocidade sexual dos potros não é acompanhada do desenvolvimento físico
necessário para demonstrar seu desejo de acasalamento ou seu comportamento de proteção
do grupo. Em resposta ao desinteresse ou recusa das éguas, inicia-se um processo de
desacertos definido pelo aumento de violência da parte do potro como recurso para dominar
a égua ou o grupo.
Esse aumento da violência e perda da elegância social também permeia a relação entre o
potro e seus tratadores ou treinadores, com conseqüências potencialmente desastrosas para
ambos. Se o comportamento desse potro provocar medo em quem o estiver manejando,
como sempre acontece, a primeira reação será a punição e, em seguida, o uso de
equipamentos de controle, às vezes, com níveis crescentes de severidade. Entretanto,
nenhuma dessas abordagens tange a raiz do problema. Além de serem ineficazes para
promover a mudança de comportamento do potro na direção desejada, podem ainda torná-
lo amargo e sombrio. A primeira providência nessa via de desentendimentos é sempre a
intervenção cirúrgica definida pela castração. Mas longe de ser a panacéia que muitos
acreditam ser, os resultados dessa técnica extremamente agressiva são tão incertos como
irreversíveis.
Após esta apresentação sobre a natureza dos desacertos que perpetuam o velho mito do
garanhão, há ainda um outro aspecto que deve ser apresentado. A noção humana do “pai de
família” induz ao raciocínio equivocado de que o garanhão contribui pouco ou não
contribui na criação dos potros, o que é compreensível considerando o conceito central
contido na figura do pai como sujeito ausente em busca do “pão-de-cada-dia”, uma
estratégia comum entre predadores, mas totalmente sem equivalentes para animais
pastadores.
A ciência moderna, sob a forma da psicologia comparada como instrumento analítico,
permite lançar luz sobre alguns pontos que foram negligenciados no passado. O impacto
causado pela ausência de um modelo masculino já foi discutido anteriormente nesse
trabalho. Pesquisas baseadas na observação de dois grupos familiares pertencentes ao
White Horse Equine Ethology Project (WHEEP) revelaram que os garanhões passam
algum tempo com cada um dos filhotes recém-nascidos dentro do harém, não havendo
diferença alguma entre o tratamento conferido à sua prole legítima e aqueles provenientes

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de éguas previamente prenhes introduzidas no grupo. Contudo, foi observado que os recém-
nascidos de éguas em melhor posição na hierarquia social recebem mais atenção por parte
do garanhão.
Todos os anos, por volta do auge do verão, potros e potras com dois anos de idade são
removidos dos grupos familiares pertencentes ao WHEEP. Este procedimento é realizado
empregando éguas dominantes (madrinhas) para conduzir os potros até as pastagens onde
eles são separados para, posteriormente, serem introduzidos em seus novos grupos. Os
preparativos são realizados com antecedência e envolvem a remoção, por um curto período,
das éguas com potros ao pé posicionadas nos níveis mais baixos da hierarquia. Durante esse
intervalo, os animais removidos do grupo recebem alimentação suplementar para
compensar o estresse. Essas remoções preparatórias são percebidas pelo garanhão com uma
certa dose de nervosismo, passando a exibir um comportamento potencial de proteção e
defesa do harém. Ao invés de procedermos à inibição desse comportamento, encorajamos o
garanhão a participar do procedimento, acompanhando as éguas e tomando a frente na
inspeção das áreas onde as éguas serão instaladas. Este procedimento permite que o
garanhão avalie a segurança das áreas e a ausência de rivais potenciais. Durante o processo,
o garanhão recebe alimento como forma de recompensa pela cooperação.
Entretanto, nem todas as remoções são temporárias. Há dois anos, as condições climáticas
não permitiram a recuperação das pastagens, coincidindo com um aumento demográfico
nos grupos da segunda geração que excederam o tamanho ótimo da população. Como
conseqüência, a pressão de pastejo desencadeou comportamentos de desarmonia social.
Pela primeira vez, foi observado que as éguas recusavam, freqüentemente, o cortejo
amoroso do garanhão, levando-o a exibir um comportamento cada vez mais dominante e,
como resultado, também mais violento, resultando em duas éguas feridas por mordidas na
parte superior do pescoço. Neste caso, além da remoção usual dos potros e potras com dois
anos de idade, outras duas éguas com potros ao pé e potros com um ano de idade foram
removidos para diminuir a pressão de competição e restabelecer o equilíbrio ecológico e
social.
Sempre me surpreendeu o fato de éguas bem socializadas com pessoas não produzirem nos
seus filhos a mesma atitude. Sabemos que os potros aprendem observando suas mães,
principalmente no que concerne à alimentação. Então, porquê isso não ocorre em relação à

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socialização com pessoas? Se os filhotes observam suas mães relaxadas em contato
afetuoso com seres humanos todos os dias, porque esses potros não aprendem a aceitar o
contato humano? Foi somente por acidente que descobrimos que embora a égua não seja
capaz de promover esta segurança em seus potros, o garanhão, por sua vez, pode. O
protocolo para as visitas clínicas de rotina aos grupos familiares determina que o garanhão
seja atendido primeiramente e, a seguir, a égua dominante. Durante visitas mais
prolongadas, eu costumava passar algum tempo com o garanhão com o objetivo de
construir uma relação de amizade. Aos poucos, os potros começaram a se aproximar
formando um círculo ao nosso redor, incluindo animais que previamente mostravam medo
e recusavam o contato comigo. Na medida em que eu continuava acariciando o garanhão,
desembaraçando sua crina e removendo parasitas em seu dorso, os potros se aproximavam
ainda mais solicitando contato comigo. Há, evidentemente, algum mecanismo
comportamental envolvido neste processo de socialização que é específico ao gênero
masculino, de modo semelhante ao processo em que a criança tem o seu pai como
referência para assimilar o paradigma de socialização com as esferas mais amplas da
sociedade.
Dessa forma, o manejo tradicional do garanhão, definido pelo isolamento e privação de sua
natureza social, compromete o seu desenvolvimento psico-social e nos impede de empregá-
lo como uma estratégia natural para a socialização dos cavalos jovens em relação ao
homem.
Embora tenhamos nos concentrado no aspecto masculino do cavalo ao longo deste trabalho,
isso não significa que não há influência da presença paterna no desenvolvimento das potras.
Da mesma maneira como aparecem os problemas dos potros em razão dos métodos de
manejo inadequados, o mesmo ocorre em relação as potras. O problema mais óbvio surge
por ocasião do acasalamento. A potra ou égua que nunca conviveu com um macho inteiro,
é confrontada com a figura espetacular e vigorosa de um garanhão em pleno estado de
excitação, causando assombro e medo. Com freqüência, são empregados vários dispositivos
de contenção e proteção estranhos para a égua (e.g. o pé-de-amigo) que agravam ainda mais
o quadro de horror e pânico. A pobre égua é submetida a essa situação sem o suporte e
companhia de suas irmãs de manada, e não deveria ser culpada quando reage
violentamente.

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No processo natural da corte, égua e garanhão estão juntos muito antes do estro, havendo
um aumento gradual de interesse mútuo ao longo de um ciclo hormonal progressivo. De
acordo com observações registradas ao longo de nossa pesquisa, a corte que precede a
primeira cópula em éguas iniciantes tem duração muito maior quando comparada com a
corte para éguas mais velhas e experientes.
A égua indica o estágio de seu ciclo por meio de uma micção sinalizadora, permitindo ao
garanhão uma leitura precisa do estado em que se encontra através da análise do odor em
sua urina.
Normalmente, o garanhão aborda a égua pela frente, dirigindo-se para as axilas. Esta
posição é segura para o garanhão, pois a reação da égua quando não está pronta inclui a
emissão de um guincho característico seguido de coices. Na medida em que sua disposição
sexual aumenta, o garanhão passa a estimulá-la freqüentemente com sua língua, o que serve
ao duplo propósito de excitá-la e lubrificar sua vagina antes da penetração.
Diante do exposto acima, não é difícil entender o fato da maioria das éguas iniciantes
reagirem mal na falta dos procedimentos da corte, o que ocorre no manejo tradicional
quando a cópula é realizada seguindo um protocolo totalmente estranho à natureza do
cavalo.
O procedimento padrão no manejo tradicional envolve o uso de amarras especiais para
impedir o coice, bem como estruturas de contenção para a égua que a impedem de fugir,
enquanto o garanhão, puxado pelo cabresto, é encorajado a abordar a égua diretamente por
trás e a montá-la. A experiência é extremamente estressante para a égua e, na minha
opinião, essa prática equivale a um estupro com assistência humana. Quando essa mesma
égua for submetida ao mesmo procedimento, sua reação é freqüentemente mais violenta,
requerendo, além dos dispositivos de contenção, o uso de sedativos.
Dessa forma, não surpreende o fato deste tipo de prática, caracterizado pelo alto grau de
estresse, resultar em níveis baixos de fertilização, o que tem levado muitos produtores a
optarem pela inseminação artificial.
Diferentemente do que ocorre com essas pobres éguas, as potras que se desenvolvem em
ambientes naturais testemunham de perto a cópula de seus pais desde as primeiras semanas
de vida. Na medida em que crescem, assistem a cópula de outras éguas do harém num
clima de relaxamento e de receptividade. Assim, a potra recebe a educação necessária de tal

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forma que quando chega a sua vez ela reage com disposição e se comporta como uma
parceira cooperativa.
Contudo, parece estranho que continuemos a fazer as coisas de modo a tornar a reprodução
menos produtiva. O manejo tradicional tem implicado em perda de tempo, alto custo
financeiro, perigo potencial para os animais e para as pessoas envolvidas no manejo, além
dos aspectos éticos que pesam negativamente neste tipo de prática.
Muitos são céticos em relação à idéia de garanhões serem potencialmente cooperativos,
polidos como cavalheiros dotados de senso de moral e proteção. Para os céticos, eu ofereço
uma prova final. Há alguns meses, um potro foi separado de sua mãe pouco tempo após o
nascimento. Passado algum tempo, ao tentarmos retorná-lo junto à sua mãe, ela o recusou.
Apesar de conhecermos os problemas resultantes da amamentação com mamadeiras,
especialmente no caso de filhotes machos, levamos o potro para o jardim e começamos a
amamentá-lo. Depois de algumas semanas muito difíceis em que parecia improvável que
sobreviveria, o potro passou a apresentar evidências de estar em bom estado físico.
Freqüentemente, cavalos criados como animais de estimação tornam-se indisciplinados e
violentos com pessoas, apresentando sempre problemas para socializarem-se com outros
cavalos.
A melhor solução para um caso como esse é empregar uma égua cujo filhote tenha morrido
e tentar convencê-la a adotar o potro rejeitado ou órfão. Entretanto, não havia uma égua
nessas condições. Após uma análise criteriosa acerca das possibilidades para o potro,
decidimos remover um garanhão com oito anos de idade, líder de um grupo de solteiros,
para ser a babá do potro recusado, mantendo o fornecimento de leite através de mamadeiras
a cada três horas durante dia e noite.
Primeiramente, potro e garanhão foram apresentados um ao outro, dentro do espaço do
jardim, através de uma pequena cerca de madeira. Como não houve sinal algum de
intolerância por parte do garanhão e com a progressão positiva no desenvolvimento do
potro, entendemos que era chegado o momento de colocá-los juntos.
Uma coisa é esperar que um garanhão demonstre cuidados por um potro nascido dentro de
seu harém, mas adotar um potro sem nenhum laço de parentesco é coisa completamente
diferente. Contudo, foi exatamente isso que aconteceu. O garanhão passou a acompanhar o
pequeno potro até o local de amamentação, num percurso de 500 metros, e retornando com

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ele para o local de pastagem. Da mesma forma como as éguas guardam seus potros
adormecidos, o mesmo comportamento foi verificado no garanhão que não deixava o potro
enquanto não estivesse acordado e pronto para se mover. O potro está agora com quatorze
semanas, aprendendo as boas maneiras eqüinas e superando suas dificuldades graças aos
cuidados de um garanhão, uma idéia inadmissível no passado.
Durante os doze anos deste projeto, houve muitas situações em que só foi possível controlar
grandes números de cavalos graças a ajuda de garanhões residentes. Da mesma forma,
garanhões têm prestado auxílio em meus primeiros contatos com animais jovens,
facilitando meu trabalho que passou a ser realizado com menor gasto de tempo e energia.
Os garanhões também têm prestado auxílio escoltando éguas para os currais onde elas
podem receber cuidados veterinários por ocasião do parto, ficando ao lado delas e
fornecendo suporte ao diminuir a ansiedade da separação.
Em várias ocasiões, garanhões líderes de haréns estiveram em confronto direto devido à
falha de uma cerca ou portão. Em cada um desses casos, não houve acidentes ou
ferimentos, pois os garanhões permitiram que eu os separasse e os retornasse aos seus
respectivos piquetes sem qualquer ameaça à minha segurança.
Às vezes, trata-se de uma experiência emocional tão profunda que não há vergonha alguma
de ter os olhos cheios de lágrimas. Para aqueles que têm a sorte de partilhar do
companheirismo de um garanhão, há sempre a certeza de reconhecer essa experiência como
inesquecível e transformadora da vida.
Os pontos expostos neste trabalho não seriam suficientes para iniciar uma mudança na
percepção sobre o garanhão e nas suas respectivas práticas de manejo?

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