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Aquilo que na clínica psicanalítica está sob a alçada da perversão pode manifestar-se
fenomenologicamente de maneiras distintas. Assim, sintomas comumente atribuídos a
perversos podem ser agrupados em categorias diversas, entre elas, exibicionismo,
fetichismo, masoquismo, sadismo e voyeurismo. Enumeração semelhante é encontrada
nos manuais diagnósticos psiquiátricos. No DSM-IV, cada um desses nomes atribui-se a
um transtorno distinto, e esses transtornos estão agrupados na categoria de Parafilias,
que por sua vez constituem uma das categorias de transtornos sexuais.

É importante ressaltar que no entendimento da psicanálise, ainda que possa haver


distinção entre os sintomas perversos, não há o entendimento de que o fenômeno, ou
sintoma, possa estabelecer fronteiras, por si só, entre patologias distintas. O enfoque é
dado à estrutura patológica, a perversão, que pode apresentar uma manifestação plural,
e, ainda assim, una em essência. Isso só é possível porque o entendimento psicanalítico
não parte da aparência evidente do sintoma clínico (desejo de observar intercursos
sexuais, de fazer sexo com crianças, etc.), mas daquilo que há de estrutural entre os
diversos sintomas, o que, no caso da perversão, difere claramente da estrutura neurótica,
por exemplo.

Cabe, ainda, uma outra distinção entre o sintoma em psicanálise e na psiquiatria. O


sintoma, em psicanálise, é fruto de um processo de deslocamento, relacionado à
resolução do complexo edípico na infância e, portanto, não é necessariamente
patológico. A análise que segue versará sobre os chamados sintomas clínicos (segundo
Lacan, symptôme) da perversão, o que não exclui a existência de sintomas estruturantes
(sinthoma) presentes em todo sujeito. Estruturantes seriam os sintomas inerentes ao
desenvolvimento de todo o ser humano. A neurose transitória infantil apresentaria esse
tipo de sintoma, como o brincar, os terrores noturnos, as pequenas fobias, as crises de
birra, o negativismo e as mentiras. Esses sintomas, conforme Meira (2004),
³representam tentativas de separação do desejo materno, sendo, portanto, metáforas. Ou
seja, no lugar do desejo materno, primordialmente constitutivo, a criança passa a
constituir um lugar referido ao nome do pai. Lugar metafórico, próprio da neurose, por
excelência.´

Igualmente na infância estruturam-se os sintomas clínicos, porém esses anunciarão, a


partir de uma determinada estrutura basal, as diferentes patologias que acompanham os
indivíduos até a idade adulta.

Lacan apontara que não há, na verdade, como erradicar o sintoma ou simplesmente não
desenvolvê-lo. Esse pode ser deslocado, mas não deixa de existir, o que novamente
traça uma fronteira entre a noção psiquiátrica, que considera o sintoma passível de cura,
e a noção psicanalítica de sintoma. Como coloca Meira (2004): ³Cabe ao sujeito
construir os caminhos que o levarão a uma existência onde estar em sintonia com seu
sintoma seja possível. Na medida em que a angústia, motor de sua criação, transborda,
encontramos o sintoma psicopatológico, frente ao qual a clínica se desvela como
possibilidade de intervenção. Não para erradicá-lo, mas para dar lugar às palavras que o
marcam.´ Ao que parece, a distinção entre sintoma clínico e estruturante se dá de forma
tênue, principalmente no que diz respeito à neurose.

Voltando à caracterização da perversão enquanto estrutura clínica, patológica, Freud


alicerçou a diferenciação entre a estrutura perversa e a estrutura neurótica na castração.
Em certo momento a criança descobre que a mãe não possui pênis, desmentindo sua
teoria de que todos os seres seriam fálicos. Essa descoberta gera a angústia de castração,
já que a criança vê nesse novo fato a confirmação da ameaça imaginária de ser castrada.
Diante de tal angústia, o sujeito poderá então desenvolver reações defensivas, a fim de
neutralizá-la.

Se essas reações defensivas persistirem, podem resultar em diferentes condições: ou a


criança aceitará a castração e a lei da interdição do incesto, o que mais tarde resulta em
neurose; ou apenas aceitará a castração sob a condição de transgredi-la, desenvolvendo
então um processo de renegação da realidade (desmentida da castração, o que inclui, a
diferença sexual) que faz parte do desenvolvimento da perversão.

No processo constitutivo da perversão, o sujeito se recusa a reconhecer a ausência de


pênis na mãe, ou em qualquer mulher. Tomando um caso de perversão fetichista como
exemplo, o perverso substitui o objeto que ³falta´ (falo imaginário da mulher) pelo
objeto fetiche. Contudo, a chamada desmentida da castração só é possível pela
"clivagem do eu", uma vez que o perverso inevitavelmente sabe algo da castração,
mesmo querendo nada saber dela. A clivagem do eu, portanto, permite que essas duas
correntes psíquicas conflitantes convivam no sujeito.

Uma vez que esteja identificada a estrutura comum da perversão, resta a indagação
acerca do porque da pluralidade sintomática que essa apresenta. Freud, no artigo
"Fetichismo", de 1927, aponta a relação entre a experiência infantil de um jovem e seu
sintoma fetichista: "o fetiche, originado de sua primeira infância , tinha de ser entendido
em inglês, não em alemão. O µbrilho do nariz¶ [em alemão µGlanz auf der Naseµ] era na
realidade um µvislumbre (glance) do nariz¶. O nariz constituía assim o fetiche, que
incidentalmente, ele dotara, à sua vontade, do brilho luminoso que não era perceptível a
outros." No mesmo texto, Freud cita o caso do rapaz que elegera como fetiche um
suporte atlético capaz de cobrir e tornar indistintos os órgãos genitais masculino e
feminino (renegação ou desmentida da castração). O objeto remeteria à folha de parreira
em uma estátua, elemento presente na infância do paciente.

Ao que parece, o sintoma de perversão é determinado por experiências específicas de


cada sujeito, que geram associações igualmente específicas, sendo o sintoma de um
perverso comparável ao de outro apenas a um nível profundo de investigação de sua
estrutura, onde se evidenciam as associações feitas pelo sujeito e não apenas o evento
em si. Por esse motivo, ao escrever sobre fetichismo, o máximo que Freud arrisca a fim
de generalizar a natureza comum entre os diversos eventos que determinam sintomas
fetichistas é a possibilidade de que o objeto fetiche seja eleito por contigüidade com o
momento da descoberta da castração. Tal hipótese justificaria o fato de certos objetos
fetiches serem bastante comuns. Nas palavras de Freud: " Assim, o pé ou o sapato
devem sua preferência como fetiche ² ou parte dela ² à circunstância de o menino
inquisitivo espiar os órgãos genitais da mulher a partir de baixo, das pernas para cima;
peles e veludo ² como por longo tempo se suspeitou ² constituem uma fixação da
visão dos pêlos púbicos, que deveria ter sido seguida pela ansiada visão do membro
feminino; peças de roupa interior, que tão freqüentemente são escolhidas como fetiche,
cristalizam o momento de se despir, o último momento em que a mulher ainda podia ser
encarada como fálica. Não sustento, porém, ser invariavelmente possível descobrir com
certeza o modo como o fetiche foi determinado."

Possivelmente a especificidade de experiência e, é claro, a forma como o sujeito


vivencia essa experiência psiquicamente, assim como determinam qual o objeto de gozo
do fetichista, geram as nuances entre os diversos tipos de sintomas de perversão
(masoquismo, voyerismo, etc.), o que justificaria seu entendimento dentro da mesma
estrutura psicopatológica. Contudo, torna-se necessário ainda investigar a existência,
além da base comum a toda perversão, de alguma especificidade estrutural que seja
comum entre fetichistas e não entre masoquistas, voyeristas e não entre exibicionistas, e
assim por diante.

A escolha do sintoma perverso pode também ser analisada a partir dos pontos de fixação
do desenvolvimento da libido do sujeito. O desenvolvimento da libido se divide em
estádios (oral, anal, fálica, genital), e os pontos de fixação são os momentos em que esse
processo de desenvolvimento pode ser detido e aos quais uma regressão poderá ocorrer,
caso posteriormente sejam enfrentadas dificuldades. A fixação ocorre quando um
instinto ou componente instintual deixa de acompanhar os demais na seqüência normal
de desenvolvimento, ficando assim num estádio mais infantil e comportando-se como
uma corrente libidinal reprimida. O sujeito que entrasse em processo de
desenvolvimento de uma perversão teria, portanto, o sintoma designado pela fase de
desenvolvimento em que está fixado.

Freud já havia considerado essa justificativa para a escolha da neurose e da perversão.


Na análise do Caso Schreber (1911c), Freud explica que na paranóia, por exemplo, o
processo de repressão passa por três fases: a fixação, a repressão propriamente dita e o
retorno do reprimido. O retorno do reprimido toma seu impulso justamente do ponto de
fixação, regredindo o desenvolvimento da libido a esse ponto. Como exemplo, Freud
lembra que ³a maioria dos casos de paranóia exibe traço de megalomania (...). Disto
pode-se concluir que, na paranóia, a libido liberada vincula-se ao ego e é utilizada para
o engrandecimento deste. Faz-se assim um retorno ao estádio do narcisismo (que
reconhecemos como estádio do desenvolvimento da libido), no qual o único objeto
sexual de uma pessoa é seu próprio ego. Com base nesta evidência clínica, podemos
supor que os paranóicos trouxeram consigo uma fixação no estádio do narcisismo (...).´

A partir disso, poderíamos também supor que o sintoma perverso dependa do ponto de
fixação do desenvolvimento sexual do sujeito. É importante lembrar, entretanto, que
Freud, no mesmo texto, fez uma ressalva, alertando que pela multiplicidade de
mecanismos de repressão e de formação de sintomas, podemos concluir que apenas a
história desenvolvimental da libido não será suficiente para explicar tanta diversidade.
Como pode ser visto muitos fatores influenciam na escolha do sintoma perverso, assim
como no neurótico e no psicótico, e essa questão ainda carece de análise.

Referências:
Freud, S. (1913). A disposição à neurose obsessiva - uma contribuição ao problema da
escolha da neurose Em: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Freud, S. (1911). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de


paranóia (dementia paranoides). Em: Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Kaufmann, P. (1996). Dicionário enciclopédico de psicanálise : o legado de Freud e


Lacan. Rio de Janeiro: J. Zahar.

Meira, A. M. (2004). Reflexões sobre o sintoma na psicanálise. Em:


www.ufgs.br/psicopatologia

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