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Revista Época, 10/11/2006 - 17:45 | Edição nº 443

O respeito entra em cena


RAFAEL PEREIRA

Neguinha da Febem! Neguinha da Febem!" Dedo em riste, um grupo de


meninas grita para outra garota - e ela, sozinha, se segura para não
chorar. Todas são negras, vestem uniforme de escola pública e estão
encenando uma peça de teatro. Um grupo de alunos e professores do
Colégio Estadual Guadalajara assiste à cena. A escola fica em Duque de
Caxias, na Baixada Fluminense, um dos municípios mais violentos do
país. A cena faz parte do esquete As Parteiras, escrito, produzido e
encenado pelas próprias alunas. Conta a história de uma jovem negra
que, depois de passar por uma instituição para menores infratores, supera
a discriminação e realiza o sonho de ser bailarina. ATRIZES DO GUADÁ Edinéia Tavarez
(à frente) está no grupo de teatro do
O preconceito é encenação. Mas há dez anos, quando a Trupe Teatral Colégio Guadalajara. A trupe se
Guadá em Cena foi criada, numa parceria entre alunos e um grupo de apresenta em universidades e outras
educadoras, demonstrações de discriminação eram corriqueiras na escolas da região
escola. A população de Duque de Caxias é formada predominantemente
por negros e retirantes nordestinos. O grupo de teatro foi criado como uma tentativa de aumentar a auto-estima e o
respeito entre os estudantes. "Daqui a pouco vou me formar, terei de correr atrás da vida", diz Edinéia Tavarez, de 18
anos, integrante da trupe. "Ser atriz está me ajudando a crescer." Hoje, o grupo é o orgulho do bairro pobre que leva o
nome do poeta Olavo Bilac.

A experiência cultural inspirou os professores do colégio. Foi criado um


Núcleo Ambiental, cuja proposta é estimular a coleta seletiva de lixo nas
casas dos alunos. Parte dos resíduos, como garrafas PET, é usada para
fazer móveis, bolsas e enfeites. Há ainda uma cozinha experimental, em
que as donas de casa aprendem receitas usando alimentos que
normalmente seriam jogados fora, como cascas de legumes ou verduras.
Numa região onde a violência é constante e o meio ambiente sempre
pareceu coisa sem importância, incluir a ecologia no dia-a-dia das
crianças foi uma vitória. A experiência ganhou apoio da ONG Care e
está sendo repetida em outras três escolas públicas do município.
DO OUTRO LADO DO ATLÂNTICO "Quando chegamos aqui, a direção e os professores pensavam que
Em 2005, o grupo de música Guadalaxé educador s servia apenas para fazer mural e teatrinho infantil", diz a
apresentou-se em Paris professora de teatro Edlane da Silva, de 36 anos, uma das responsáveis
pelo surgimento do Guadá em Cena. "Não tínhamos sala, trabalhávamos
em um banheiro desativado." A mudança começou quando 23 alunas da 8a série procuraram Edlane para montar uma
peça. Com a encenação, pretendiam arrecadar dinheiro para a festa de formatura. A trama era inspirada no massacre
de Eldorado dos Carajás, ocorrido no Pará em abril de 1996. Na ocasião, 19 sem-terra morreram num confronto com
a Polícia Militar. O acontecimento era próximo da realidade da Baixada Fluminense, marcada pela ação de grupos de
extermínio formados por policiais.

Cláudia Salles, hoje com 24 anos, era aluna e participou daquela primeira montagem. Ela se formou há oito anos, mas
nunca deixou de freqüentar a escola. [....] Já foi também cantora e percussionista do grupo de música e dança afro da
escola, o Guadalaxé. "Meu trabalho é cuidar de crianças, mas não abandono o sonho de ser artista", diz Cláudia.

O Guadalaxé faz parte da memória que Cláudia diz ser a mais feliz de sua vida. No ano passado, a banda foi indicada
para representar a Secretaria de Educação do Estado nas comemorações do ano do Brasil na França. Cláudia e mais
oito alunos passaram uma semana em Paris e fizeram duas apresentações em uma escola da cidade. Ela conta que,
quando o grupo chegou ao colégio parisiense, os franceses acharam que estavam recebendo a visita de um time de
futebol. "Eles não conheciam nada sobre nosso país. Quando começamos a tocar, foram ao delírio", diz ela. "O mais
longe que eu tinha ido era Copacabana. De repente, eu estava conhecendo a Torre Eiffel... Parecia um sonho."
Atualmente, o grupo se apresenta quatro vezes por mês em centros comunitários, universidades e outras escolas da
região.

Claro que nem tudo vai bem no Colégio Guadalajara. A escola não é referência quando o assunto é preparar os alunos
para o vestibular ou para concursos públicos. Para isso, é preciso mais que boas idéias. É preciso ter dinheiro, e o
Guadalajara padece da mesma falta de investimento de toda a rede pública de ensino. Mas a solução criativa de
professores e alunos para compensar as falhas do poder público é uma lição bem-acabada sobre como driblar a
burocracia e respeitar a cidadania - mesmo diante das condições mais adversas.

Fotos: Eduardo Monteiro/ÉPOCA

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