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Prefácio

É quase impossível um neurocirurgião estar em casa no horário da noite.


Normalmente estão fazendo cirurgias longas e cansativas, porém hoje,
milagrosamente, meu pai resolveu me dar uma noite de descanso e, por ironia
do destino, foi justamente a noite em que ela precisou de mim. Meu telefone
tocou às vinte e duas horas e é por esse motivo que estou aqui em frente a um
bar de esquina numa ruazinha vagabunda, subúrbio da cidade. Ela parecia
nervosa, dava pra sentir a tensão em sua voz do outro lado, isso me preocupou
muito. Não consigo imaginar motivo algum que a faça sair do seu estado
habitual de humor doce e educado. Então, quando ela me revelou a localização
do encontro, vesti uma camisa, peguei as chaves do carro e fui ao seu
encontro.

**

Olhei para trás disfarçadamente e voltei a encará-la. Ela não sabia por que eu
estava pedindo aquilo, mas, mesmo assim, se dispunha a me ajudar. Talvez
essa garota não fosse só as belas pernas que tinha, pensei. Quem sabe ela
não poderia realmente me ajudar se falasse com o seu amigo rico?
Sorri quando ela parou o que estava falando pra esperar que eu respondesse
e, educadamente, acenei com a cabeça. Não podia me dispersar agora. Não
hoje quando eu sabia que finalmente iria conseguir ajuda.
Peguei em sua mão, a puxei para a moto e avisei enquanto ouvia o ronco do
motor.
- É melhor se segurar.

**

Os fatos recentes me conduziram ao meio desta encruzilhada. Eu tenho quatro


caminhos, sendo que um é o caminho que me trouxe até aqui. E voltar atrás
não é algo que eu possa fazer.
Procuro desesperadamente por outras saídas, outros caminhos, mas eu só
consigo ver o pequeno bar nessa rua mal iluminada. Ele me pediu ajuda e, por
mais que tenha algo nele que me tire a paz, eu não conseguiria recusar.
Novamente eu olho o bar, sua localização, as pessoas rindo e falando
exageradamente. Voltar atrás, como eu disse, não é uma opção. E sei que
apenas um desses três caminhos me foi reservado.
O caminho à minha direita – seguro, suave, cheio de cores e vida. O tipo de
caminho que te garante felicidade eterna. O caminho à minha esquerda –
inconstante, tem curvas suntuosas, declives e pedras soltas. Um caminho
perigoso e, definitivamente, o mais sedutor. O caminho a minha frente, por
mais que eu tenha medo dele, poderia sim ser um caminho a percorrer. O
problema é que este caminho é escuro, eu não posso determinar meus passos.
É o tipo de caminho em que cada passo, por mais que seja simples e
irrelevante, pode ser um passo em falso.

**
Confronto ▪ Capítulo I

Peguei meu vestido na loja assim que acordei. Todo o meu dia foi programado
com antecedência e por incrível que pareça, eu malmente tive tempo de ligar
para os meus pais avisando que não dormiria em casa esta noite.
Economizei o máximo que pude numa tentativa tosca de comprar um vestido
condizente. Todo o meu equilíbrio e toda a minha habilidade com as sapatilhas
seriam postos à prova. Eu não poderia errar; não esta noite.

Marco sempre fora um grande amigo. Confesso a minha fraqueza ao pensar


que ele poderia ser como os outros rapazes que se aproximam buscando algo
que eu não tenho a oferecer. Mas ele é diferente, é sutil. Seus instintos
masculinos ficam numa faixa aceitável, eu não costumo me aborrecer com
seus beijos ou abraços, muito menos com a sua leve mão que, vez ou outra,
insiste em repousar na minha cintura.
Os pais de Marco declararam guerra à nossa amizade, sua mãe
escancaradamente tomou a posição de general nesta batalha sem regras ou
honra. O único objetivo do inimigo? Manter-me longe.

Acreditam que não sou digna do filho rico e bem sucedido que eles possuem.
Nunca passou na cabeça deles que nós dois verdadeiramente somos amigos?
Eu costumava me frustrar quando era convidada a comparecer nas inúmeras
reuniões que a Srª Margareth promovia na tentativa de encontrar a mulher ideal
para Marco. Sentia-me frustrada por ser mal compreendida e por saber que ela
não fazia idéia de que eu não era o tipo de garota que ela desejava. Eu não
tinha dinheiro como continuo não tendo.

Há muito tempo essa realidade não me incomoda; eu fui criada da melhor


maneira que meus pais conseguiram. Eles me deram muito mais do que
viagens à Paris. Eu tenho orgulho do que me tornei e dos princípios que
adquiri. Não tenho dúvida de que Marco considera todas as investidas de sua
mãe como superfluidade e por isso somos amigos. Eu não trairia a mim mesma
pelo dinheiro que ele possui e ele não tentaria jamais mudar quem sou. Como
um pacto de sangue inquebrável, sem professar palavra alguma, juramos
fidelidade eterna. Ele jurou-me proteção e, em troca, eu só pude jurar estar
sempre presente quando necessário. Eu não tenho muitas coisas para dar, ele
sabe disso.

Todos esperam por esta noite – a formatura de medicina do Marcos.


Esta noite não será apenas festa, ela será revelação. Não estou sendo
presunçosa. Mas é chegada a hora. Marco desceu todos os degraus da
hierarquia que nos separavam, quebrou todos os muros pelo qual havia sido
cercado desde o seu nascimento e, como uma criança indolente que
desobedece às severas ordens dos pais, ele me trouxe até aqui. Nem
Shakespeare poderia prever este momento. Apenas encontrei em mim uma
forma de retribuir. Nesta noite, o espetáculo será meu e, assim como eu fui por
21 anos, nesta noite ele será o espectador.

Peguei em cima da cama a última partitura que faltava. Arrumei cada página
como se arrumasse o cabelo dos anjos. Fio por fio, tom por tom. Eu nunca
havia mexido em meus longos cabelos vermelho que herdei da minha bisavó
paterna, nunca experimentei cortá-los em mãos que não fosse as da minha
mãe. Esta noite exigiu mudanças e eu fui radical quanto a elas.

Coloquei a caixa que contém o vestido e o par de sapatos nos braços e desci
as escadas do 3º andar até o térreo. Marco fez questão que eu me arrumasse
em sua casa e por mais que argumentasse, eu não consegui escapar do efeito
que seus olhos verdes exercem sobre mim.
E aqui estou na portaria do meu prédio esperando um motorista que custa a
chegar.

**

Pela primeira vez em anos estou de volta à antiga casa da família Delinsky no
centro da cidade. Não tenho lembranças muito boas desse lugar. Foi aqui que
meu velho avô Julian morreu. Bom homem! Não é estranho que me lembre
dele hoje no dia da minha formatura já que foi alguém que fez muito por mim
em matéria de caráter e economicamente também. Foi um escândalo absurdo
quando seu testamento foi aberto, ele havia deixado toda sua herança em
dinheiro e imóveis para mim. Para meu pai e seus irmãos deixou apenas os
negócios da família. Quando completei nove anos, ele me fez prometer que eu
seria diferente de todos, me formaria médico e trabalharia salvando vidas.
Irônico isso. Hoje eu realizaria meu grande sonho e o dele.

Para mim, não foi muito complicado fazer o que ele pediu. Sempre fui
apaixonado pela medicina e, como ela poderia, ou não, fazer de nós pessoas
melhores, sempre vi os médicos como uma espécie de heróis.

Eu estava parado no meio do salão principal na mansão Delinsky, tudo parecia


exatamente como da última vez em que estive aqui. Naquela ocasião, minha
mãe promovera uma grande festa para comemorar a chegada da carta de
aceitação da melhor faculdade da cidade já que eu havia sido aceito com
honras em função das minhas boas notas.

Afastei as memórias da cabeça. A sala era espaçosa, melhor que qualquer


salão de festa que pudesse existir na cidade. Jéssica, uma das minhas colegas
de faculdade que já esteve de visita na casa, pensou que esse seria o melhor
lugar para a cerimônia de formatura e a comemoração que viria em seguida
então, mesmo a contragosto, não quis ir contra afinal, todos da turma estavam
de acordo.

- Querido? Oh, não acredito que está aqui – Margareth veio em minha direção.
Estava elegante em seu salto fino e terninho social. Exatamente como da
última vez em que a vi.

- Mãe você está muito elegante. Como sempre, aliás. - Ela me deu um abraço
e eu mal a toquei. Havia aprendido com o tempo que amarrotar as roupas da
minha mãe poderia causar uma tempestade.
- Marco, querido, seu terno chegou há cinco minutos e já está sobre a cama em
seu quarto.
- Meu antigo quarto?
- Não, meu bem, eu e seu pai decidimos que, já que seu avô deixou essa
propriedade para você, o quarto que era dele lhe seria mais confortável e
apropriado.
- Mãe... Sabe que essa nunca será minha casa. Peça pra Beth colocar o meu
terno no meu antigo quarto.
- Marco, querido, pare de tratar os funcionários da casa como alguém da
família! Não acho necessário pedir para Beatriz colocar seu terno em lugar
algum. Seu pai decidiu dar o quarto de seu avô para você, então ficará onde
ele desejar.
- Certo.

Como a minha experiência, discutir uma ordem do meu pai com minha mãe ao
seu lado era perda de tempo. Ela sempre acatava todas as suas vontades,
então resolvi ir eu mesmo pegar o meu terno e me dirigir a meu antigo quarto.
Não me demorei muito no quarto do meu avô porque não gostava muito de
estar lá, assim como ele também não gostava que eu adentrasse os seus
aposentos.

Chegando ao meu antigo quarto, me senti um pouco mais confortável. As


coisas continuavam exatamente como deixei e isso tornava o lugar familiar.
Coloquei os dois ternos sobre a cama. Pelo visto minha mãe não havia
reparado que chegaram dois ternos, o que é uma sorte, se passasse pela
cabeça dela que eu e Lívia saímos para escolher um terno para formatura, sem
dúvidas ela ficaria muito furiosa. Margareth achava que todos esses trabalhos
com ternos e atividades de casa eram suas obrigações. Ela ainda não aceitava
o fato de eu ter saído de casa há mais ou menos cinco anos.

Tirei os dois ternos do embrulho. Sem dúvidas o que eu e Lívia escolhemos


tinha muito mais a ver com a minha personalidade. Lembrei do dia em que ela
chegou à faculdade confusa e sozinha. Jamais havia sentido tanta afinidade
com alguém e ela parecia ter sido feita pra estar ao meu lado. As pessoas que
me rodeavam geralmente eram falsas e interessadas na minha posição social
ou na minha fortuna.

Lívia não, ela parecia apenas precisar de proteção e é com muito prazer que
tenho lhe oferecido isso desde então. Há mais ou menos uma semana, ela foi
ao meu encontro com o olhar assustado de sempre e ao entrar no meu prédio -
ela tinha livre acesso a qualquer lugar que me pertencesse – senti a tensão
que emanava dela. Sempre me surpreendo quando ela vai até a minha casa
porque geralmente ela não gosta muito de ficar sozinha comigo. Acho que não
é algo particular. Tem a ver com homens em geral. Ela está sempre confusa
quando me aproximo mesmo sabendo que entre nós é amizade e nada mais e
que eu jamais lhe faria mal; não a ela.

Fomos escolher meu terno em uma loja da cidade. Ela estava sorridente e me
fazia trocar de terno a cada segundo dizendo que todos ficavam bem em mim e
cada vez que eu experimentava um diferente ela ficava ainda mais encantada.
Depois de horas ela conseguiu achar o que chamou de perfeito, então fui até o
vestuário e coloquei um terno escuro com um corte moderno e sem gravata.
Dei uma olhada no espelho e percebi que ela tinha acertado na escolha. Eu
estava realmente me sentindo digno de pegar meu diploma de médico.

Ajeitei a calça do terno e sai para que Lívia desse uma olhada. Confesso que
jamais tinha visto ela me olhar daquele jeito e, pela primeira vez na vida, me
senti envergonhado. Isso é tão raro que a palavra parece estranha só de
pensar. Ela me olhava séria, sem piscar e, sem seu lindo sorriso, seus olhos
castanhos pareciam mais intensos. Não era algo que pudesse ser comparado a
outras mulheres ou à maneira que me olhavam. Fiquei uns minutos esperando
ela dizer alguma coisa, mas as palavras não foram ditas, então resolvi
perguntar o que ela achava, mas o silêncio continuou.
Quando estava quase voltando para o vestuário, decidido a trocar de roupa, ela
disse com um sorriso.
- Não encontrei palavras para isso.
Me virei para encará-la e ela estava novamente com um brilho nos olhos e o
sorrisinho de irmã mais nova. Minha Lívia.

Voltei a olhar para os dois ternos sobre a cama e decidi que, sem dúvidas,
vestiria o que Lívia escolheu para esta noite. Passei a tarde no meu quarto
fazendo o discurso. Já que, como era de se imaginar, eu seria o orador da
turma. Nunca tive muito trabalho com falar em publico. Não era problema pra
mim e raramente achava alguém ou alguma coisa capaz de me intimidar.

Por volta das quatro da tarde liguei para um motorista particular da família e
ordenei que fosse buscar Lívia em seu apartamento às dezessete horas.
Estava tudo dentro do planejado para a noite.

Havia passado muito tempo no quarto estão resolvi dar uma olhada no salão
de festas. Sem dúvidas minha mãe e algumas das organizadoras da cerimônia
já deveriam ter preparado o salão. Mesas foram organizadas dentro e fora do
salão. Todas cuidadosamente forradas com tolhas púrpuras em detalhes
dourado. Tudo ao redor tinha essas cores. Vários arranjos de flores delicadas e
discretas eram arrumados sobre a mesa e pelo salão. Sem dúvidas uma
escolha de minha mãe, ela costuma dizer que essas eram uma das cores
imperiais e muito usadas por reis. As cadeiras eram forradas com uma fina
seda branca e havia um longo espaço no salão que estava completamente livre
para os convidados dançarem e conversarem durante a festa. Luzes se
espalhavam por toda parte e lustres elegantes derramavam luzes de todas as
cores.

De frente para as mesas e a entrada do salão estava o palco construído em um


design circular elegante e também, enfeitado de dourado e púrpura, lá havia
sido colocada uma bancada de vidro para o discurso de formatura e ao lado
estava uma mesa também de vidro com os certificados da turma.

No palco, os funcionários responsáveis pelo som equalizavam as caixas e


tomava as devidas providências como afinar instrumentos e ensaiar o
repertório minuciosamente escolhidos pelas organizadoras.
Dei uma olhadinha fora da casa e vi que o amplo jardim também estava
arrumado com flores e luzes. Passei algumas vezes por minha mãe que
caminhava para todos os lados dando ordens. Estava quase tudo pronto então
resolvi me arrumar para receber meus colegas de turma e seus convidados.

**

Eu estou nervosa, confesso. Eu já estive nesta casa uma ou duas vezes a


convite da Srª Margareth. Marco nunca soube, não havia necessidade. A mãe
dele, assim como todas as outras, apenas anseia em poder proteger seu filho
de mulheres, no caso de Marco, como eu. Garotas que não pertencem à alta
sociedade.

Beatriz, a governanta gentil e educada que os Delinsky possuem, me levou até


um quarto luxuoso para que eu pudesse me trocar.

Tomei um banho de banheira, um banho bastante demorado para quem


precisa estar pronta pontualmente às 21h00min. Mas eu precisava me acalmar
e apenas um banho quente me proporcionaria tal efeito. Vesti com delicadeza a
lingerie champanhe que escolhi pensando nesta noite; ela combinaria com o
vestido e deixaria exposto com segurança os meus ombros. Pensei em uma
maquiagem adequada, mas apenas um delineador, lápis de olho, um pouco de
blush e um leve batom rosado bastariam.

Meu maior problema era o cabelo. Eles sempre foram longos fios vermelhos e
isso me irritava. Pensei em prendê-los e deixar mechas frouxas, mas que graça
teria isso?

Encontrei no armário em cima da pia cor de rosa do banheiro uma tesoura


devidamente afiada. Separei meu cabelo descuidadamente e, sem pensar
muito, picotei-o.

Analisei o corte que fiz em meus cabelos vermelhos, todas as camadas e todo
o traço revoltado sem deixar de ter certa classe. É incrível a capacidade que
algumas pessoas têm em cortar cabelos e por mais que eu não seja uma
delas, fiquei agradecida com o resultado. Prometi a mim mudanças e essa
noite marcaria o início de uma nova fase.
Só faltava agora o toque final: o vestido.

Quando fui à loja de roupas esta manhã, a mais cara de Lakewood, não
imaginaria que um rabisco feito por minha vizinha e colega de classe se
transformaria em algo esplêndido, tão surreal comparado a quem sou.

Delicadamente o vesti. Arrumei-o em cada centímetro do corpo. Coloquei o


salto ajustando as tiras no tornozelo. Olhei-me no espelho e por um breve
segundo me permitir sonhar com um futuro melhor, talvez. Mas me vi em algum
momento da minha vida sendo feliz. Verdadeiramente. Observei cada pedra
que haviam sido pregadas no vestido e o formato que ele ganhou em meu
corpo e todo o caimento em seda branco gelo até encontrar meus pés. È
quando me olho no espelho que vejo o quanto eu sou a paisagem errada desse
cenário, mas já não posso voltar atrás. Deixando a resignação de lado, reuni
toda a confiança e fui em direção daquilo que poderia ser o meu show de
horrores ou o meu momento cara a cara com verdade.

Marco me esperava no final da escada. Eu acertara no smoking. Ele estava


mais arrumado do que de costume, mas como o mesmo sorriso indolente, com
o mesmo olhar perturbador. Não notei as outras pessoas enquanto descia os
degraus.

Surpreendentemente, aquele homem me esperava e não havia em sua face


qualquer vestígio de arrependimento por me ver ali.

Nos últimos degraus, como num filme antigo, ele me abriu um sorriso lunar.
Completamente cheio. Um sorriso extasiado.

Ele me estendeu a mão e como era de costume, segurei-a sem hesitar.

Puxou-me educadamente até que nossos corpos se encontraram, me


congelando no lugar. Ficar perto demais de um homem não era algo que eu
estivesse acostumada, as minhas experiências anteriores haviam sido
dolorosas e eu não pretendia repeti-las. Sorri disfarçando o constrangimento,
procurei algo para beber e só depois pude notar algo além do obvio em sues
olhos verdes.
Marco permanecia com a mesma expressão extasiada, mas a intensidade do
brilho que vi em seus olhos na escada diminuíra. O brilho deu lugar a uma ruga
de preocupação; por mais que mínina, ela agora estava ali. Qualquer que tenha
sido o motivo para a felicidade repentina já não existia.

Ele me conduziu por todo o salão. Apresentou-me formalmente seus colegas


de classe, já que todos eles eu conhecia das histórias que Marco costumava
contar. Alguns deles eu conheci no meu primeiro dia na faculdade Hampton, a
mesma faculdade de Marco. Foi neste dia que o conheci também.

A banda toca uma música solene, mas encantadoramente convidativa.


Algumas pessoas tomam seus drinks e conversam sobre os hospitais em que
irão trabalhar ou as especializações que desejam fazer. Sentei-me eufórica
numa mesa perto ao bar. Está quase na hora do discurso. Marco levanta-me
com um rodopio e três passos de uma valsa estranha mostrando-me o caminho
do piano. Chegou a hora do meu show.

Beatriz havia prometido levar a minha partitura para o salão de festas. Eu havia
decorado cada nota, cada escala musical, cada segundo a mais em
determinada tecla. Mas não abri mão da partitura, eu não queria falhas e era
melhor prevenir.

Sentei elegantemente em frente ao piano notando que algumas pessoas


começaram a perceber minha atitude e se aproximaram a fim de ouvir melhor.
Passei o dedo pelo teclado exposto e me sentir percorrer o corpo do homem
que um dia amei da mesma forma que fiz em nossa primeira noite.
Passei o dedo lentamente sobre o teclado tentando resgatar o jeito como ele
alisava meu rosto. Com ele sempre fora amor e nunca apenas sexo, ao menos
para mim. Agora tudo isso é passado.

Não me permiti mais detalhes, apenas toquei a primeira nota e deixei o resto
fluir.
Inicialmente uma canção suave. Se eu puder descrevê-la em palavras, eu diria
que é como tomar sorvete. Você pode sentir o gosto e saborear a fruta, mas
depois de tudo, nenhum rastro da sobremesa pode ser encontrado na boca.
Essa parte revelava o meu estado de espírito antes de conseguir a bolsa para
o curso de música clássica na Hampton. Minha vida era vibrante, mas perdia-
se com correr das horas. Simplesmente, uma vida vaga. Permiti que a música
ganhasse um tom trágico sem ser desesperador. Marco havia provocado
reações em mim que ele nunca foi capaz de imaginar e que agora já não
importavam. Apenas mereceram nota e por isso expressei-as. Preparando-me
para o término, toquei notas agudas, finas e adocicadas. Notas expressivas e
notas escorregadias como os musgos da minha antiga casa. Toquei notas
sombrias encobertas por tons pastéis, amenas. E no calor dos olhares, na falta
de som da platéia, concentrei-me no fim.

Deixei minhas melhores notas para o final. Elevei o Dó a uma oitava ainda
maior que o costume e terminando com notas furiosas e ardentes,
acompanhadas de notas tão vivas quanto o amor real. O Lá e o Ré são
meninos quando próximos ao Lá e Ré maior.

Marco é sempre menino quando está comigo, sempre um amigo. Não haveria
outro final para esta canção, pensei. Levanto-me discretamente, sem exageros
e recebo os aplausos dos convidados ao redor. Encaro as expressões
espantadas das garotas que eu sei; já estiveram na cama de Marco. Encaro o
silêncio dos garotos que tentaram, um dia, passar a mão em mim. E sem medo
algum enfrento o meu amigo, agora sério, que ficou parado como estátua ao
meu lado no piano. Isso não era normal, Marco não era assim. Ele me olhou
acusadoramente e se afastou indo em direção ao palco circular montado em
seu salão de festa. Antes de tentar decifrá-lo, percebo em meio ao público
fascinado um olhar fuzilador, um olhar que tenta me rasgar ao meio. Mas nesta
noite Margareth não irá me intimidar.

Deixando o piano de lado, viro-me para ouvir aquilo que será o discurso de
Marco.

**

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