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Dirio nfimo 24

H fantasmas cuja vida nunca se revelou que lhes foi colhida ainda antes de
serem o que se sonhou. No tm lngua que saiba sabor, nem som que pule
silncio afora, nem ao que se alinhe inteno, nem palavra que trafegue
algum senso. Desde que so os fantasmas que so, coseu-se-lhes a boca
para que nem grunhido sem a lngua arrancada soltassem aos ouvidos
extirpados que no conduzem mais sons. Nos olhos, antes que acordassem,
lanou-se-lhes um coma infindo para que ss sonhassem ser real o desejo
de no deixarem de existir. Assim, conversam, falam, ouvem, veem e at
escrevem que se comunicam, e at compartilham felizes o resultado de
suas mal sabidas orgacas iluses. Eles escrevem, eles editam, eles leem.
O que guarda um livro, guardava um corao que se abriu em palavras
quaisquer que possveis: mortas, depositaram seus corpos em linha torta
soterradas sem voz em aguardo.
O que guarda um autor, resguarda afastada a iluso de que bastam corpos
mortos em linhas tortas para de si doar o que quer salvar de fim certo,
pedao falso seu, cadver daquelas horas e s, tumba lacrada incgnita que
pactua magia pra no mais perecer vida.
O que guarda um leitor, aguarda erguer das covas, das linhas tortas, os
corpos secos, soprar-lhes hlito seu, que lhes traduza vida, que nunca
tiveram, e por fora mstica do trato opaco porm de sangue, traz-las som,
lugar, espao e recheio alheio e faz-las crer que so filhas queridas paridas
e que agora, graas a si, vivem acolhidas em tero novo.
O que guarda um texto, conserva consigo filhas impossveis, natimortas no
engano dessabido e ancestral que as conjuraram angelicais, insuspeitos
demnios evocados que de seus senhores s portam o trao da vontade
nunca realizada de revelar para eternizar a histria das carnes que
conhecedoras de si, em breve, diro a nica palavra de todas, a verdadeira:
decomposio.
Num abrigo sustentado por colunas rijas, mantidas pelo ardor de sobreviver,
habita uma miragem, local de moradas altas onde os fantasmas, sem saber
da maldio em que foram gerados, assustadoramente vivem o que se diz
mundo. Ento assim; enquanto houver a vida, h fantasmas porquanto,
sem possibilidades de ser, o que sobra e a tudo inunda o delrio nica
forma de se erguer, sem nunca ter existido, no real.
Numa dessas sombras imensas, conversam absorvidos em si sem jamais
saberem seus nomes ou quem so: o louco, o profeta, o poeta, o que sonha
sem saber acordado, e eu.

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