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LUGAR COMUM NZ, pp. 135-263 homossexual - uma via nao platénica da verdade be Deleuze e a questao 1 .René Schérer “Nos somos heterossexuais estatistica ou molarmente, mas homossexuais pessoalmente, sabendo ou nao, e enfim, transexuais elementar, molecularmente”, Gilles Deleuze e Féliz Guattari, L’ Anti-Oedipe. de nossos semelhantes, oncertante: raramente descobrimos os mévei Marcel Proust, La prisonniére. Por varias vezes, a homossexualidade foi, para Gilles Deleuze, objeto privilegiado de uma pesquisa, um tema. Ela percorre e pontua sua obra inteira; ela forma como que uma sua escansio. Primeiramente Proust e les signes, de 1964, gravitando ao redor das figuras de Charlus e Albertine, depois L’Anti-Oedipe, escrito com Félix Guattari em 1972, onde ela € tomada como exemplo da irredutibilidade do desejo a sua interpretagio pela psicandlise freudiana, com a importante mas é bem mais que um exemplo”.! E ainda as variagdes comple- mentares de Mille Plateaux, cujo pivd é 0 “tornar-se mulher” (1980). Em toda a parte, o refrio de uma homossexualidade declarada ou sugerida guia as reflexGes sobre Virginia Woolf, Walt Whitman, T.E. Lawrence (Critique et Clinique, 1993), assim como o grande estudo consagrado a Francis Bacon. E, enfim, o belo prefécio, dedicado & homossexualidade militante de Guy Hocquenghem, do L’Aprés-Mai des faunes, em 1974. *G. Deleuze et Félix Guattari, L’Anti-Ocdlpe, Paris, Minuit, 1971, p. 80. 136 Ml DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL A homossexualidade sob todas as suas formas exerceu sobre Gilles Deleuze uma inegdvel atragao. Ela se faz acompanhar pela seducio, pela fascinagio mesmo de uma derivacio minoritéria, fora dos caminhos batidos e dos consensos triviais, de uma ruptura com as representagdes da opiniio comum. Ela esposa 0 curso de seu préprio pensamento. E este tiltimo, em retorno, orientou muitos homossexuais em seu ser e sua pratica, conduziu do simples fato, do estado das coisas, 4 idéia. Pois a escolha exemplar da homossexualidade como motivagio do pensamento nao é da ordem da constatagio. Ao mesmo tempo em que acolhe a homossexualidade e nela se inspira, Deleuze a critica, recusa seu conceito, 0 nome mal vindo que faz pensar no mesmo, 1d onde niio ha seniio diferenga. A homossexualidade segundo Deleuze nao é uma categoria se- xoldgica, sexologicamente analisvel. Ela transporta a outro lugar, bem além e 4 margem de sua identificagao clinica. E, se podemos dizer que ela dis: tribui, nao é certamente no sentido de que a humanidade se dividiria entre homossexuais e heterossexuais, mas na medida em que explode o “aparelho bindrio”, destréi as certezas de indentificagao, embaralha, dispersa. Ela nao é uma solugéio, mas um problema. O que ela coloca esta em ressonancia com a escritura € 0 pensamen- to contemporaneos. E o problema do tornar-se-outro, da linha que segue longe dos valores identitdrios da Cidade, dos valores masculinos da sexua- lidade. A homossexualidade descobre o plano em que esse problema se delineia; mas com a condig&o de entrar, ela também, na problematizagio, pois ela nado é somente o que acredita ser ou 0 que diz a si mesma imediatamente. Os dois versantes da afirmagao e da problematizagio so indisso- cidveis. A via indicada pela homossexualidade, a entrada da homessexuali- dade na filosofia, s6 pode comecar por uma dévida sobre sua propria existéncia. Como esta escrito no prefacio a L’Aprés-Mai des faunes, em comentério para Guy Hocquenghem: “Ninguém pode dizer: eu sou homos- sexual” ? vendo nisso uma resposta, quando se trata de uma questao. O para- doxo da homossexualidade contemporanea €, no entanto, reivindicar o * G, Hocquenghem, L’Aprés-Mai des faunes, Paris, Grasset, 1974, prefacio, p. 7. René Schérer m 137 préprio nome, fazendo com que, a0 mesmo tempo, ele signifique bem mais e bem outra coisa: “E, no fundo, para um novo estilo que a homossexuali- dade produz, hoje, enunciados que nfo se referem e nao devem se referit & prépria homossexualidade.” * Pode-se aplicar 4 homossexualidade, segundo Deleuze, esta propo- sigio de Nietzsche em Le Gai Savoir: “A vida nao é um argumento.”* Os argumentos de qualquer demonstragao, corpos, linhas, superficies, causas, efeitos, forma ¢ contetido, movimento e repouso so somente artigos de f€, eles mesmos nao demonstrados. Eles apenas constroem “um mundo no qual possamos viver”. Mas, acrescenta Nietzsche, “entre as condigdes da vida poderia figurar 0 erro”. Também a homossexualidade nado é um ‘gumento. Ela é uma via da verdade, ela é, em um sentido, “verdade”, mas 0 erro, a mentira, a dtivida sobre sua identidade Ihe sfo co-extensivos. “Mas a posi¢&o marginal do homossexual”, 1é-se ainda em Deleuze, “torna possivel e necessario que haja algo a dizer sobre 0 que no é a homossexualidade.” * Apenas sob essa condig&o, a homossexualidade inspi- ra 0 filésofo e se torna signo. 0 invélucro do signo Em que a homossexualidade excede as relagdes intersexuais? No fato de que é mais rica em signos. Os signos da homossexualidade se opdem aos da comunicagao direta, aos subentendidos do consenso da heterossexua- lidade estatistica. Pois a homossexualidade nao se diz facilmente, mesmo hoje em dia em que se proclama seu reconhecimento e aceitagdo como simples variante no comportamento sexual. Dizer “eu sou homossexual” nio é uma constatagao. Essa linguagem nao pode valer senio como provocagio ou palavra de ordem. O significante lingufstico adapta-se mal 4 homossexualidade. E pre- Id, ibid, p. 9 +F. Nietzsche, Le Gai Savoir, traduzido por Alexandre Vialatte, Paris, Gallimard, 1950, p. 121, p. 102. 5 G, Deleuze, preféicio a L’Aprés-Mai des faunes, op. cit., p. 9. 138 MM DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL i ciso substitui-lo pelo signo indicial. O homos exual se reconhece por fndices que, ao mesmo tempo, o dissimulam. O corpo, os olhares, os siléncios, as inflexdes, as posturas sao o invélucro falante de seu hieroglifo. Ele esté cercado por tais signos, ele os difunde: “Charlus, prodigioso emissor de signos”, “prodigiosa troca de signos entre Charlus e Jupien’’*. E signos enganadores, ainda por cima: “Ah! A juventude, ela confunde tudo. seria preciso refazer sua educagio, minha crianga”, diz 0 mesmo Charlus ao narrador que acredi- tava poder inferir da homossexualidade revelada de um patrio pecador a de todos 0s seus amigos’. O homossexual “nao fala, nao dissimula, ele faz sinal”, & maneira do deus do Ordculo de Delfos, segundo Herdclito: “Sem dtivida acontece um génio singular, uma alma diretora, presidindo 0 curso dos astros: assim era Charlus” § A homossexualidade, feixe, rede de signos, da portanto, 0 que pen- sat. Mas o qué? Em primeiro lugar, nfo certamente a propria homossexuali- dade, como se ela dependesse de uma interpretagdo, de uma redugiio a causas distintas e heterogéneas, buscando-Ihe uma origem, uma génese organica ou fisica, fora de sua pura manifestagaio. Pois ela s6 pode ser abordada se envolvida nos signos que produz, na complexidade dessa envoitura. Ela dé 0 que pensar na medida em que desencoraja a comunicagio clara e distinta. Sua riqueza em signos a dota de uma profundidade que nio é nada mais que sua reticéncia em relagao as convengdes da comunicacaio corrente, sobre as quais a ordem social se fundamenta. Uma profundidade superficial, lisivel nas modulagdes de uma superficie saturada, intensiva. Ela se condensa e se decifra nos signos-fndices volteando acima da mun- danidade, 4 maneira do zangio observado no patio do hotel de Guermantes, de orquidea em orquidea. A riqueza de signos do homossexual, que o transforma em objeto de escolha para o filésofo, também nada tem a ver com uma superioridade de inteligéncia. Ela estaria mais préxima da “mulher-medfocre” de que fala Proust, que enriquece 0 universo do artista mais do que o faria uma mulher “G. Deleuze, Proust et les signes, Paris, PUF, 1964, pp. 12-13. ”M. Proust, La Prisonniére. A la recherche di temps perdu, t. V, p. 80. *G. Deleuze, Proust et les signes, op. cit., p. 100. René Schérer m 139 i inteligente, pois, comenta Deleuze, ela esté proxima das matérias e das naturezas elementares: “Com a mulher-mediocre, retornamos as origens da humanidade, isto é, a0 momento em que os signos levavam vantagem sobre o contetido explicito e os hieroglifos sobre as letras”®. Riqueza do elementar. Pode-se entrever algo que vai conduzir a de Proust et les berta do “molecular” nas futuras andlises deleuzianas. Mas j4 em signes, a multiplicidade dos signos a decifrar faz do homosse- xual um ponto nodal da complexidade social. Charlus, e antes dele o Vautrin de Balzac, tocam o mais profundo, 0 mais obscuro das forgas que impul- sionam os homens. Sao reveladores nao apenas de uma verdade individual, mas da sociedade em seu conjunto. A “verdade”, alids, nfo € tradicional- mente confundida, e nao se confunde freqiientemente, ainda hoje, com a descobert de que este ou aquele “é”? E a verdade dos grupos humanos nao € uma homossexualidade primordial € néo o casal heterossexual? “Laios, o velho homossexual de grupo”, nota L’Anti-Oedipe. Verdade indissociavel das aparéncias falaciosas e cavernosa: Sempre, para quem busca a verdade, “os signos sio implicitos e os sentidos enrolados”,"” e a homossexualidade € seu centro, seu lar. B por af que ela se faz problema, ou melhor, que cla toca o problema mesmo da filosofia: a relagdo do ser com a aparéncia e os signos, 0 envolvimento e 0 desenvolvimento da idéia. Deleuze é 0 nico entre todos os filésofos contemporaneos - exceto Michel Foucault, por outras razées, embora corram juntas - a ter dado A homossexualidade esse lugar “filosdfico”. Nao 0 de um objeto submetido ao estudo de um pensamento estranho a ele, mas o de operador e, se podemos dizé-lo, de sujeito. Pois, embora ela mesma tenha que se submeter a uma conceitualizagao, ela entra no pensamento como “parte integrante”. Ela o enquadra & sua maneira, na inflexiio do sistema de signos que ela produz e com os quais se envolve. Ela assume assim uma funciio de verdade. Apenas Deleuze... Sartre, no entanto, a entreviu - inserida, porém, "1d, ibid. p. 31. "1d, Ibid., p. 122. 140 Ml DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEKUAL no vai e vem redutor do jogo da consciéncia consigo mesma, como “mé-f6": “Mesmo reconhecendo sua inclinagfo homossexual, mesmo confessando uma por uma cada falta singular que cometeu, ele se recusa com todas as suas forcas a se considerar como um pederasta”". O homossexual joga com o “ser” desliza um “em si” sob o “para si” da “realidade humana” com sua transcendéncia, constrangido, como Genet, nos “torniquetes do ser e da aparéncia””. Assim, a homossexualidade passava, é certo, do empirico ao transcendental; 0 pederasta adquiria uma fungao paradigmdtica, mas men- tirosa, ao prego de sua autenticidade. E por outro lado, a psicandlise exis- tencial de Sartre o demonstra, a simples transposig’o do inconsciente para a consciéncia permitia a retomada de todos os pressupostos do inconsciente freudiano. Qualquer que seja a beleza de suas aplicagdes a Genet © a Flaubert, ela permanece sob a dependéncia das culpabilizacées edipianas. Completamente oposta, a concepgio de Deleuze vai liberar o homossexual da ma-fé e da culpa. A homossexualidade estd, mais que a heterossexualidade, no caminho do verdadeiro. O que ndo impede que, entre as condigdes de sua verdade, nao possa, como diz Nietzsche, “figurar 0 erro”. Perversao versus conversao Um paréntese, um desvio. A homossexualidade, sem divida, fez-se rara entre os Modernos: mas entre os gregos? Ela nao é contemporfnea da filosofia, em seu nascimento? Deleuze nao estaria apenas reatando, no fundo, com uma tradig&o que, com Platio, levava a homossexualidade ao plano de filosofia? Questiio capciosa, mas que permite sublinhar as diferengas. A homossexualidade em Platio - trata-se realmente dela? Ver o estudo de K.J. Dover" - é uma pederastia pedagégica. Como Michel Foucault demonstrou de maneira decisiva, a filosofia do Banquete se encarrega da pederastia para "EP, Sartre, L’éire et le Néant, Paris, Gallimard, 1976, p. 100. "JP. Sartre, Saint Genet comédien et martyr, Patis, Gallimard, 1952, p. 409. "KJ. Dover, Homosexualité grecque, La Pensée sauvage, 1982. René Schérer m 141 i converté-la & verdade,"' associando 0 amante e 0 amado em uma busca ascensional da Idéia. Deleuze, referindo-se a Foucault, vé no amor grego pelos rapazes a “inflexio de subjetivacio” que dirige para o individuo as forgas exteriores da cidade, para leva-lo a governar-se a si proprio." A homossexualidade que 0 atrai, que ele leva ao plano da filosofia, nao é a homossexualidade grega. E, nomeada segundo Proust, “a homosse- xualidade judia” Ao contrario da erética platénica luminosa, de signifi- cag6es espirituais explicitas, esta Ultima é subterranea, obscura: ela toca, porém, as profundidades da vida, esta ancorada nos corpos ao ponto de oculté-los em um panasexualismo césmico. Toda a andlise deleuziana de Proust gravita em torno de duas proposig6es: “a homossexualidade é a verdade do amor’” e “Proust é platonico”*, $6 que esse platonismo, captado pelo jogo dos signos, vai derivar em dire¢do as “esséncias obscuras”, fora dos caminhos do logos, no mundo do pathos. Isto €, no oposto do mundo da “expresso analitica e do pensamento racional””. A homossexualidade segue esse movimento. Nao é mais aquela, idealizante, da pedagogia e da conversao, mas a da perversao, da desordem. Para melhor compreender como ela pode se aliar a filosofia, vamos aproximar essa oposicio das “tres imagens de filésofos” expostas em Logiques du sens”. A primeira imagem, ascensional, é plat6nica. Ela faz do filésofo um ser das alturas; e também das quedas concomitantes: filosofia idealizante de tensao voluntarista, clinicamente associdvel & uma psicose manfaco- depressiva. A segunda imagem, ao mesmo tempo pré-socratica e nietzschiana, é a do pensador das forgas profundas. Ao invés de deixar a caverna, ela a "M. Foucault, L’Usage des plaisirs, Paris, Gallimard, 1984, p. 261. "G, Deleuze, Foucault, Paris, Minuit, 1986, p. 110. “G, Deleuze, Proust et les signes, op.cit., p. 129. " Id,, Ibid., p. 99. "Id., Ibid., p. 122 "Id., Ibid., p. 131; todo 0 capitulo “Antilogos”, ® G. Deleuze, Logique du sens, Paris, Minuit, 1969, p. 152, 18 série. DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL, explora, enraiza-se em sua terra. Assim, o livro de Proust trazia a luz as profundezas encaixadas das duas homossexualidades do homem e da mulher como forgas secretas do movimento social. As atragdes que niio se originam dos amores intersexuais reconhecidos e em sua espiritualizagao ascensional puxam para baixo. Ora, é exatamente af, em Proust, que residem as esséncias: “Pois as esséncias vivem nas zonas obscuras, nfo nas regides temperadas do claro e¢ do distinto. Elas estio envolvidas naquilo que forma o pensamento”". O platonismo de Proust é, portanto, um platonismo invertido. Ele faz apelo, nao ao intelecto, mas ao encontro involuntario, 4 sensibilidade. Ele desenha uma “nova imagem do pensamento”. Ele é platénico apenas porque o proprio Plat&éo se aproxima das idéias pré-socraticas: pelo movimento do infinito, o elementar, o delirio da mania. Delirio da profundidade sem fundo cavada nos corpos e em seu desejo. Em Logique du sens®, & a filosofia colocada sob 0 signo da disper- sao, de uma esquizofrenia que propée a dupla face de um Dioniso impassivel e glorioso e do Dioniso desmembrado. Nessa esquizofrenia filoséfica localiza- se 0 homossexual, e em seu corpo e em sua alma misturam-se 6dio ¢ amor, derrisio e gléria, o corpo despedagado e 0 corpo glorioso, “sem érgaos”. O homossexual é o ser da profundidade impenetravel. Toda oferta, no entanto, em sua superficialidade aparente. A filosofia das profundidades é, de fato, estreitamente ligada & das aparéncias, 4 recusa dos mundos-de-fundo, desse mundo “verdadeiro” da idéia e do em si. Na andlise deleuziana, é Nietzsche - grande pensador dos pré-socriticos, retomando-as em um pensamento do futuro - 0 filésofo das superficies, da profundidade dada nas vibragoes e nas diferengas de intensidade das super- ficies: “Os gregos eram profundos A forga de serem superficiais””’, célebre formula-chave que convém igualmente ao homossexual, vitima freqiiente da derrisao em virtude, precisamente, de sua superficialidade. E € preciso acres- * Id., Ibid., p. 122. ® G, Deleuze, Logique du sens, op. cit., p. 154. » F Nietzsche, Contre Wagner, par. 2. LUGAR COMUM NZ, pp. 135-263 homossexual - uma via nao platénica da verdade be Deleuze e a questao 1 .René Schérer “Nos somos heterossexuais estatistica ou molarmente, mas homossexuais pessoalmente, sabendo ou nao, e enfim, transexuais elementar, molecularmente”, Gilles Deleuze e Féliz Guattari, L’ Anti-Oedipe. de nossos semelhantes, oncertante: raramente descobrimos os mévei Marcel Proust, La prisonniére. Por varias vezes, a homossexualidade foi, para Gilles Deleuze, objeto privilegiado de uma pesquisa, um tema. Ela percorre e pontua sua obra inteira; ela forma como que uma sua escansio. Primeiramente Proust e les signes, de 1964, gravitando ao redor das figuras de Charlus e Albertine, depois L’Anti-Oedipe, escrito com Félix Guattari em 1972, onde ela € tomada como exemplo da irredutibilidade do desejo a sua interpretagio pela psicandlise freudiana, com a importante mas é bem mais que um exemplo”.! E ainda as variagdes comple- mentares de Mille Plateaux, cujo pivd é 0 “tornar-se mulher” (1980). Em toda a parte, o refrio de uma homossexualidade declarada ou sugerida guia as reflexGes sobre Virginia Woolf, Walt Whitman, T.E. Lawrence (Critique et Clinique, 1993), assim como o grande estudo consagrado a Francis Bacon. E, enfim, o belo prefécio, dedicado & homossexualidade militante de Guy Hocquenghem, do L’Aprés-Mai des faunes, em 1974. *G. Deleuze et Félix Guattari, L’Anti-Ocdlpe, Paris, Minuit, 1971, p. 80. 136 Ml DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL A homossexualidade sob todas as suas formas exerceu sobre Gilles Deleuze uma inegdvel atragao. Ela se faz acompanhar pela seducio, pela fascinagio mesmo de uma derivacio minoritéria, fora dos caminhos batidos e dos consensos triviais, de uma ruptura com as representagdes da opiniio comum. Ela esposa 0 curso de seu préprio pensamento. E este tiltimo, em retorno, orientou muitos homossexuais em seu ser e sua pratica, conduziu do simples fato, do estado das coisas, 4 idéia. Pois a escolha exemplar da homossexualidade como motivagio do pensamento nao é da ordem da constatagio. Ao mesmo tempo em que acolhe a homossexualidade e nela se inspira, Deleuze a critica, recusa seu conceito, 0 nome mal vindo que faz pensar no mesmo, 1d onde niio ha seniio diferenga. A homossexualidade segundo Deleuze nao é uma categoria se- xoldgica, sexologicamente analisvel. Ela transporta a outro lugar, bem além e 4 margem de sua identificagao clinica. E, se podemos dizer que ela dis: tribui, nao é certamente no sentido de que a humanidade se dividiria entre homossexuais e heterossexuais, mas na medida em que explode o “aparelho bindrio”, destréi as certezas de indentificagao, embaralha, dispersa. Ela nao é uma solugéio, mas um problema. O que ela coloca esta em ressonancia com a escritura € 0 pensamen- to contemporaneos. E o problema do tornar-se-outro, da linha que segue longe dos valores identitdrios da Cidade, dos valores masculinos da sexua- lidade. A homossexualidade descobre o plano em que esse problema se delineia; mas com a condig&o de entrar, ela também, na problematizagio, pois ela nado é somente o que acredita ser ou 0 que diz a si mesma imediatamente. Os dois versantes da afirmagao e da problematizagio so indisso- cidveis. A via indicada pela homossexualidade, a entrada da homessexuali- dade na filosofia, s6 pode comecar por uma dévida sobre sua propria existéncia. Como esta escrito no prefacio a L’Aprés-Mai des faunes, em comentério para Guy Hocquenghem: “Ninguém pode dizer: eu sou homos- sexual” ? vendo nisso uma resposta, quando se trata de uma questao. O para- doxo da homossexualidade contemporanea €, no entanto, reivindicar o * G, Hocquenghem, L’Aprés-Mai des faunes, Paris, Grasset, 1974, prefacio, p. 7. René Schérer m 137 préprio nome, fazendo com que, a0 mesmo tempo, ele signifique bem mais e bem outra coisa: “E, no fundo, para um novo estilo que a homossexuali- dade produz, hoje, enunciados que nfo se referem e nao devem se referit & prépria homossexualidade.” * Pode-se aplicar 4 homossexualidade, segundo Deleuze, esta propo- sigio de Nietzsche em Le Gai Savoir: “A vida nao é um argumento.”* Os argumentos de qualquer demonstragao, corpos, linhas, superficies, causas, efeitos, forma ¢ contetido, movimento e repouso so somente artigos de f€, eles mesmos nao demonstrados. Eles apenas constroem “um mundo no qual possamos viver”. Mas, acrescenta Nietzsche, “entre as condigdes da vida poderia figurar 0 erro”. Também a homossexualidade nado é um ‘gumento. Ela é uma via da verdade, ela é, em um sentido, “verdade”, mas 0 erro, a mentira, a dtivida sobre sua identidade Ihe sfo co-extensivos. “Mas a posi¢&o marginal do homossexual”, 1é-se ainda em Deleuze, “torna possivel e necessario que haja algo a dizer sobre 0 que no é a homossexualidade.” * Apenas sob essa condig&o, a homossexualidade inspi- ra 0 filésofo e se torna signo. 0 invélucro do signo Em que a homossexualidade excede as relagdes intersexuais? No fato de que é mais rica em signos. Os signos da homossexualidade se opdem aos da comunicagao direta, aos subentendidos do consenso da heterossexua- lidade estatistica. Pois a homossexualidade nao se diz facilmente, mesmo hoje em dia em que se proclama seu reconhecimento e aceitagdo como simples variante no comportamento sexual. Dizer “eu sou homossexual” nio é uma constatagao. Essa linguagem nao pode valer senio como provocagio ou palavra de ordem. O significante lingufstico adapta-se mal 4 homossexualidade. E pre- Id, ibid, p. 9 +F. Nietzsche, Le Gai Savoir, traduzido por Alexandre Vialatte, Paris, Gallimard, 1950, p. 121, p. 102. 5 G, Deleuze, preféicio a L’Aprés-Mai des faunes, op. cit., p. 9. 138 MM DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL i ciso substitui-lo pelo signo indicial. O homos exual se reconhece por fndices que, ao mesmo tempo, o dissimulam. O corpo, os olhares, os siléncios, as inflexdes, as posturas sao o invélucro falante de seu hieroglifo. Ele esté cercado por tais signos, ele os difunde: “Charlus, prodigioso emissor de signos”, “prodigiosa troca de signos entre Charlus e Jupien’’*. E signos enganadores, ainda por cima: “Ah! A juventude, ela confunde tudo. seria preciso refazer sua educagio, minha crianga”, diz 0 mesmo Charlus ao narrador que acredi- tava poder inferir da homossexualidade revelada de um patrio pecador a de todos 0s seus amigos’. O homossexual “nao fala, nao dissimula, ele faz sinal”, & maneira do deus do Ordculo de Delfos, segundo Herdclito: “Sem dtivida acontece um génio singular, uma alma diretora, presidindo 0 curso dos astros: assim era Charlus” § A homossexualidade, feixe, rede de signos, da portanto, 0 que pen- sat. Mas o qué? Em primeiro lugar, nfo certamente a propria homossexuali- dade, como se ela dependesse de uma interpretagdo, de uma redugiio a causas distintas e heterogéneas, buscando-Ihe uma origem, uma génese organica ou fisica, fora de sua pura manifestagaio. Pois ela s6 pode ser abordada se envolvida nos signos que produz, na complexidade dessa envoitura. Ela dé 0 que pensar na medida em que desencoraja a comunicagio clara e distinta. Sua riqueza em signos a dota de uma profundidade que nio é nada mais que sua reticéncia em relagao as convengdes da comunicacaio corrente, sobre as quais a ordem social se fundamenta. Uma profundidade superficial, lisivel nas modulagdes de uma superficie saturada, intensiva. Ela se condensa e se decifra nos signos-fndices volteando acima da mun- danidade, 4 maneira do zangio observado no patio do hotel de Guermantes, de orquidea em orquidea. A riqueza de signos do homossexual, que o transforma em objeto de escolha para o filésofo, também nada tem a ver com uma superioridade de inteligéncia. Ela estaria mais préxima da “mulher-medfocre” de que fala Proust, que enriquece 0 universo do artista mais do que o faria uma mulher “G. Deleuze, Proust et les signes, Paris, PUF, 1964, pp. 12-13. ”M. Proust, La Prisonniére. A la recherche di temps perdu, t. V, p. 80. *G. Deleuze, Proust et les signes, op. cit., p. 100. René Schérer m 139 i inteligente, pois, comenta Deleuze, ela esté proxima das matérias e das naturezas elementares: “Com a mulher-mediocre, retornamos as origens da humanidade, isto é, a0 momento em que os signos levavam vantagem sobre o contetido explicito e os hieroglifos sobre as letras”®. Riqueza do elementar. Pode-se entrever algo que vai conduzir a de Proust et les berta do “molecular” nas futuras andlises deleuzianas. Mas j4 em signes, a multiplicidade dos signos a decifrar faz do homosse- xual um ponto nodal da complexidade social. Charlus, e antes dele o Vautrin de Balzac, tocam o mais profundo, 0 mais obscuro das forgas que impul- sionam os homens. Sao reveladores nao apenas de uma verdade individual, mas da sociedade em seu conjunto. A “verdade”, alids, nfo € tradicional- mente confundida, e nao se confunde freqiientemente, ainda hoje, com a descobert de que este ou aquele “é”? E a verdade dos grupos humanos nao € uma homossexualidade primordial € néo o casal heterossexual? “Laios, o velho homossexual de grupo”, nota L’Anti-Oedipe. Verdade indissociavel das aparéncias falaciosas e cavernosa: Sempre, para quem busca a verdade, “os signos sio implicitos e os sentidos enrolados”,"” e a homossexualidade € seu centro, seu lar. B por af que ela se faz problema, ou melhor, que cla toca o problema mesmo da filosofia: a relagdo do ser com a aparéncia e os signos, 0 envolvimento e 0 desenvolvimento da idéia. Deleuze é 0 nico entre todos os filésofos contemporaneos - exceto Michel Foucault, por outras razées, embora corram juntas - a ter dado A homossexualidade esse lugar “filosdfico”. Nao 0 de um objeto submetido ao estudo de um pensamento estranho a ele, mas o de operador e, se podemos dizé-lo, de sujeito. Pois, embora ela mesma tenha que se submeter a uma conceitualizagao, ela entra no pensamento como “parte integrante”. Ela o enquadra & sua maneira, na inflexiio do sistema de signos que ela produz e com os quais se envolve. Ela assume assim uma funciio de verdade. Apenas Deleuze... Sartre, no entanto, a entreviu - inserida, porém, "1d, ibid. p. 31. "1d, Ibid., p. 122. 140 Ml DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEKUAL no vai e vem redutor do jogo da consciéncia consigo mesma, como “mé-f6": “Mesmo reconhecendo sua inclinagfo homossexual, mesmo confessando uma por uma cada falta singular que cometeu, ele se recusa com todas as suas forcas a se considerar como um pederasta”". O homossexual joga com o “ser” desliza um “em si” sob o “para si” da “realidade humana” com sua transcendéncia, constrangido, como Genet, nos “torniquetes do ser e da aparéncia””. Assim, a homossexualidade passava, é certo, do empirico ao transcendental; 0 pederasta adquiria uma fungao paradigmdtica, mas men- tirosa, ao prego de sua autenticidade. E por outro lado, a psicandlise exis- tencial de Sartre o demonstra, a simples transposig’o do inconsciente para a consciéncia permitia a retomada de todos os pressupostos do inconsciente freudiano. Qualquer que seja a beleza de suas aplicagdes a Genet © a Flaubert, ela permanece sob a dependéncia das culpabilizacées edipianas. Completamente oposta, a concepgio de Deleuze vai liberar o homossexual da ma-fé e da culpa. A homossexualidade estd, mais que a heterossexualidade, no caminho do verdadeiro. O que ndo impede que, entre as condigdes de sua verdade, nao possa, como diz Nietzsche, “figurar 0 erro”. Perversao versus conversao Um paréntese, um desvio. A homossexualidade, sem divida, fez-se rara entre os Modernos: mas entre os gregos? Ela nao é contemporfnea da filosofia, em seu nascimento? Deleuze nao estaria apenas reatando, no fundo, com uma tradig&o que, com Platio, levava a homossexualidade ao plano de filosofia? Questiio capciosa, mas que permite sublinhar as diferengas. A homossexualidade em Platio - trata-se realmente dela? Ver o estudo de K.J. Dover" - é uma pederastia pedagégica. Como Michel Foucault demonstrou de maneira decisiva, a filosofia do Banquete se encarrega da pederastia para "EP, Sartre, L’éire et le Néant, Paris, Gallimard, 1976, p. 100. "JP. Sartre, Saint Genet comédien et martyr, Patis, Gallimard, 1952, p. 409. "KJ. Dover, Homosexualité grecque, La Pensée sauvage, 1982. DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL, explora, enraiza-se em sua terra. Assim, o livro de Proust trazia a luz as profundezas encaixadas das duas homossexualidades do homem e da mulher como forgas secretas do movimento social. As atragdes que niio se originam dos amores intersexuais reconhecidos e em sua espiritualizagao ascensional puxam para baixo. Ora, é exatamente af, em Proust, que residem as esséncias: “Pois as esséncias vivem nas zonas obscuras, nfo nas regides temperadas do claro e¢ do distinto. Elas estio envolvidas naquilo que forma o pensamento”". O platonismo de Proust é, portanto, um platonismo invertido. Ele faz apelo, nao ao intelecto, mas ao encontro involuntario, 4 sensibilidade. Ele desenha uma “nova imagem do pensamento”. Ele é platénico apenas porque o proprio Plat&éo se aproxima das idéias pré-socraticas: pelo movimento do infinito, o elementar, o delirio da mania. Delirio da profundidade sem fundo cavada nos corpos e em seu desejo. Em Logique du sens®, & a filosofia colocada sob 0 signo da disper- sao, de uma esquizofrenia que propée a dupla face de um Dioniso impassivel e glorioso e do Dioniso desmembrado. Nessa esquizofrenia filoséfica localiza- se 0 homossexual, e em seu corpo e em sua alma misturam-se 6dio ¢ amor, derrisio e gléria, o corpo despedagado e 0 corpo glorioso, “sem érgaos”. O homossexual é o ser da profundidade impenetravel. Toda oferta, no entanto, em sua superficialidade aparente. A filosofia das profundidades é, de fato, estreitamente ligada & das aparéncias, 4 recusa dos mundos-de-fundo, desse mundo “verdadeiro” da idéia e do em si. Na andlise deleuziana, é Nietzsche - grande pensador dos pré-socriticos, retomando-as em um pensamento do futuro - 0 filésofo das superficies, da profundidade dada nas vibragoes e nas diferengas de intensidade das super- ficies: “Os gregos eram profundos A forga de serem superficiais””’, célebre formula-chave que convém igualmente ao homossexual, vitima freqiiente da derrisao em virtude, precisamente, de sua superficialidade. E € preciso acres- * Id., Ibid., p. 122. ® G, Deleuze, Logique du sens, op. cit., p. 154. » F Nietzsche, Contre Wagner, par. 2. René Schérer mi 143 centar que essa superficie, segundo o modo como é apreendida, revoluciona a viséo de mundo e a orientagao das afeigdes: “O que é essa nossa tagarelice sobre os gregos? O que compreendemos de sua arte, cuja alma € a paixaio pela beleza viril nua? E somente a partir daf que eles percebiam a beleza feminina. Eles tinham, portanto, uma perspectiva dela totalmente diversa da nossa.”** Donde, uma atragdo nao platonica pelo corpo, apreendido em sua aparéncia expressiva. Pois somente a superficialidade da expressao da acesso as forgas profundas. Ela as é, enquanto elas se tornam. No entanto, nfo é nessa direcio de uma homossexualidade ainda grega, embora nio plat6nica, que Deleuze conduz sua descrigao da terceira imagem do filésofo, com tudo que implica de nova imagem do pensamento ou, em relagao & imagem que domina, de “pensamento sem imagem”. Ela & proposta a partir dos “terceiros gregos”, os cfnicos, os epicuristas, os estdicos, que pensam “moderno”, isto é, na superficie do plano de con- sisténcia ou de imanéncia do pensamento. Eles também tém em comum com a homossexualidade moderna, dada na superficie, na aparéncia, o fato de nao desterritorializados, assim serem autéctones, mas metecos, cosmopolite como a homossexualidade, fora dos territérios da normalidade, da familia, da patria, na franco-magonaria universal que ela compoe. Os homossexuais da “raga maldita” de Proust, seres da sombra, cultivam a errancia e o nomadismo dos afetos. E, 4 semelhanga dos “terceiros gregos”, os homos- sexuais passam da impenetrabilidade 4 provocagiio. Eles traem e traduzem seu segredo pela necessidade irreprimivel de exib' Os meneios de ancas, as piscadelas que nao enganam, os olhares inquietos ¢ furibundos, as vozes repentinamente perpassadas pela entonagao feminina da tia, eis a superficialidade homossexual confundindo-se com a do fildsofo cinico. B Didgenes com os arrebatamentos bruscos de Charlus, sua grosseria mundana. “Vemos ai, escreve Deleuze, desenvolver-se um curioso sistema de provocagées. De um lado, o filésofo come com a iiltima das gulas, se farta, se masturba em praga ptblica, lastima que nao se possa fazer o mesmo com a fome; nao condena o incesto com a prépria mae, irma *F, Nietzsche, Aurore, Paris, Gallimard, 1970, p. 134. 144 MI DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL | ou filha; tolera também 0 canibalismo e a antropofagia - e, claro, ele: SGbrio e casto em grau supremo. Por outro lado, ele se cala quando lhe tlocam questdes, ou entdo dé bastonadas em quem pergunta”*, Tal filoscfi trans- forma a dimensao vertical em horizontalidade, e a substancialidadea idéia no incorpéreo do acontecimento. Se é verdade, como sustenta Bermin", que a verticalidade 6 a dimenso onde se erige o significante lingzi tico e imperativo, a horizontalidade é a regifio dos signos pré ou a-sign if antes; a regiao onde a comunidade nao é a dos consensos, mas a da alian; entre 9s Corpos sensiveis e a terra, 0 dominio do elementar em que tudo antece e que nada dissimula. Nao ha profundezas insondaveis, nem altuss ina- cessiveis, apenas combinagées; nenhuma transcendéncia, apenas imméncia pura, a da vida miltipla de intensidades ¢ avaliagdes varidveis. O pno da imanéncia da homossexualidade, assim como da filosofia. Assim como 0 entende Deleuze, 0 mundo dos estéicos om sua Idgica do acontecimento, onde o sentido aparece ¢ é jogado na supéicie”, est4 em intima ressonancia com uma sexualidade sem outro fim seo ela mesma, sem preocupagio de engendramento biolégico ou espitual a maneira da relagao intersexual ou da pederastia pedagégica de Plata Nenhum encontro ou juntura entre filosofia ¢ homossexu idade nessa mutagao do filésofo em explorador de superficies, em benetio de uma torsao, de um desregramento na apreciagio e no funcionamew dos sentidos e dos valores. “Como foi, em Logique du Sens, nomead.ai nova operacao filoséfica, j4 que ela se opde ao mesmo tempo A conversdo fAtoni- ca e A subversio pré-socratica? Talvez pela palavra perversio que cavém, 40 menos, ao sistema de provocagio desse novo tipo de filosofia, s@ ver- dade que a perversao implica uma estranha arte das superficies”?*./ Ao se trata de analogia ou de metafora. A perversio, liberada de qualquer erén- cia normativa moralizante, e nao designando nada mais que o vé livre dos afetos, livre dos pesos freudianos (as profundidades), liga-se comm pen- * G, Deleuze, Logique du sens, op. cit., p. 158. *W. Benjamin, Malerei und Graphik, Schriften II, 2, Frankfurt, Suhrkamp, p. 602. "G, Deleuze, Logique du sens, op. cit., p. 158. * Id., Ibid. René Schérer mi 143 centar que essa superficie, segundo o modo como é apreendida, revoluciona a viséo de mundo e a orientagao das afeigdes: “O que é essa nossa tagarelice sobre os gregos? O que compreendemos de sua arte, cuja alma € a paixaio pela beleza viril nua? E somente a partir daf que eles percebiam a beleza feminina. Eles tinham, portanto, uma perspectiva dela totalmente diversa da nossa.”** Donde, uma atragdo nao platonica pelo corpo, apreendido em sua aparéncia expressiva. Pois somente a superficialidade da expressao da acesso as forgas profundas. Ela as é, enquanto elas se tornam. No entanto, nfo é nessa direcio de uma homossexualidade ainda grega, embora nio plat6nica, que Deleuze conduz sua descrigao da terceira imagem do filésofo, com tudo que implica de nova imagem do pensamento ou, em relagao & imagem que domina, de “pensamento sem imagem”. Ela & proposta a partir dos “terceiros gregos”, os cfnicos, os epicuristas, os estdicos, que pensam “moderno”, isto é, na superficie do plano de con- sisténcia ou de imanéncia do pensamento. Eles também tém em comum com a homossexualidade moderna, dada na superficie, na aparéncia, o fato de nao desterritorializados, assim serem autéctones, mas metecos, cosmopolite como a homossexualidade, fora dos territérios da normalidade, da familia, da patria, na franco-magonaria universal que ela compoe. Os homossexuais da “raga maldita” de Proust, seres da sombra, cultivam a errancia e o nomadismo dos afetos. E, 4 semelhanga dos “terceiros gregos”, os homos- sexuais passam da impenetrabilidade 4 provocagiio. Eles traem e traduzem seu segredo pela necessidade irreprimivel de exib' Os meneios de ancas, as piscadelas que nao enganam, os olhares inquietos ¢ furibundos, as vozes repentinamente perpassadas pela entonagao feminina da tia, eis a superficialidade homossexual confundindo-se com a do fildsofo cinico. B Didgenes com os arrebatamentos bruscos de Charlus, sua grosseria mundana. “Vemos ai, escreve Deleuze, desenvolver-se um curioso sistema de provocagées. De um lado, o filésofo come com a iiltima das gulas, se farta, se masturba em praga ptblica, lastima que nao se possa fazer o mesmo com a fome; nao condena o incesto com a prépria mae, irma *F, Nietzsche, Aurore, Paris, Gallimard, 1970, p. 134. 144 MI DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL | ou filha; tolera também 0 canibalismo e a antropofagia - e, claro, ele: SGbrio e casto em grau supremo. Por outro lado, ele se cala quando lhe tlocam questdes, ou entdo dé bastonadas em quem pergunta”*, Tal filoscfi trans- forma a dimensao vertical em horizontalidade, e a substancialidadea idéia no incorpéreo do acontecimento. Se é verdade, como sustenta Bermin", que a verticalidade 6 a dimenso onde se erige o significante lingzi tico e imperativo, a horizontalidade é a regifio dos signos pré ou a-sign if antes; a regiao onde a comunidade nao é a dos consensos, mas a da alian; entre 9s Corpos sensiveis e a terra, 0 dominio do elementar em que tudo antece e que nada dissimula. Nao ha profundezas insondaveis, nem altuss ina- cessiveis, apenas combinagées; nenhuma transcendéncia, apenas imméncia pura, a da vida miltipla de intensidades ¢ avaliagdes varidveis. O pno da imanéncia da homossexualidade, assim como da filosofia. Assim como 0 entende Deleuze, 0 mundo dos estéicos om sua Idgica do acontecimento, onde o sentido aparece ¢ é jogado na supéicie”, est4 em intima ressonancia com uma sexualidade sem outro fim seo ela mesma, sem preocupagio de engendramento biolégico ou espitual a maneira da relagao intersexual ou da pederastia pedagégica de Plata Nenhum encontro ou juntura entre filosofia ¢ homossexu idade nessa mutagao do filésofo em explorador de superficies, em benetio de uma torsao, de um desregramento na apreciagio e no funcionamew dos sentidos e dos valores. “Como foi, em Logique du Sens, nomead.ai nova operacao filoséfica, j4 que ela se opde ao mesmo tempo A conversdo fAtoni- ca e A subversio pré-socratica? Talvez pela palavra perversio que cavém, 40 menos, ao sistema de provocagio desse novo tipo de filosofia, s@ ver- dade que a perversao implica uma estranha arte das superficies”?*./ Ao se trata de analogia ou de metafora. A perversio, liberada de qualquer erén- cia normativa moralizante, e nao designando nada mais que o vé livre dos afetos, livre dos pesos freudianos (as profundidades), liga-se comm pen- * G, Deleuze, Logique du sens, op. cit., p. 158. *W. Benjamin, Malerei und Graphik, Schriften II, 2, Frankfurt, Suhrkamp, p. 602. "G, Deleuze, Logique du sens, op. cit., p. 158. * Id., Ibid. René Schérer m 145 samento inventivo da Présentation de Sacher-Masoch®. Ela mantém com © pensamento inventivo uma relagdo privilegiada. Em um _paralelismo surpreendente, em uma correpondéncia termo a termo, pensamento e homos- sexualidade se respondem. O pensamento platénico é comandado pela hierarquia do Jogos, e sua pederastia é, igualmente, anag6gica, ascensional O pensamento efnico, estéico, epicurista, nietzschiano - em uma palavyra, moderno - ao afastar-se desse logos, € perverso, ¢ a homossexualidade é 0 paradigma da perversao. O pensamento “moderno”. Também jd era perverso 0 pensamento de Kant, quando compreendido na perspectiva do jogo estético que libera a imaginagao do entendimento e da razdo. Entre as “Quatre formules poé- tiques propres a résumer la philosophie kantienne”, em 1986, Deleuze insere a de Rimbaud: “chegar ao desconhecido pelo desregramento de todos os sentidos”. E que “o exercicio desregrado de todas as faculdades vai definir a filosofia futura, como para Rimbaud o desregramento de todos os sentidos devia definir a poesia do futuro” *°. Nao, a perversio nao caracteriza a filosofia por simples metéfora Ela deve ser compreendida enquanto torsao de superficie ou plano, & maneira geométrica ou geografica, como uma curvatura do plano de imanéncia do pensamento, que aproxima (a ponto de intercambiarem suas propriedades e, em certas ocasides, confundirem-se) filosofia e esta homos- sexualidade que tem nome “judeu”, cujas propriedades e cuja fungdo sao 231 a-l6gicas, hieroglificas: “Nao ha logos, ha somente hieroglifos. Culpado - nao culpado. O hieroglifo é 0 emblema da homossexualidade moderna. A abordagem anagdégica, ela opée a dispersao dos signos. A tens&o unificante, a divisio dilacerante de sua esquizofrenia. Ela se afasta do caminho da ” G. Deleuze, Présentation de Sacher-Mazoch, Paris, Minuit, 1967, p. 132: “Masoch é 0 mestre do fantasma e do suspense”. G, Deleuze, Critique et Clinique, Paris, Minuit, 1993, p. 49. 4G, Deleuze, Proust et les signes, op. cit., p. 124. 146 MI DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL verdade comum, ela cobre de maldigao tudo aquilo que afeta ¢ o transforma em transmissor da falta imemorial. Judia, nisso. Poderfamos, certamente, nos deter nessas notagées ¢ revelar nessa culpabilidade original a marca de uma profundidade, para uma filosofia das profundidades. Seria uma homossexualidade tragica, assegurando 4 homossexualidade a marca de uma vocagao, 0 encarregar-se de um destino. Em todo homossexual, e certamente em Charlus, existe esse trdgico que, alias, 6 bem nietzschiano. Mas a homossexualidade trégica com seu carater de excegio & logo balangada, colocada em conflito humoristico com seu inverso: a onipresenga de uma franco-magonaria homossexual, praticando um corte transversal da Sociedade e da histéria. Humoristica porque raramente ela opée: todo homem €. $6 existe Sodoma e Gomorra; a separacdo dos homens entre eles e das mulheres entre elas é, a cada geragio, repetitiva. Essa repetigado nao € desvalorizante. Pelo contrario, ela desenha 0 novo quadro em que a homos- r, Se filosofiza sexualidade se deixa pens A homossexualidade moderna, ao contrario da platénica e também de um pensamento do destino, ndo se funda em uma reminiscéncia, mas anuncia uma repetigao. A reminiscéncia, é possfvel certamente encontré-la entre alguns modernos, como Fréderic Rolfe, contemporineo do jovem Proust, em Le Désir et la poursuite du tout®. Mas nem Em busca do tempo perdido, nem Deleuze vao nessa diregio. A Tepetigio homossexual, que conota a nogao de “raga”, se efetua na superficie, nao em profundidade; ela torna possivel o espago dos encontros altamente improvaveis e no entanto efetivos, como 0 de Charlus e Jupien, de Albertine com suas companheiras de safismo. Ela desliza nessa proposigao de Différence et Répétition que, mesmo nao tendo sido escrita para ela, Ihe convém perfeitamente: “um espago de encontro com signos, onde a repetigao se funda ao mesmo tempo em que disfarga”*. Desdenhando um centro onde um retorno as origens ganharia peso e sentido, a homossexualidade-signo se opde & homossexualidade-logos para “F. Rolfe, Le désir et la poursuite du tout (1909), Paris, Gallimard, 1963. © G, Deleuze, Différence et Répélition, Paris, PUF, 1996, p. 35. René Schérer m 147 constriur, pouco a pouco, seu universo em um entrelagamento de encontros e de perspectivas. A circulagao substitui a ascensao. Os signos circulam, se repetem na diferenga pura, nela mesma, fora de qualquer progressio, de qualquer dialética integrativa, de qualquer finalidade. Ser homossexual é recusar-se ao destino biolégico organico de ser exclusivamente menina ou menino. No entanto, a homossexualidade da “raga maldita” é 0 exemplo mesmo do peso do destino: a separagio dos sexos segundo a maldigao retomada de La Colére de Samson de Vigny: “Os dois sexos morreriio cada um em seu lado.” Que faz Deleuze? O que ele faz de Proust e com Proust? Simplesmente, sempre aceitando a alta significagio da raga maldita, recusar sua légica exclusiva e identitaria, sua fatalidade tragica e divina. A maneira de Lucréce, de seu atomismo de superficies, Deleuze Ihe opde o revoar dos signos, das particulas, a natureza das coisas. Ele a relaciona com o modelo natural do zangio, com a “linguagem das flores” e com a coexisténcia, nelas, de dois sexos, signos de uma repetigio na disperséo que substitui a linearidade tinica de uma linhagem culpada™. Livrar a homossexualidade da culpabilidade e da vergonha. Essa idéia 6 ao mesmo tempo teéri € pratica, Ela teria permitido a emergéncia da uta contempordnea dos homossexuais: Le désir homosexual de Guy Hocquenghem foi escrito na onda do langamento de L’Anti-Oedipe e sob seu impulso*’, Deuleuze acompanhou essas lutas e as apoiou. De que € composta a vergonha homossexual? De seu cardter anti- natural, de uma imcompletitude em uma sexualidade imobilizada, imatura, parada, como quer o Edipo freudiano, no estégio de fixagdo na mie. A vergonha, quando nao é mais aquela inerente ao pecado, procede de uma auséncia de verdade, de uma imperfeigio, na ordem estrutural, do sexual subordinado ao aparecimento da pessoa, a suas identificagées exclusivas como homem ou como mulher. Livrar a homossexualidade da vergonha é, portanto reinseri-la na natureza, estabelecer, de algum modo, a naturalidade %G, Deleuze et Félix Guattari, L’Anti-Oedipe, op. cit, p. 81 %G. Hocquenghem, Le désir homosexual, Paris, Les Editions universitaires, 1972. 148 Ml DELEUZE £ A QUESTAO HOMOSSEXUAL da perversao. E, concomitantemente, explodir a identidade pessoal, desco- brir e estabelecer uma camada elementar de sentidos que nada deva as derivagées personalistas, uma outra verdade do sexual, do qual a homossex- ualidade é mais proxima do que a intersexualidade. Sexualidade de outra natureza ou antes, inserindo-se em uma natureza compreendida e analisada diversamente: ela vai exigir outras palavras, a elaboragio de conceitos novos. Ela se distancia de uma linguagem ainda marcada por um certo estru- turalismo em Proust et les signes, para fazer apelo em L’Anti-Oedipe, coma rejeicdo da estruturagdo freudiana, a uma teoria dos fluxos e do funciona- mento maquinico do desejo. A homossexualidade nao tem mais necessidade de ser explicativamente estruturada, ela € maquina as voltas com o desejo polimorfo. Todavia, um movimento continuo corre de um livro a outro, per- mitindo apreender, até premiar, o impulso dado as lutas homossexuais pelo segundo. O segredo de Albertine A separagio dos sexos nao é a verdade da homossexualidade. A teoria proustiana, escreve Deleuze, comporta trés niveis: no primeiro, os amores intersexuais; no segundo, a divisao desse conjunto em duas séries homossexuais que buscam 0 “segredo” da mulher amada e do amante. F 14 “que reina a idéia de erro e de culpabilidade”.* Mas esse ndo € o ultimo nivel. Ble ainda concerne apenas aos grupos ou multidées, embora as duas séries homossexuais sejam “mais finas que a grande aparéncia dos amores heterossexuais”. O que importa para Deleuze, como para Proust, é um ter- ceiro nivel, intra-individual, onde os dois sexos sustentam uma coexisténcia compartimentada: “ao mesmo tempo presentes e separados no mesmo indi- viduo, mas compartimentados e nio comunicantes no mistério de um her- mafroditismo inicial”. O amor nao é comandado por um retorno a origem, uma reminiscéncia espontanea, como no mito do Aristéfanes platénico do Banquete. E,uma repetigao na diferenga de partes dissociadas. Em cada indi- viduo, a divisao mantida sustenta a multiplicidade e favoriza combinagdes “G, Deleuze, Proust et les signes, op. cit., p. 162. René Schérer ml 149 miltiplas com as partes correspondentes de um outro. “E af, diz Deleuze, que o tema vegetal assume todo ¢ seu sentido por oposi¢io a um Logos- grand Vivant: 0 hermafroditismo 140 € a a propriedade de uma totalidade animal hoje perdida, mas a compartimentag4o dos dois sexos em uma mesma planta”*’. Linguagem desculpabilizante das flores que funda a possibilidade de muitas outras conjungées além caquela entre dois individuos identificados por seus sexos complementares. No fio da teoria proustiana, a unidade sexual individual se fragmenta interiormente, sempre se dispersando exteriormente, pois 0 zang&o fecundador, exterior 4 flor, faz parte de sua sexualidade, segundo uma tese emprestada de Darwin e usada também por Samuel Butler, téo importante para a formagao da teoria das mdquinas desejantes no L’Anti-Oedipe®. O masculino ¢ o feminino se trocam, se per- mutam, estfio envolvidos em um vai e vem perpétuo. Nao existem pessoas face a face, identificaveis por seu sexo imutével, mas sempre “a agitagao de particulas singulares”. Também a homossexualidade € mal nomeada: “aquilo que 1939 chamamos muito mal de homossexualidade”®, nunca concernindo “ao mesmo” ela também nao é jamais, sendo con referéncia & relagao interpessoal e inter- sexual, verdade do amor. A verdade, é preciso buscd-la no tiltimo nivel de um “transexualismo local e néo-especifico”, em que se dissolve a homos- sexualidade global ¢ especifica que separa homens e mulheres como inimigos compondo suas séries divergentes e culpadas. A inocéncia, com a verdade, encontra-se do lado do elementar, com as particulas (“objetos parciais” em Proust et les signes) entrando em combinagées miiltiplas de masculino e feminino. Essa combinatéria, apresen- tada inicialmente de modo estrutural, vai se converter em um dinamismo de fluxos, em movimento molecular cue anima as maquinas de desejo, a partir do L’Anti-Oedipe. Mas € a mesma implicagao plena e inteira, pela homos- " Id,, ibid., p. 212. * G. Deleuze et Félix Guattari, L’Anti-Oedpe, op. cit., p. 338. ” G. Deleuze, Proust et les signes, op. cit.,p. 164. 150 lM DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL | sexualidade masculina e feminina, do outro sexo, a mesma presenga ele- mentar e constitutiva do outro no coragao do mesmo. Uma das conseqiiéncias essenciais desse transexualismo, considera- do seja na estrutura, seja no fluxo, refere-se ao personagem de Albertine, central para a compreensio deleuziana de Proust. Albertine, tese constante- mente reafirmada, nao é uma transposigao literdria, ela é menina-moga, ela é mulher amada, perseguida pela inquietude ciumenta que seus amores femininos cultivam. “Os amores intersexuais, escreve Deleuze na conclusio de Proust et les signes (contemporanea - em 1973 - de L’Anti-Oedipe), & especialmente o do narrador por Albertine, nao sio de modo algum uma aparéncia sob a qual Proust estaria escondendo sua homossexualidade. Esses amores formam, ao contrario, as duas séries homossexuais represen- tadas por Albertine e Charlus.” Seria preciso supor a existéncia, na vida sexual “real” de Proust, como Deleuze parece incitar, de “algumas relagdes com mulheres” e colocar em diivida sua confidéncia a Gide de “ter conhecido © amor apenas com os homens” *“!? Preferimos ficar com esta outra nota deleuziana de que “a obra e a teoria ligam- se A vida secreta por um lago mais profundo que o de qualquer biografia”®. Albertine nao é, certamente, uma transposigao, ela é a “menina-moga” de Proust, e transformaé- Ja em alguma figura de menino seria desconhecé-la e traf-la. Mas também seria falso ver nela a criagdo de uma atragao heterosexual, traduzi-la, como fez um comentarista recente, manifestamente inspirado em Deleuze sem cité-lo, com estas expressdes tio triviais: “A heterossexualidade na alma de Proust” ou “Proust era heterossexual na alma”*’. Pois Albertine é a produgio do transexualismo proustiano; ela é levada por seu fluxo. A heterossexualidade “global” nao Ihe convém mais do que a homossexuali- dade “global” convém a Proust. Ela surge no ponto de indistingio em que as duas séries do homem e da mulher se encontram e se confundem. “Ela “Id, ibid., p. 212. “Mz Proust, Sodome et Gomorrhe, vol. 1 e II, texto estabelecido, apresentado e anotado por Frangois Leriche, Paris, Le Livre de Poche, 1993, p. XIX. ©G. Deleuze, Proust et les signes, op. cit., p. 166. © 8. Zagdamski, Le sexe de Proust, Paris, Gallimard, 1994, p. 14. René Schérer m@ 151 se extrai lentamente”, escreve Deleuze, “da nebulosa das meninas-mogas” que retornam para sua “indivisdo primeira”. Albertine é 0 rosto que se dissolve na proximidade do beijo, que “passa por um série de planos sucessi- vos a cada um deles correspondendo um tanto de Albertine, o sinal na pele saltando de um para outro; e, enfim, 0 embaralhamento final em que o rosto de Albertine se desarticula e se desfaz”*. Albertine se funde no close, cuja definigio se encontra em L’Image-mouvement de 1983: “nao age pela individualidade de um papel ou de um cardter, nem mesmo pela personali- dade do ator” e tira seu poder de expressio da singularidade das partes e de sua diferenciagio, fazendo “do rosto um material puro do afeto, sua hylé”, transformando-o em outra coisa até a extingao. Ou ainda, é Albertine adormecida em sua aparéncia mineral, seu desfalecimento atmosférico, césmico: “Como se tivesse aprisionado uma pedra que encerrasse a maresia dos oceanos imemoriais ou o raio de uma estrela, eu sentia que estava tocando apenas 0 envelope fechado de um ser que, pelo interior, aleangava o infinito” ”. O segredo de Albertine nio € 0 segredo vergonhoso da danagao ou do “romance familiar”, 0 da relagio edipiana, embora uma culpabilidade e uma explicag4o desse tipo nfo estejam ausentes em Proust, sob a forma da homossexualidade neur6tica. A homossexualidade é, em relagio a norma social, uma “loucura”, mas uma loucura constituinte, produtiva, que permite a acolhida do masculino ¢ do feminino e sua dispersio comum no primeiro plano“. Albertine ocupa, em Deleuze e em Proust, um lugar central, exerce uma fungio de pivé, pois é gragas a ela que a homossexualidade escapa de sua exclusividade, de sua auto-limitagio. Se, sob sua forma limitativa, ela nao é a expressio completa da verdade, ela indica o caminho. No prefacio de L'Aprés-Mnai des faunes vamos descobrir a expressio * G, Deleuze, Proust et les signes, op. cit.,p. 166. "Id, ibid. “ G. Deleuze, L’Image-mouvement, Paris, Minuit, 1983, p. 147. “M. Proust, La Prisonniére, citado por Caude Reichier, “La création du corps sublime”, Le corps et ses fictions, Paris, Minuit, 1983, p. 123. “ G, Deleuze, “Conclusion: présence et fonction de la folie”, Proust et les signes, op. cit. p. 205. 152 Ml DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL | ‘pratica dessa destinagdo: “Longe de se fechar sobre ‘o mesmo’, a homos- sexualidade vai se abrir para todas as novas relagGes possiveis, microlégicas ou micropsfquicas, essencialmente reversiveis, transversais com tantos sexos quantos forem os arranjos... Nao se trata mais de ser nem homem, nem mulher, mas de inventar sexos, assim como um homossexual homem pode encontrar em uma mulher os prazeres que um homem Ihe daria e inversa- mente”. Nesse texto de 1974, notamos com interesse a referéncia a teoria proustiana: “Proust j4 opunha 4 homossexualidade exclusiva do mesmo, esta homossexualidade mais miltipla e mais localizada que inclui todos os tipos de comunicagées transversais, inclusive com flores e bicicletas.” Nao 6 cer- tamente para uma bissexualidade, lugar comum de uma liberagao sexual, que a homossexualidade se abre, mas para - leitmotiv de L’Anti-Oedipe - “n sexos’ € 0 “sexo naio-humano”. O segredo de Albertine nao € sendo “jogar para o ar aquilo em que Freud e toda a psicandlise restarao para sempre prisioneiros: a representagio antropomérfica do sexo”. Na linha do devir Vamos resumir. A teoria deleuziana e guattariniana da sexualidade rompe de maneira decisiva com toda a interpretagio personoldgica para engajar-se na andlise dos fluxos do desejo e de sua composigao molecular. Asexualidade, declara Deleuze em Dialogues, “nao é uma energia, nem uma infra-estrutura, ela sé pode ser pensada como um fluxo entre outros, entran- do em conjungao com outros fluxos, emitindo particulas que, elas mesmas, entram em tal ou tal relag&o de velocidade ou lentid&o na vizinhanga de tais outras particulas”*'. Essa concepgao rompe com “a triste idéia do amor, que faz dele uma relagiio entre duas pessoas”. Além, ou aquém, existe 0 concreto das singularidades, dos elementos, a materialidade dos dtomos que nao sao iméveis, mas se tornam. A pessoa imobiliza, petrifica, fecha a escritura e 0 pensamento que © G. Deleuze, prefiicio a L’Aprés-Mai des faunes, op. cit., p. 15. % G. Deluze ¢ Félix Guattari, L’Anti-Oedipe, op. cit., p. 350 “|G, Deleuze ¢ C, Parnet, Dialogues, Paris, Champs/Flammarion, 1996, p. 121. René Schérer m 153 Ihe € associado em sua convengéo. A inventividade, insepardvel de uma escritura nova, é fazer brotar 0 concreto da maior consisténcia das singula- ridades, dos componentes elementares da verdadeira vida. “Veio-me a idéia de que 0 que eu queria fazer agora era saturar cada dtomo”, escrevia Virginia Woolf. Pois nio ha sendo dtomos, particulas, ou “artigos” sem sujeito, compondo 0 fluxo das palavras, assim como o das afcigdes. A questao “por que Proust criou Albertine?” tem resposta apenas no nivel das particulas, onde as exclusividades pessoais ¢ sexuais se fundem no trabalho de uma escritura imanente A vida. “E um processo,” 1é-se em outro trecho, em Cri- tique et Clinique, “ou seja, uma passagem de Vida que atravessa 0 vivivel ¢ 0 vivido. A escritura é insepardvel do devir: escre vendo, nos tornamos mulher, nos tornamos animal ou vegetal, nos tornamos moleculares até nos tornar- mos imperceptiveis” *. Albertine nao € a transposigao da homossexualidade de Proust em heterossexualidade, € seu devir mulher, sua “homossexualidade” propri- amente, na medida em que escritura torna-se a mais alta forma, a mais inten- sa, de sua vida. Uma tese central de Mille Plateaux™ faz do tornar-se mul- her a chave de todas as outras modalidades do tornar-se, pois articula © movimento interrompido pelas identidades macigas do masculino e do feminino, que libera as particulas, devolve-as errdncia, ao “nomadismo” originario, que - aqui define-se especialmente 0 devir - permite sua entrada em uma zona de indiferenciagao e de vizinhanga miitua. Essa reposigéo em marcha é a mesma das paixdes segundo Fourrier, muitas vezes evocado como referéncia®, imobilizadas pelos grupos falsos do casal e da familia. Devir mulher, mas nao para adotar a heterossexualidade. Devir mulher molecular, menina-moga molecular e, nesse sentido, “universal” *. Expressdes altamente inventivas, inesperadas, capazes de esclarecer e liberar, colocando-as em uma perspectiva dinamica, as combinagées estruturais 21d, ibid, p. 145-146. ® G, Deleuze, Critique et Clinique, op. cit., p. 11. * Id, ibid., pp. 330-339 ¢ toda a passagem: tornar-se mulher, tomat-se crianga, tornar-se ani- mal, tornar-se molecular. “Em particular, L’Anti-edipe, op, cit., pp. 348-349. % G, Deleuze e Félix Guattari, Mille Plateaux, op. cit., p.339, 184 r DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL, i dos elementos masculinos e femininos compartimentados, tal como o livro de Proust os apresenta. A homossexualidade tira sua verdade do devir mulher molecular e no de uma imitagao da mulher, ou ainda da “presenga de uma alma feminina em um corpo de homem”, expressdo muito em voga no tempo de Proust’, Embora n&o se possa negligenciar a imitagio efetiva entre os travestis, escreve Deleuze, o devir ndo concerne a mulher “total” que tem, ela também, que tornar-se mulher. Devir mulher nao é “nem imitar, nem assumir a forma feminina, mas emitir particulas, produzir a mulher- molecular” *. Nao se escreve como mulher, pode-se ler ainda nas mesmas paginas, a propésito de Virginia Woolf, mas a escritura produz um devir mulher como um atomo de feminilidade capaz de percorrer e de impregnar © campo social e de contaminar os homens e envolvé-los nesse tornar-se.” E ent&o que qualquer identificagao sexual transborda e, mesmo se nao tem nada a ver, aparente ¢ diretamente, com a homossexualidade, descobre uma regido, desenha um contorno que pertence ao conceito dessa tiltima ou de sua constelagio: “Os que passam por mais viris, os mais falocratas, Lawrence, Miller, nao deixario de captar e de emitir, por sua vez, essas dade das particulas que entram na vizinhanga ou na zona de indiscernibi! mulheres. Eles tornam-se mulheres ao escrever”®. A teoria do devir faz desaparecer as fixagdes dirimentes que, em L’Anti-Oedipe, sao inerentes A interpretagdo do desejo homossexual segundo o complexo freudiano. As disjungdes exclusivas, culpabilizantes, opdem-se as inclusées extra-edipianas: & homossexualidade neurética, uma esquizofrenia dissolvente da pessoa e de suas estruturagdes patogénicas. Tomada sob essa luz, La Recherche pode ser apresentada, em uma extra- ordinaria digressao de critica “clinica” ¢ poética, como a esquizoandlise das terras perversas e a exploragao dessas “regides novas onde as conexdes sio sempre parciais e nao pessoais, as conjungdes némades, as disjungdes © Bla pertence a Karl Heinrich Ultichs em La nature sexuelle de l'uraniste méle (1868). Cita- do por Guy Hocquenghem, Race d’Ep!, editions libres/Hallier, 1979, p. 50. ° G, Deleuze e Félix Guattari, Mille Plateaux, op. cit., p. 338. 1d, ibid. René Schérer 155 inclusas, onde a homossexualidade e a heterossexualidade néo podem mais se distinguir: mundo de comunicag@es transversais onde 0 sexo ndo humano enfim conquistado se confunde com as flores, terra nova onde o desejo fun- ciona segundo seus elementos e seus fluxos moleculares”®. E um mundo da “viagem intensiva’, “imével”, mas que 0 homossexual pode também reconhecer como aquele de suas préprias vagabundagens pelo mundo, de sua “paquera” némade, assim como faz G. Hocquenghe! : “O passeio do homossexual, atento a tudo que pode vir a se ligar a seu desejo nao deixa de Jembrar aquilo que L’Anti-Oedipe chama de passeio do esquizofrénico” ". Granun salis O devir, escreve Deleuze, esté “em nés’. Seria entao uma ilusio, uma metdfora? Nao, Lem ao contrario, trata-se de um real enriquecido pelo conceito que o circunscreve, abragando ao mesmo tempo os Atomos corporais, as singularidades afetive is, OS elementos da escritura, particulas j4 dadas e agitando-se na superficie, participando de uma materialidade comum. O mundo de Deleuze é lucreciano e, como este, abraga continuamente os Atomos materiais e vocais. O devir ocupa a zona de indiscernibilidade entre real e imagindrio e os compreende na abordagem e elaboragdo de uma mes- ma verdade. Todavia, nio sem humor. Que, sobretudo, nao se veja nessa formula uma causa restritiva. O humor é parte integrante da verdade a ser transmitida, ele oferece a ela 0 conforto de sua hospitalidade. Do humor, Deleuze diz que é um efeito de superficie, arte dos acontecimentos puros, desfazendo os ngodos da representagio, do individuo, da subjetividade em beneficio das multiplicidades. Ele rejeita, antes de tudo, a superioridade irdnica do sujeito que julga e interroga. Ele est4 do lado das minorias: um “devir minoritério”. A mulher molecular, a menina-moga universal, n sexos, 0 sexo nao humano - tomado emprestado de Marx, irénico - sio ® L’Anti-Oedipe, op. cit., p. 280. ® G. Hocquenghem, Le Désir homosexual, op. cit., p. 60. ® G. Deleuze e Cl, Parnet, Dialogues, op. cit., p. 83. 156 MIDELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL | | indubitavelmente salpicados de um humor préprio para liberar a sexuali- dade dos pesos sociais ou orgfnicos. Todas essas express6es dao A escritura, ao préprio conceito, um desembara¢o supremo e o frescor de um “tornar-se crianga”. Deleuze escreve que o humor é judeu, € a ironia, grega ou romanti- ca. Mas no existe humor em Platéo na cena de abertura do Carmides, por exemplo, quando os que se empurram no banco para ficar ao lado do belo adolescente acabam por derrubar o rapaz, que estava no final do banco? Ou nos andrégenos em forma de ovo imaginados por Aristéfanes no Banquete®? E verdade que o humor é reservado geralmente as descrigdes, enquanto Deleuze faz com que interfira no préprio conceito: a mulher molecular. Em todo caso, é sobre o romantico Jean-Paul - os roménticos nem sempre sao irdnicos - que recai a fama de ter criado a melhor definigao do humor, que convém igualmente ao humor de Deleuze: assegurar a primazia da idéia sobre as regras mesquinhas do entehdimento, recobri-lo com s ua “prodigiosa luz”. O humor descansa do sublime dele aproximando- se, AO Mesmo tempo, porque toca o infinito, ndo na altura, mas abrindo o horizonte na superficie. Gragas a ele, a idéia aniquila qualquer pretensao, ele ignora a “zombaria maldosa contra os individuos; ele é humor da vida”. Aesse titulo, ele pode trabalhar o conceito interiormente. O do tornar-se traz sua nota de humor & pesada categoria da sexualidade interpretada sexologi- camente, psicanaliticamente. Ele dissipa a gravidade e 0 enfado, pois o que existe de mais enfadonho que o homossexual edipiano ou aquele que se vé assim, instalando-se nessa espécie de especificagao psicolégica e social? O que ha de mais humoristico que o pederasta, que Charlus em seu devir mulher? O devir mulher - menina-moga universal, verdade explosiva da homossexualidade, seu humor. Mas por que, nesse caso, a homossexualidade? E a questdo que G. Hocquenghem colocava no final do Désir homosexuel, referindo-se especifi- camente a Deleuze e Guattari, a critica que fizeram “dessa categoria particular, © Platiio, Carmides, 155 ¢; O Banquete, 189 e. Jean-Paul, Cours préparatoire d’esthétique, traduzido por Anne-Marie Lang, Jean-Luc Nan- cy, Lausanne, L’Age d’ homme, 1979, 7o programa, par. 31, “Le concept d’ humour”, p. 134. René Schérer i 157 subdivisdéo artificial do desejo, pois € tomada em uma relagdo de disjungdo exclusiva com a heterossexualidade que as relaciona a uma cama- da edipiana castradora comum, encarregada de assegurar sua diferenciagao” *. O prefacio de Deleuze a L’Aprés-Mai des faunes retoma essa inter- rogacio e justifica a resposta: a homossexualidade €, sem diivida, apenas uma palavra, de formagao recente, instrumento do poder médico e estatal. Nao deve ser tomada ao pé da letra. “Nominalismo da homossexualidade” “, da qual o homossexual faz sua “maquina de guerra” - expressio de Mille Plateaux - assumindo “sua posigéo como especffica, seus enunciados como irredutiveis”. Faz-se “como se”, “por desafio, quase por dever”. “Ainda uma mascara, ainda uma traig&o”, acrescenta Deleuze. Ele poderia ter dito também: ainda um trago de humor que - € trata-se de um dito de Jean-Paul - joga a gravidade da vida contra 0 sério. Estamos muito perto das mascaras e travestimentos de Genet, de suas afirmagdes provocadoras, de suas simulagdes de “espontaneo simulador””, de seu famoso desafio: “eu sou um negro” ®, Poténcias do faiso Muito perto da mentira e do falso, Pois a verdade da homossexuali- dade € sem cessar, entre os mais sinceros que sobre ela pensaram, associada ao erro. A homossexualidade vivida, experimentada em nés, nunca é a homossexualidade ou pederastia no sentido psiquidtrico. E a: m que o jovem Proust, em suas cartas a Daniel Halévy, seu condiscfpulo, “opera uma cuidadosa disting&o entre a ‘pederastia’, divertimento condendvel dos blasés, € a paixdo que podem sentir, um pelo outro, jovens rapazes que “por nada do mundo se dedicariam a pederastia”®. E assim que Hocquenghem opée a triste redug&o freudiana, “o caréter heteréclito” do desejo, sua “dispersio maquinica” no sentido “G, Hocquenghem, Le Désir homosexuel, op. cit. p. 107. “ G. Deleuze, preficio a L’Aprés-Mai des faunes, op. cit., p. 13. J. Genet, Un captif amoureux, Paris, Gallimard, 1986, p. 206. J, Genet, L’Ennemi déclaré, Paris, Gallimard, 1991, p. 149 (entrevista com Hubert Fichte). © F. Leriche, prefaicio a Sodome et Gomorrhe, op. cit., p. XIX. 188 MI DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL deleuze-guattariniano, ressaltando que nao existe “homossexualidade” como um estado de coisas, mas homossexualizagéo de um vivido naio codificado”. Em todo homossexual repercutem as perturbagdes do Térless de Musil: “Nao sou eu!”, “Nao é minha culpa se esse sentimento difere de tudo que me foi proposto”. Mas o problema colocado pela homossexualidade moderna, do qual ela se encarregou, por assim dizer, nao € somente o da irredutibilidade do vivido aos instrumentos de conhecimento que, de fato, 0 recobrem e 0 transformam”. A palavra foi criada pelo médico htingaro K.M. Benkert, em 1860, em uma preocupagio de cientificidade, em réplica as leis prussianas condenando os “atos contra a natureza”, Um vocdbulo, como qualquer medicalizagao, de efeitos perversos. Nele, a verdade 6 submetida a forma do tempo, desse tempo da histéria que fez nascer a homossexualidade, com a qual 0 homossexual vai ter que se virar e viver. O ser néio estd por trés do véu. O véu faz parte da verdade e do ser, assim como, segundo Nietzsche, a mentira e o erro fazem parte da vida Essa relagio nao é aquela, dialética, de uma integrag’o progressiva em uma categoria envolvente (“a infame dialética!” escreve Deleuze no pre- facio de L’Aprés-Mai des faunes). Ela € uma relagao de simultaneidade, de niveis. Esses nfveis nio sao aqueles de uma negatividade conservadora ou “sobre-sumante” (Aufhebung hegeliana), mas de um desenrolar de figuras ou possibilidades diversas na simultaneidade de uma categoria estilhagada. “E ficando homossexual forever”, lé-se nesse texto fenomenal e surpreen- dente, “e permanecendo assim, sendo-o cada vez mais ou cada vez melhor, que se pode dizer ‘mas afinal das contas, ninguém o é’. O que vale mil vezes mais que a sentenga trivial e insfpida segundo a qual todo mundo é, todo mundo vai sé-lo, viado inconsciente latente.” Ninguém 6, isso significa que o homossexual, em sua verdade, nao se define pela capacidade de estar sempre em um lugar diferente daquele onde estd sendo procurado e onde se pretende imobiliza-lo. A homossexualidade nao é a idéia comum ou geral ”G, Hocquenghem, Le désir homosexuel, op. cit., p. 98 "\Id,, ibid., pp. 67 € 93. ®G. Hocquenghem, Race d’Ep!, op. cit., p. 20. René Schérer m 159 | | de todos os homens ou de todas as mulheres, mas a linha de fuga que lhes permite ocupar diversos lugares, desempenhar varios papéis simultanea- mente, ou melhor, escapar de qualquer papel. E a mesma pagina propde esta imagem topolégica: “Imaginemos uma espiral extremamente mével: Hocquenghem esta nela, ao mesmo tempo, em varios niveis, ora em varias curvas, ora de moto, ou doidao, ora sodomizado ou sodomizando, ora traves- tido. Em um nivel ele pode dizer sim, sou homossexual, em outro, nao, nao é isso, € em outro nivel ainda, é uma outra coisa”, O homossexual n&o se deixa assustar pelas “personalidades miltiplas”, ou melhor, pois nao se trata mais de ninguém, pela coexisténcia nele de varios mundos possiveis. A espiral com diferentes niveis evoca, no sentido inverso, 0 palicio piramidal dos mundos possfveis imaginado por Leibniz no final da Teodi- céia. Na medida em que se eleva em diregdo ao mundo real, a pirfimide encolhe, pois 0 real elimina os mundos que sfio possfveis apenas na idéia, ou “incompossiveis” juntos. Ao contrario, sustenta Deleuze em uma convin- cente variagdo conceptual sobre Leibniz, por que os incompossiveis nao concorreriam para a produgiio de um real enriquecido”? A légica de “colo- car em © a verdade pelo tempo, e da oposigiio entre verdades necessdrias e¢ verdades contingentes, descoberta por Leibniz, seria admitir os incom- possiveis em uma nova apreensio do real, estética dessa vez. A literatura contemporanea e 0 cinema colocam sua coexisténcia, repudiando a idéia de um Gnico mundo e substituindo-o pela multiplicidade dos pontos de vida, pela bifureagao das linhas que vaio de “presentes incom- possiveis” a “passados no necessariamente verdadciros”. Com a nogio paradoxal de “verdade contingente”, 0 conceito de verdade se enriquece dos “poderes do falso”, pois, de uma certa maneira, € justamente na falsidade que trabalha um imagindrio que se apodera dos incomposstveis para afirma- los simultaneamente. “A narragao”, escreve Deleuze, “deixa de ser verfdica, isto é, deixa de pretender o verdadeiro para se tornar essencialmente falsifi- © G, Deleuze, prefiicio a L’Aprés-Mai des jaunes, op. cit., p. 8. ™G. W. Leibniz, Ensaios de Teodicéia, parag. 414-416 e G. Deleuze, L'Image-temps, Paris, Minuit, 1985, cap. 6, p. 171, nota 5. 160 MH DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL cante. Nao é nunca ‘a cada um sua verdade’, uma variabilidade que diz respeito ao contetido. E um poténcia do falso que substitui e destrona a forma do verdadeir , pois coloca a simultaneidade de presentes incom- possiveis ou a coexisténcia de passados nao necessariamente verdadeiros” *. Identifica-se com facilidade a abordagem de Em busca do tempo perdido, que, como € dito em Proust et les signes, “é, de fato, uma busca da verdade... na medida em que a verdade tem uma relagao essencial com 0 tempo”. Essa relagdo é justamente a relacdo dos futuros contingentes, do perspectivismo leibniziano, da coalescéncia, de natureza cristalina, gradual e nao organica, de mundos incompossiveis e, entretanto, concorrentes. Os poderes do falso, trago de toda a arte moderna, da “‘indiscer- nibilidade do real e do imagindrio””, nio afetam apenas a narragio e a imagem. Elas entram no personagem, no ator, no autor. E preciso compreender, com Deleuze, que elas afetam a identidade, inclusive aquela que seria liga- da a uma homossexualidade especffica, para dispers4-la nos diversos niveis da espiral em enunciados simultaneos e paradoxais. Por exemplo, em L’Image- temps, a passagem de duplo sentido da realidade & ficgo em Jean Rouch: “A forma de identidade Eu = Eu (ou sua forma degenerada eles = eles) deixa de valer para os personagens e para o cineasta, tanto no real quanto na ficgao. O que se deixa adivinhar € antes, em grau profundo, o ‘Eu é um outro’ de Rimbaud. Godard o dizia a respeito de Rouch: nao apenas para os préprios personagens, mas para © cineasta que, branco como Rimbaud, declara ele também que Eu é um outro, isto é, Eu um Negro”. Entao, poderia se ver na poténcia do falso uma “dobradura” carac- terfstica da subjetivag&io contemporanea, e singularmente em torno da homossexualidade, desde que esta seja compreendida segundo sua dispersao molecular com os imcompossfveis que inclui. E nesse sentido que é preciso, sem dtivida, ouvir as reflexdes profundas de Deleuze sobre 0 “segredo” de TE. Lawrence, quando fala de uma “disposig&o subjetiva” que a homosse- "Id, ibid. %G, Deleuze, Proust et les signes, op. cit., p. 23. 7G, Deleuze, L’Image-temps, op. cit., p. 171. ™ 1d,, ibid., p. 199. René Schérer ml 161 xualidade nao seria suficiente para dar conta: “uma disposigao subjetiva infinitamente secreta que nio se confunde com o caréter nacional ou pessoal e que 0 conduz para longe de seu pais sob as ruinas de seu eu devastado”, desatando-o das “correntes do ser’’. “Mesmo um psicanalista hesitaria em dizer’, prossegue 0 comentario, “que 1 disposicao subjetiva é a homos- sexualidade ou, mai precisamente, 0 amor escondido que Lawrence trans- forma em mével de sua agdo no espléndido poema da dedicagao, embora a homossexualidade esteja, sem dtvida, inclufda na disposig&o””. Seria permitido completar: mas esta maneira de ser compreendida nao é a prépria homossexualidade, partida, molecular, no edipiana? A homossexualidade nao é um argumento, ela nao se explica, ela implica. A inflexdo de subjetivagio que se forma a partir dela na modernidade e faz apelo as poténcias do falso é a réplica da inflexio de sub- jetivagiio grega, segundo a ordem eterna dos deuses e da cidade, assim como Deleuze a expde em seu Foucault, Inflexao da relago consigo, que curva para dentro as forgas de fora, para que 0 individuo as converta para seu uso, a fim de governar-se, de tornar-se senhor de si mesmo. Ao contrario, a inflexo de subjetivagdo moderna rejeita a cidade e sua ordem sexual. Ela trai os valores masculinos, desliga 0 homossexualismo de qualquer pedagogia. Se ela sempre curva o fora, € como fora puro, © outro em si mesmo, o estrangeiro. Este ultimo, enquanto tal, é a fonte, ao mesmo tempo, de atragées sexuais e de imagens fabulosas acompanhantes de devaneios, de criagdes. Disposigao subjetiva de Guy Hocquenghem nessas linhas iniciais de La beauté du métis: “Talvez eu até mesmo s6 seja ‘homossexual’, como se diz maldosamente, como uma maneira de estar no estrangeiro, quero dizer, uma maneira de pertencer-lhe e de estar no estrangeiro. Talvez eu tenha querido © estrangeiro antes do amante e tenha ao menos encontrado 14 uma linguagem que ultrapassa um pouco a francesismo”™. ” G. Deleuze, Critique et Clinique, op. cit., p. 147. ™ G, Deleuze, Foucault, op. cit., p. 112. 8G, Hocquenghem, La Beauté du métis, Paris, Ramsay, 1979, p. 10. 162M DELEUZE E A QUESTAO HOMOSSEXUAL A justo titulo, Deleuze associa Genet a Lawrence. Uma nota remete as pdginas de Un captif amoureux, em que Genet junta sua homossexua- lidade e sua “mitomania”, sua paixéo de deixar atrds de si uma inagem heréica e exemplar: “As semelhangas de Genet com Lawrenme sao numerosas, e € ainda de uma disposigado subjetiva que Genet se rclama quando se vé no deserto, entre os palestinos, para outra revolta "©. E nao mais que Lawrence, ser do segredo, nao convém buscar um “verdadeiro” Genet sob essas mascaras. Pois ele nao est4 sob, nem atrds, mas com, nas dobras de onde ele faz surgir estas miltiplas figuras, como “uma cocota de papel”, como “espontineo simulador”®. Se a primeira, n&io platonica, nao grega, teoria da homossexualidade é a de Proust, a sigunda se desenha através de toda a obra de Genet, que é como sua imagem invertida. Uma dublagem, um forro, pois € certo 0 parentesco «tre - independentemente da obra pela qual exprimiu a maior admiragio - 0 universo de Genet e aquele, mundano, de Em busca do tempo perdido, do qual ele forma o inverso social. Mundo de vagabundos, viados, criminosos, também todo povoado de signos e mais ainda. Entre esses dois mundos sao arranjadas varias passagens, a lomos- sexualidade entre outras, essa forga que corta transversalmente a sodedade e realiza o encontro entre aristocratas e bas-fonds. Proust ja falou dessa comunica¢ao subjacente, como de uma franco-magonaria secreta, sempre preservando das irregularidades inabitéveis que embaralham as cartas. Mas Genet é o Proust de um universo que nao se deixa mais seduzir pelas aparéncias do “mundo”, mesmo se for para se deixar lacerar por seu humor. A reprovagiio da raga maldita contra a qual Proust esperou se girantir convertendo-a, em sua narragao, em centro motor da sociedade contemporanea, Genet a interioriza; ele mergulha em seu abismo, ¢ atinge 0 ponto extremo em que a traig&o torna-se santidade. Para Genet, a homossexudidade assumida e provocante entra na inflexio singular de subjetivagao a pirtir da " G. Deleuze, Critique et Clinique, op. cit., p. 147, nota 12 ® J, Genet, Un captif amoureux, op. cit., pp. 204-206. René Schérer m 163, | rejeigao radical da ordem social. E nesse ponto em que, em termos deleuze-guattarinianos, pode-se dizer que ela funciona maquinicamente: maquina de desejo, criagio dos tornar-se, m&quina de guerra e de revolta. Ela opera uma torsio de forgas de fora e faz com que se abrace interiormente a causa dos Panteras Negras, dos palestinos, dos transexuais - melhor nomeando, das transexuais em razio de seu devir mulher, cuja causa é confundida com as outras, em um herofsmo comum™, Gragas a Genet, a homossexualidade passa, em suas poténcias, nas quais se misturam e se confundem a verdade e a mentira em “um sentido extramoral”, como dizia Nietzsche, do contetido acabado de uma escolha sexual d forma infinita do devir outro. Devir sempre minoritério, que permitem escapar da representagio majoritaria do “homem”. Esses devir, imanentes a escritura, ilustram de maneira exemplar a férmula deleuziana: “A vergonha de ser homem, existe melhor razo para escrever” *? E a Deleuze que devemos a possibilidade de tragar a linha de homossexualidade que vai de Proust a Genet, linha de incompossiveis simultaneos “que se bifurca e que nao cessa de se bifurcar”®, Tradugao Eliana Aguiar "Td., ibid., p. 208. ® G, Deleuze, Critique et Clinique, op. cit, p. 11 “G, Deleuze, L’Image-femps, op. cit., p. 171 We-~-—-René Schérer € filésofo, Ultimo livro publicado: Usopies nomades, en attendant 2002, Paris, Séguier, 1996.

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