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O Homem Cordial

Sérgio Buarque de Holanda, em "O Homem Cordial", fala sobre o brasileiro e


uma característica presente no seu modo de ser: a cordialidade. Porém,
cordial, ao contrário do que muitas pessoas pensam, vem da palavra latina cor,
cordis, que significa coração. Portanto, o homem cordial não é uma pessoa
gentil, mas aquele que age movido pela emoção no lugar da razão, não vê
distinção entre o privado e o público, ele detesta formalidades, põe de lado a
ética e a civilidade.

Em termos antropológicos, o jeitinho pode ser atribuído a um suposto caráter


emocional do brasileiro, descrito como “o homem cordial” pelo antropólogo
Sérgio Buarque de Hollanda. No livro “Raízes do Brasil”, este autor afirma que
o indivíduo brasileiro teria desenvolvido uma histórica propensão à
informalidade. Deva-se isso ao fato de as instituições brasileiras terem sido
concebidas de forma coercitiva e unilateral, não havendo diálogo entre
governantes e governados, mas apenas a imposição de uma lei e de uma
ordem consideradas artificiais, quando não inconvenientes aos interesses das
elites políticas e econômicas de então. Daí a grande tendência fratricida
observada na época do Brasil Império, tendência esta bem ilustradas pelos
episódios conhecidos com Guerra dos Farrapos e Confederação do Equador.

Na vida cotidiana, tornava-se comum ignorar as leis em favor das amizades.


Desmoralizadas, incapazes de se imporem, as leis não tinham tanto valor
quanto, por exemplo, a palavra de um “bom” amigo; além disso, o fato de
afastar as leis e seus castigos típicos era uma prova de boa-vontade e um
gesto de confiança, o que favorecia boas relações de comércio e tráfico de
influência. De acordo com testemunhos de comerciantes holandeses, era
impossível fazer negócio com um brasileiro antes de se fazer amizade com
este. Um adágio da época dizia que “aos inimigos, as leis; aos amigos, tudo”. A
informalidade era – e ainda é – uma forma de se preservar o indivíduo.

Sérgio Buarque avisa, no entanto, que esta "cordialidade" não deve ser
entendida como caráter pacífico. O brasileiro é capaz de guerrear e até mesmo
destruir; no entanto, suas razões animosas serão sempre cordiais, ou seja,
emocionais.

A filósofa Fernanda Carlos Borges em seu livro A Filosofia do Jeito, aborda da


seguinte forma. A expressão jeitinho apareceu na primeira metade do século
XX, com o processo de modernização industrial do Brasil, quando o
brasileiro,acostumado com a vida social apoiada nas relações pessoais, viu-se
repentinamente transformado em indivíduo. O indivíduo não tem jeito: os
critérios de relação social entre indivíduos estão apoiados na imparcialidade. O
jeito do corpo importa nas relações com o caráter afetivo. Para o indivíduo, o
importante é a autonomia preservada pela imparcialidade normativa.A grande
mídia trabalha com a idéia de que somente o indivíduo imparcial será capaz de
nos “levar para frente”. E tudo que acontece de errado nas nossas instituições
privadas ou políticas (corrupção,suborno, rabo preso, etc.) é tratado como
culpa do jeitinho, que não é uma prática “moderna” e revelaria nosso atraso. No
entanto, a especificidade do jeitinho é priorizar a afetividade em algumas
circunstâncias, apesar da norma.O jeitinho não é conseqüência de um “atraso”
por não sermos indivíduos imparciais. Ele envolve uma outra visão de homem
e organização humana. Só damos um jeitinho para quem sabe pedir com um
jeito: com humildade, simpatia, urgência diante de uma imprevisibilidade.
Diante de um jeito superior ou arrogante não damos um jeitinho, invocamos a
lei. Portanto, ele revela um critério ético e uma axiologia sobre um modo de ser
no mundo: este modo de ser aceita a participação da imprevisibilidade,da
fragilidade, da afetividade e da invenção dentro das organizações.

Em sua obra "O Que Faz o Brasil, Brasil?", o antropólogo Roberto Damatta
compara a postura dos norte-americanos e a dos brasileiros em relação às leis.
Explica que a atitude formalista, respeitadora e zelosa dos norte-americanos
causa admiração e espanto nos brasileiros, acostumado a violar e a ver violada
as próprias instituições; no entanto, afirma que é ingênuo creditar a postura
brasileira apenas à ausência de educação adequada. Pode-se creditar à
pouca-vergonha do brasileiro.

Roberto Damatta prossegue explicando que, diferente das norte-americanas,


as instituições brasileiras foram desenhadas para coagir e desarticular o
indivíduo. A natureza do Estado é naturalmente coercitiva; porém, no caso
brasileiro, é inadequada à realidade individual. Um curioso termo – Belíndia –
define precisamente esta situação: leis e impostos da Bélgica, realidade social
da Índia.

Ora, incapacitado pelas leis, descaracterizado por uma realidade opressora, o


brasileiro deverá utilizar recursos que vençam a dureza da formalidade, se
quiser obter o que muitas vezes será necessário à sua mera sobrevivência.
Diante de uma autoridade, utilizará termos emocionais. Tentará descobrir
alguma coisa que possuam em comum – um conhecido, uma cidade da qual
gostam, a “terrinha” natal onde passaram a infância. Apelará para um discurso
emocional, com a certeza de que a autoridade, sendo exercida por um
brasileiro, poderá muito bem se sentir tocada por esse discurso. E muitas
vezes conseguirá o que precisa.

Nos Estados Unidos da América, as leis não admitem permissividade alguma,


e possuem franca influência na esfera dos costumes e da vida privada. Em
termos mais populares, diz-se que, lá, ou “pode”, ou “não pode”. No Brasil,
descobre-se que é possível um “pode-e-não-pode”. É uma contradição simples:
a exceção a ser aberta em nome da cordialidade não constitui pretexto para
que novas exceções sejam abertas. O jeitinho jamais gera formalidade, e esta
jamais sairá ferida após o uso do jeitinho.

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