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Boa leitura!
Kuniyuki
Rainy Horizon

A chuva sempre me fascinou. Desde pequeno acompanhava pela janela as pequenas gotas de
água irem ao encontro do chão. “Mamãe, por que o céu está chorando?”

Capítulo I

“Filho, acorda, você está atrasado!”, estas palavras tornaram-se comuns para mim
desde que comecei a estudar no período da manhã.

O mesmo de sempre: esfrego os olhos, bocejo, corro para o banheiro e me arrumo.


“Estou de saída, até mais tarde, mãe”.

Minha mãe sempre foi cuidadosa comigo, não me lembro muito bem de meu pai, ele
foi embora quando eu tinha quatro anos, os gritos e o choro daquele dia não saem de minha
memória, assim com as últimas palavras que ele me dirigiu. “Me desculpa, filho, eu te amo
muito, cuidarei para que nada te falte, prometo”. Eu não entendi muito bem e apenas
respondi “Volta logo, papai” com a mesma cara de choro de quando ele saia para trabalhar.

Primeiro dia de aula, caminho lentamente e aprecio a brisa suave de um novo dia
acariciando meu rosto. “Mais um ano...”

Sinto uma mão encostar suavemente no meu ombro.

“Lu?”

Era Alice, nós nos conhecemos desde... Sempre? Minha mãe conta que um dia,
enquanto eu brincava na praça, descobrindo o mundo nos meu primeiro ano de vida, ela e sua
mãe se sentaram ao nosso lado e eu fiquei olhando durante vários segundos nos olhos dela e
sorri. Nunca mais a vi até o meu primeiro dia de aula, aos quatro anos. Soube quem era pelo
sobrenome. Na verdade, minha mãe soube.

Eu me virei e nós nos abraçamos.

“Como foram as férias?”

Seus cabelos castanhos balançavam suavemente ao ritmo do vento enquanto ela


sorria e me contava sobre sua viagem para as montanhas, mas eu não ouvia, estava perdido
em outra coisa.

Logo encontramos o mesmo portão que sempre nos esperou durante todos os anos
anteriores aberto, como sempre.

“Vou pra aula, te vejo no recreio, Lu”

Nós estávamos em salas separadas esse ano, eu me despedi fazendo o possível para
esconder minha cara de decepção e fui para a aula, me sentei no mesmo lugar de sempre,
última carteira, ao lado da janela. O sinal tocou e eu me afundei em meus pensamentos, não
estava interessado nos novos alunos e muito menos nas aulas, sempre fiz o tipo solitário,
minha única amiga de verdade era a Alice, nós compartilhávamos segredos, experiências,
sonhos, tudo.

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Minha primeira aula era química, mas assim como as outras, foram usadas apenas
para que os alunos conhecessem os professores. O contrário também era válido.

No recreio, como de costume, eu e Alice nos escondemos entre as árvores no pátio e


conversamos sobre tudo, professores, férias... Ela sempre com o mesmo sorriso puro no rosto,
um sorriso que sempre me cativou.

Após as aulas arrumei meu material e saí da sala, ela me esperava encostada na
parede ao lado da porta. Cumprimentamos-nos com um beijo no rosto e saímos da escola em
direção a um bosque não muito distante, aonde sempre íamos após o período letivo.

Nós sempre fomos muito amigos, andávamos de mãos dadas e confiávamos um no


outro para tudo, éramos como irmãos.

No dia dos namorados, quando eu estava na quarta série, acho, eu fiz um cartão para
ela. “Te amo”. Eram os únicos dizeres do mesmo, lembro que depois disso eu tentei fugir dela
com o rosto corado, mas ela me seguro pelo pulso e me deu um beijo na bochecha. Senti-me a
pessoa mais feliz do mundo, mas nunca passou disso um simples beijo na bochecha.

Nunca vi Alice se apaixonar por alguém. Muitos já pediram para namorá-la, mas ela
sempre recusava e dizia que nunca ficaria junto de alguém sem amar.

No fundo, eu sempre sonhei com o dia em que nós trocaríamos três palavras, as únicas
três que sempre quis ouvir. “Eu amo você”.

Capítulo II

Ao chegar ao bosque nós nos deitamos embaixo de uma árvore ao lado de um rio
cristalino, ninguém ia até lá, apenas nós dois.

Nós sempre observávamos o céu juntos, às vezes conversando, às vezes no mais


profundo silêncio, meus pensamentos ligados a ela, meu coração eternamente pertencendo a
ela.

“Promete que se você for embora, ainda vai falar comigo?” Perguntei.

“Claro que sim!”

“Mesmo?”

“Mesmo... Você tá bem?”

“Sim...”

Virei-me para disfarçar uma lágrima que escorria de meu rosto, levantei, fitei seu rosto
por cima durante alguns segundos, nossos olhos conectados, comecei a corar.

“... Aposto que chego primeiro na saída daqui do que você!”, eu disse e logo após sai
correndo, rindo e ouvindo atrás de mim gritos.

“Espera!”

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Eu ria, mas por dentro, meu coração chorava. Chorava por quem sempre esteve ao
meu lado, mas ao mesmo tempo, distante.

As árvores passavam por mim como o tempo havia passado por nós, rapidamente.
Foram tantos momentos, mas eu sempre queria mais e mais para sustentar meu “vício”. Meu
vício em seu cheiro, meu vício em seu toque, meu vício em sua voz, meu vício em sua presença.
Eu dependia dela, eu precisava dela, eu desejava tê-la comigo mais do que qualquer coisa.

Ela me alcança e eu tropeço em uma raiz de árvore, caímos os dois juntos no chão,
rindo, ficamos deitados de lado olhando um para o outro, com os rostos próximos o bastante
para que eu sentisse sua respiração. Ficamos assim por alguns segundos e nos levantamos, em
silêncio.

Passamos primeiro em frente à casa dela, nos abraçamos para a despedida e ela abre
lentamente a boca e pergunta:

“Te vejo amanhã?”

“O que você acha?” Respondo com um tom de brincadeira.

E sigo em direção à minha casa feliz e tomado pela saudade, eu passava cada segundo
esperando pelo momento em que nos veríamos mais uma vez.

De noite, dormi enquanto procurava seus olhos dentre o infinito tomado pelas estrelas.

Capítulo III

O que chamam de amor? Para alguns, é um ofício, para outros, um fardo, para muitos, uma
palavra vazia ou uma desculpa para arrancar beijos de alguém. O que é o amor para mim? O
amor é um nome. Nome esse que para mim é tudo.

Juntos, eu e Alice passamos por várias coisas.

Uma vez, na pré escola, meu cachorro morreu, era um sábado. Seu nome era Lupus,
ideia da minha mãe, só mais tarde descobri que ele tinha esse nome por causa de uma
constelação. Eu estava brincando com Alice no parquinho da cidade quando recebi a notícia de
minha mãe, que havia acabado de receber a ligação do veterinário. Pela primeira vez descobri
o significado da palavra dor. Ela ficou do meu lado a tarde inteira, segurando minha mão e
falando pra mim que tudo ia ficar bem. Pela primeira vez descobri o significado da palavra
amor.

Outra lembrança que tenho remete ao meu segundo ano no ensino fundamental, eu
estava desesperado, pois não entendia a matéria da prova de matemática (sou assim até hoje),
tive que ligar para pedir ajuda à ela. Ela fez de tudo pra me ajudar, mas eu não conseguia
prestar atenção na matéria, só no seu modo alegre de falar, havia algo mais nela, eu só não
sabia dizer o que era. Ah sim, eu tirei 3,0 naquela prova, pela primeira vez vi aqueles olhos me
encararem de um modo repressivo. Ela ficava tão linda brava. Até hoje ela fica. Logo depois
esquecemos isso e fomos brincar durante o recreio.

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A mais recente ocorreu ano passado. O pai de Alice havia morrido. Senti-me perdido,
estava quase saindo para viajar com minha mãe no começo do ano e recebi a ligação. Ela
estava em desespero. Ele havia sofrido uma parada cardíaca enquanto estava sozinho em casa,
já era tarde demais quando chegaram.

Cancelei a viagem e fui ficar ao lado dela, me lembro de todas as palavras que tivemos
em um determinado momento nesse dia. Bom, quase todas.

“Ei...” Ela me disse.

“Oi?” Perguntei

“Você me promete uma coisa?”

“O que?”

“Me fala que promete antes...”

“Eu prometo.”

“Você nunca vai me abandonar, não é?”

“...”

Aquelas palavras me atingiram profundamente, eram palavras que eu


inconscientemente desejava ouvir, mas a tristeza de Alice era visível, não consegui ficar feliz,
nunca conseguiria, nunca desejei vê-la triste, mas tinha certeza apenas de uma coisa.

“Eu prometo”

Passamos os dois a noite em claro conversando, depois daquele dia nossa amizade se
tornou maior do que qualquer coisa que eu já pude sonhar em ter. E meu amor por ela, ao
menos para mim, algo muito maior do que eu acreditava um dia poder ter.

Capítulo IV

Palavras. Qual o significado das palavras? Palavras podem ser mensageiras de sonhos.
Palavras podem ser anunciantes da tragédia, palavras podem ser instrumentos do amor.
Palavras podem formar segredos. Palavras podem ferir, palavras podem curar.

Podemos passar a vida inteira desejando ouvir palavras que jamais serão ditas.

“Tudo vai ficar bem.”

“Eu estou com você.”

“Não se preocupe.”

“Segure minha mão”

“Eu amo você”

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E muitas outras, outras que não caberiam aqui e em lugar nenhum.

Palavras possuem significados diferentes para cada um de nós, um “eu te amo” para
muitos é algo banal, para mim, é o sentido de tudo.

O amor, a palavra mais incrível e significativa de todas. O amor pode assumir a forma
que cada um quiser. O meu amor é puro, meu amor é verdadeiro. Meu amor é tudo, meu
amor é eterno. Meu amor é musical, meu amor é melancólico e ao mesmo tempo eufórico.
Meu amor é único. Eu sou o que o amor me fez ser. O amor me faz sofrer. O amor me faz sorrir.
O amor me faz seguir em frente para um dia ser aquele que estará com você dizendo:

“Tudo vai ficar bem.”

“Eu estou com você.”

“Não se preocupe.”

“Segure minha mão”

“Eu amo você”

Meu amor é o que me faz te desejar a cada instante. Meu amor me faz viver, meu
amor é seu e de ninguém mais.

Meu amor possui um nome.

“Alice”

Capítulo V

“Alice”

Chamei por ela em meio à multidão de alunos saindo da escola, era a sétima semana
de aulas.

Ela se aproximou por trás de mim e me abraçou.

“Sentiu minha falta?”

Sorri aliviado e sai junto dela em meio aos estudantes energéticos em busca da saída.

“Pensei que você nunca fosse sair de lá!” Disse ela rindo.

“Eu sou mais esperto do que você pensa, sua boba.”

Fomos almoçar em uma lanchonete perto da escola. Ela pede mesmo de sempre,
“Uma empada e um suco de morango, por favor.” É a mesma coisa desde que nós começamos
a ir almoçar lá, mas ela sempre acaba roubando metade do meu lanche “Eu estou em fase de
crescimento, tá?” A mesma desculpa todos os dias, acho que ela não consegue entender que
se ela não cresce um centímetro que seja desde os 14 anos, agora com 15 ela não vai crescer
muito mais.

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Conversamos sobre a escola, ela tira sarro de mim por não ter ido bem em
matemática... De novo. “Você é muito tonto, sabia? Mas eu ainda gosto de você.”

“Obrigado, eu acho.”

“Relaxa”

E então ela me da um beijo na bochecha, quase encostando em meus lábios.

Eu fico visivelmente rosado e desvio o rosto para o chão, ela tira sarro com a cabeça
apoiada nas mãos:

“O que foi? Não consegue receber um beijo de uma garota tão linda e requisitada
como eu sem ficar com vergonha?”

“Você não tá com essa bola toda, idiota.”

E nós rimos e conversamos o resto do dia.

“Não, não consigo. Qualquer beijo seu para mim é como se eu pudesse andar sobre as
nuvens. Mas você não deve achar o mesmo, não é?” Pensava eu enquanto voltava para casa
aquele dia.

“Vê se fica bem sem mim”

Foram essas as últimas palavras que ouvi dela aquela quarta feira de outono.

No fundo, eu queria dizer apenas uma coisa.

“Nunca vou estar bem enquanto estiver longe de você.”

Capítulo VI

Inverno.

O inverno sempre foi minha estação do ano favorita. Era como se todas as minhas
preocupações se fossem junto das folhas das árvores, mesmo que momentaneamente, ao fim
de cada dia e eu pudesse me esconder sob meu cobertor e meus sonhos.

As aulas iam logo mais acabar e eu estaria livre.

Planos e mais planos, eu me entregava aos planos. Eu e Alice viajaríamos juntos pela
primeira vez, nós dois sozinhos em meio à um lugar completamente novo para ambos. Iriamos
aproveitar o tempo frio e viajar para o Sul (assim como eu, ela gosta do inverno e do frio que
ele trás).

Eu contava secretamente os dias até nossa tão almejada viagem, como se minha vida
fosse se dividir em a.V. e d.V., antes da viagem e depois da viagem.

Separava meticulosamente minhas roupas, “será que ela gosta de azul escuro?”

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Todas as noites sonhava com nós dois juntos nos abraçando na varanda, procurando
manter cada parte do calor que nossos corpos produziam como se fosse a última.

“Será que devo contar à ela o que sinto?”

“E se ela não me amar?”

“Ainda faltam 19 dias...”

Muitos diriam que não passo de um tolo apaixonado. Talvez seja verdade, o amor
pode realmente ser tolice para muitos, mas eu tinha certeza de que para mim seria algo mais.
Eu sabia que ela me completava, que era com ela que eu desejava viver até o fim de minha
vida.

“Ainda faltam 18 dias...”

Minha mãe ria de minha ansiedade que eu tentava inutilmente disfarçar.

O tempo não passava, pairava lenta e delicadamente junto ao vento, como as folhas
que incansavelmente caiam, como se quisesse me dar mais tempo para imaginar cada detalhe
e viver a viagem duas vezes, sendo uma delas na minha imaginação.

“Ainda faltam 17 dias...”

Capítulo VII

Meia noite, não ouço nada além do som de minha respiração.

O relógio continua andando incansavelmente, como se gritasse para que eu dormisse


logo.

Começo a me questionar em meio à solidão:

“Eu não quero mais sonhar.”

“Por quê?”

“Sonhos iludem. É como se tivéssemos uma pequena amostra do que nossa vida
poderia ser e depois ela fosse violentamente arrancada de nós.”

“Sonhos não são só pequenas contemplações de uma falsa realidade, sonhos acima de
tudo alimentam nossas esperanças.”

“Que são destruídas logo após acordar.”

“Nem sempre, eles podem te incentivar a mudar a sua própria realidade, será que não
dá para viver ao menos um sonho?”

“Sempre sonhei. Não tenho capacidade de correr atrás do que eu quero. Dói-me muito
a possibilidade de fracassar e perder quem sempre esteve ao meu lado.”

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“Se você nunca tentar, tudo vai passar pelos seus olhos e você não terá evoluído como
ser humano.”

“Mas terei me poupado do sofrimento.”

“Ninguém pode se livrar do sofrimento, ele faz parte da natureza humana e através
dele aprendemos o que é certo e o que é errado.”

“Ninguém é obrigado a sofrer.”

“Ninguém pode sempre sorrir.”

“Ninguém pode sempre querer carregar o peso do mundo sobre as costas.”

“Ninguém pode sempre estar com amor que sempre sonhou.”

“Você ao menos encontrou, não deixe que mais uma chance escape por entre seus
dedos.”

“Sonhos...”

“Amor...”

“Esperança...”

“Alice...”

“Faltam dois dias...”

Capítulo VIII

“Filho, acorda, você está atrasado!”

“Já estou de pé mãe...”

Saio do quarto ja vestido e com a mochila no ombro.

“Queria que você fosse rápido assim pra se arrumar pra escola.”

Sorrio sem graça, vou em direção à minha mãe e dou um abraço de despedida.

“Vê se fica bem lá.”

“Vou fazer o possível.”

“Você sempre engraçadinho...”

Saio de casa, os raios de Sol batem em meu rosto, arrepio com o vento gelado e sorrio
olhando para as nuvens do céu que se movimentam delicadas e imponentes, como se não se
importassem com o resto do mundo.

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Aquela manhã, eu era uma nuvem. Flutuava sobre o solo de preocupações sendo
levado pelo vento até a estação rodoviária onde havíamos combinado de nos encontrar às 8
horas.

Passava pelas ruas imaginando qual seria a primeira coisa que eu iria dizer.

Nove horas de viagem no mesmo ônibus, nove horas com ela sentada ao meu lado,
observando a paisagem e tentando esquentar suas mãos para afugentar o frio.

Passo em frente a uma praça e observo um casal abraçado rindo. Sinto meu corpo
sendo tomado ao mesmo tempo por euforia e melancolia.

“É como se nada mais importasse para eles...”

Sigo em frente, entro na rodoviária e compro minha passagem, espero-a no banco


onde combinamos.

“8h10min... Ela está atrasada...”

Sorrio sem graça e abaixo a cabeça, ansioso.

Sinto braços me envolvendo delicadamente, viro e encontro aqueles olhos cor de


esmeralda me fitando inocentemente e sorrio, envolvendo suas mãos com as minhas.

“Senti sua falta.”

Capítulo IX

Comprei algo para beber enquanto Alice comprava sua passagem e fui esperar perto
da plataforma onde pegaríamos o ônibus.

O relógio marcava 08h45min, nosso ônibus saia apenas as 09h10min. Sentei em um


banco nas proximidades, todos passavam por ali pensando em suas vidas, em seus problemas,
sequer me notavam, mas eu sentia como se fosse o protagonista de uma história, com o
mundo todo voltado para mim.

Eu procurava sempre olhar disfarçadamente para a escada por onde ela desceria.

“Será que ela ainda vai demorar muito?”

Então, vejo-a descendo distraída pela escada fitando os próprios pés com um ar de
curiosidade, ela para e olha em volta, perdida, puxa a passagem do bolso, observa e sorri,
observa o número das plataformas e passa a caminhar em minha direção, os fios de cabelo
dançavam, destacando-se entre a multidão.

Levanto-me, fitando seus olhos. Para mim, foram segundos que duraram uma
eternidade, talvez alguns dos segundos mais preciosos que já havia vivido até então.

“Você demorou.”

“Não é minha culpa, a fila estava grande!”

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Ela senta perto de mim e começa a brincar com os dedos para passar o tempo, o
relógio marcava 09h00min.

Lembro que guardava comigo as latas de refrigerante, passo uma para Alice, que sorri
agradecendo e bebe um pouco.

“Está frio...” Ela diz.

Então, sinto seus braços envolvendo um dos meus e ouço-a falar com os dentes
batendo levemente um no outro:

“Me esquenta?”

“Claro.” Digo tentando disfarçar a timidez.

Tiro meu casaco e coloco sobre suas costas, então envolvo seu corpo com meus braços
e encosto minha bochecha contra a dela.

“Ah não, você tá me deixando com uma cara engraçada!” Disse ela, com a bochecha
pressionada contra a minha.

Nós dois rimos.

“Ah, veja, o ônibus chegou!”

Nesse momento, meu coração batia mais forte do que nunca. Dirigimos-nos até o
ônibus.

Capítulo X

Embarcamos, procuramos desajeitadamente por nossos lugares, ela na janela, eu no


corredor.

Enquanto Alice observava com o nariz grudado na janela a paisagem rindo do vidro
embaçado pela sua respiração, eu tentava me enfiar no banco como se isso fosse esconder
minha face tomada pela vergonha.

“... Eu to com fome.”

“Mas Alice, você acabou de comer!”

“Eu sei, mas eu to.” Então, ela fez a cara de dó que sempre faz pra mim quando quer
algo, segurando o riso.

“Tá, tá...”

Tirei da mochila um sanduíche e lhe entreguei. Seus olhos brilharam. Uma


alma de criança em um corpo de 15 anos, talvez?

A primeira mordida foi tão grande que ela teve dificuldades para mastigar, eu fiz então
piada de sua cara.

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“Vai nessa, criança, tomara que engasgue.”

“Idiota...” Disse ela, sem graça.

Então ela virou para mim e ficou me encarando com cara de brava.

“O que foi?” Perguntei.

Então ela envolveu meu pescoço com suas mãos, foi se aproximando lentamente de
meu rosto, meu coração passou a bater mais forte, arregalei os olhos, imóvel, sem saber o que
fazer.

Quando nossos rostos estavam apenas alguns centímetros distantes, ela parou, me
olho, abriu lentamente os lábios, meu peito parecia estar prestes a estourar.

“Idiota.” Diz ela novamente, beija o canto do meu rosto e empurra minha cabeça para
baixo.

“Você devia ver sua cara.”

Fiquei de cabeça baixa, sem graça, sorri sem dizer nada. Então, viro meu rosto para ela
e vejo-a olhando para a paisagem, com apenas as bochechas aparecendo levemente para mim,
percebo que estavam rosadas e ela se arrumava inquieta no banco.

“Alice...” Murmuro para mim mesmo, com uma sensação de tranquilidade.

Capítulo XI

Por mais que meus lábios desejassem tocá-la, minha mente me proibia de cometer tal
“pecado”. Teria eu o direito de ser o primeiro a sentir sua boca macia tocando suavemente a
minha? Não, parecia responsabilidade de mais, eu estava com medo de falhar, medo de
quebrá-la com o olhar, medo de perdê-la.

Ela bocejou e depositou sua cabeça sobre meu ombro, agarrando-se ao meu braço, e
logo após murmurou:

“To com sono... Boa ‘noite’, Lu” E fechou os olhos.

Meu nome na verdade é Luiz, mas ela me chama de Lu desde a primeira série. Eu acho
um pouco infantil, mas ela diz que é fofo e que combina comigo.

Depois de algumas horas de viagem, percebo-a tremendo enquanto dorme. Pego meu
casaco e coloco sobre seu corpo.

“Assim você vai se sentir melhor.”

Primeira parada do ônibus, aproveito para pegar uma garrafa d’água na mochila, tomo
cuidado para não acordar Alice.

Lembro que na terceira série, eu entrei na sala de aula após a educação física, suado.
Ela olhou para mim, respirou um pouco, pegou a garrafa d’água de sua carteira e jogou em

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cima de mim, então disse: “Você tá fedendo.” Ela foi parar na diretoria por minha causa. Não
que eu quisesse dedurá-la, mas a professora estava entrando na sala nessa hora. Fiquei com
medo de falar com ela e apanhar durante uma semana, então ela chegou, me abraçou e falou
no meu ouvido: “Não foi sua culpa. Mas vê se não chega mais fedendo.”

A partir dai, nunca mais gostei de educação física.

Alice toca piano desde os cinco anos, aos 13 começou a tocar baixo. Uma vez, quando
tinha oito anos, me chamou para ouvir uma música que ela havia “composto” para mim. Na
verdade, ela só tocou várias notas desordenadamente. Eu achei lindo. Ela tentou me ensinar a
tocar piano, mas pelo jeito, não possuo coordenação o bastante para isso.

A última vez que a vi tocar foi quando fui visitá-la ano passado. Ela estava doente e
havia faltado da escola. Bati na porta e sua mãe atendeu. Suas mãos se moviam delicadamente
pelas teclas enquanto uma melodia suave ecoava por todo o ambiente.

“Você melhorou bastante desde os oito anos...”

“Obrigada.” Ela sorriu e pegou um lenço para assoar o nariz.

Eu passei aquele dia inteiro com ela, acabei pegando a doença dela e faltando durante
uma semana da escola. Não tenho tanta sorte com resfriados, acho que meu sistema
imunológico me odeia.

Foram tantos momentos, tantos desejos, tantos sorrisos, os melhores momentos da


minha vida estavam resumidos na pessoa que, naquele momento, repousava tranquilamente
em meus ombros. Mas quem sonhava, era eu.

Capítulo XII

Ícaro tentou alcançar o Sol com suas asas de cera e morreu, abatido por sua própria
liberdade e ambição, com o derretimento de suas asas que levaram à sua queda no mar, que
por sua vez levou à sua morte.

A história de Ícaro e Dédalo esteve em minha imaginação durante anos desde a


primeira vez que ouvi, aos sete anos. Sempre tive o sonho de voar, cruzar os céus
delicadamente, repousar sobre as nuvens.

Será que eu deveria me arriscar? Será que minha “ambição” pelo amor compensava o
risco de sofrer uma queda da qual eu poderia jamais me recuperar?

Será que a pessoa que esteve sempre ao meu lado poderia provocar meu
desaparecimento no mar que, nesse caso, seria formado por ondas de tristeza e solidão?

Seus olhos inocentes me encaravam.

“Seus olhos são castanhos!” Ela me disse.

“Você nunca reparou?”

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“Não, eles pareciam pretos pra mim, são meio escuros...”

Sorri para ela e olhei no relógio, faltavam ainda duas horas de viagem. Ela dormiu
durante as horas anteriores ao meu lado, eu também dormi um pouco, confesso, com a
cabeça apoiada sobre a dela.

O Sol batia levemente nas janelas do ônibus num tom alaranjado, anunciando o fim da
tarde. O mesmo Sol que derreteu as asas de Ícaro nos observava calmamente por entre as
montanhas, delicado e imponente.

“Você é meio bobo.” Ela fala, do nada.

“Eu?”

“É. Você fica todo corado quando te dou um beijo na bochecha. Eu já te conheço faz
tempo, não precisa ficar assim.”

“Ah, eu? Olha quem fala! Você ficou bem rosada depois do último.”

“Você tentou me atacar com sua boca, seu pervertido!”

“Ei, foi você quem fez isso e depois me bateu!”

Nós dois nos olhamos em silêncio por alguns segundos e começamos a rir.

“Tá com fome, Lu?”

“Um pouco...”

Ela tirou uma barra de chocolate da mochila, quebrou em duas partes e me deu um
pedaço.

“Come a barrinha e isso do beijo fica só entre nós, tá?”

“Tá bom.” Eu disse sorrindo e mordendo a pontinha do chocolate.

Eu, mais do que nunca, queria voar até o meu Sol durante aqueles dias.

Capítulo XIII

Um grande abismo me separa da realidade. O que é real? O que é falso? Sentimentos


me atravessam intensamente, destruindo sonhos, estilhaçando desejos e, então,
reconstruindo sonhos, reparando desejos. Será que vale a pena amar? Será que vale a pena
chorar? Será que vale a pena viver? Será que vale a pena morrer?

Dúvidas me atormentam dia e noite, muitas vezes me impedindo de viver. A realidade


é dolorosa, sonhos são como refúgios. Se me atirar na realidade, posso não mais conseguir
seguir em frente pelo medo da rejeição. Ou será que não sigo em frente pelo medo do que é
real?

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Minha mente é turbulenta, cheia de dúvidas, medos. Apesar de tudo, ainda te coloco
no centro dos meus pensamentos. Alice... Um nome, uma vida, um sonho. Nunca me achei
digno do amor. Na verdade, nunca me achei digno de nada. Talvez eu não deva me arriscar.
Talvez eu deva me arriscar. Talvez eu não deva me dar ao luxo de amar. Talvez eu precise amar.
Talvez eu deva apenas fechar os olhos e me deixar levar pela solidão, desistir. Talvez eu deva
lutar. Talvez eu deva viver. Talvez eu deva morrer, assim como muitas vezes desejei.

Não sei quem sou. Não sei o que vou ser capaz de fazer em dois dias. Tenho medo de
falhar, medo de decepcionar, medo de me enganar. Medo de viver. Medo de amar. Medo de
me envolver.

Nunca fui como os outros, sempre me isolei, procurando evitar a maioria, por que ela
me aceitava se naquele momento nem eu disso era capaz?

Minhas lembranças me atormentam, o passado, o presente e o futuro se unem em


minha mente, bloqueando qualquer esperança de enfim viver.

Minha única certeza era meu amor por você. Mas será que você conseguiria viver com
o peso dessa certeza? Será que você também teria essa certeza? Será que eu conseguiria viver
com essa certeza?

Meu sofrimento ia me corroendo aos poucos, minhas lágrimas há muito não mais
eram capazes de sustentar minha dor e eu a cada dia me tornava mais morto.

Apenas ao lado de Alice eu me sentia vivo, mas mesmo assim, incapaz.

Eu queria muito viver. Mas não podia, pois tinha medo. Viver dificulta tudo, morrer
não, morrer facilita, a morte é um refúgio eterno para uma mente perturbada. A morte era o
fim para mim mais desejado.

Quem sou eu?

Quem ela espera que eu seja?

Quem eu espero que eu seja?

Capítulo XIV

Desembarcamos. Um táxi nos leva até a casinha onde nos hospedaríamos.

“Vocês são namorados?” O taxista pergunta.

“Não, não, somos só amigos.” Responde Alice.

Chegamos, abrimos a porta, cuja chave nos havia sido confiada dias antes e entramos.

18h30min, Já não dava mais tempo de fazer nada pela cidade, deixamos a bagagem no
quarto e subimos até a varanda e nos sentamos em dois banquinhos. Isso, claro, depois de
pegarmos vários cobertores para tentar suportar melhor o frio.

“O céu aqui é tão limpo, não é, Alice?”

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“É sim...”

Ela observava as estrelas como se nunca antes as tivesse visto, esperando a melhor
oportunidade para agarrar aqueles pontos brilhantes no céu.

“Elas são tão bonitas... Lu...”

“Oi?”

Ela ficou durante alguns segundos em silêncio e então disse, em um tom de voz
despreocupado:

“Pega uma pra mim?”

“Você enlouqueceu?” Perguntei, rindo.

“Você sempre tira sarro de mim, chato.”

“Não importa quantas estrelas eu observe ou deseje alcançar, elas nunca irão se
igualar ao brilho de sua existência.”

Ela ficou durante alguns segundos em silêncio, eu pensei comigo mesmo:

“Por que eu fui dizer isso?”

Ela abre a boca, olhando nos meus olhos e pergunta:

“Por que você disse isso? Foi sério...?”

Eu abaixo a cabeça e falo:

“Pra te encher o saco, você acha mesmo que eu iria dizer isso pra você? Eu nem teria
chances!”

“Não quer tentar?” E ela sorri para mim inclinando a cabeça.

Eu me levanto e caminho lentamente até ela. Passo a mão lentamente pelo seu
pescoço, ela me encarava com os olhos. Inclino a cabeça e me aproximo aos poucos de sua
face.

Meu coração acelerava.

Meu corpo tremia.

Minha alma se inquietava.

Meu medo me dominava.

Eu afastei meu rosto, olhei durante algum tempo para o lado e joguei meu cobertor
em cima dela, que se mexia tentando descobrir a cabeça.

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Quando ela finalmente conseguiu, me aproximei do ouvido dela, beijei a bochecha e


falei:

“Quem sabe na próxima?” E sorri.

“Idiota.”

Ela então riu também, sem graça, pegou um travesseiro e me bateu. A batida evoluiu
para uma “guerra de travesseiros” de horas e, então, dormimos.

Ouvir sua respiração naquelas noites foi uma das coisas mais recompensantes que tive
durante toda a minha vida. Ela tornava à escuridão em luz e enchia de vida o silêncio da noite.

Cada vez mais eu te desejava. Cada vez mais minha falta de coragem te afastava.

Capítulo XV

Lembro que um dia me questionei:

Como saberia se ainda estava vivo?

Minha vida respirava tristeza. Como? Como saber se ainda restava um sopro de vida,
por menor que fosse em meu coração? Ele ainda bombeava sangue, mas será que ainda
estaria vivo?

Eu ainda respirava, mas será que ainda era capaz de sentir o ar puro?

Como saberia se ainda estava vivo?

Passava horas encarando o nada, pensando no nada, respirando o nada.

Como saberia se ainda estava vivo?

Minhas emoções ora fluíam, ora se reprimiam. Estariam elas todas nada mais do que
mortas? Se minhas emoções eram mortas, eu também estava morto?

Como saberia se ainda estava vivo?

Nada mais me agradava, nada mais eu almejava, nada mais eu conquistava, nada mais
eu esperava.

Como saberia se ainda estava vivo?

Uma morte se fazia presente, mas ao mesmo tempo, a outra estava distante. Não
deveria a morte interior ser tão triste quanto à física?

Como saberia se ainda estava vivo?

As luzes me encaravam pela rua durante noites solitárias, debruçado sobre o parapeito
de minha janela. Eu as encarava, também, como se estivesse hipnotizado. Seria eu mais uma
luz em meio a várias outras?

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Como saberia se ainda estava vivo?

Noites em claro mergulhadas em melancolia e desespero, nada mais faria sentido no


final? Eu já me encontrava no final?

Como saberia se ainda estava vivo?

Então, eu percebi que talvez eu me encontrasse em seus olhos. Talvez eu pudesse


respirar seu amor. Talvez eu pudesse me emocionar com você. Talvez eu descobrisse que
enfim, estaria vivo, tendo uma vida inteira para viver ao seu lado. Talvez eu ainda estivesse
vivo. Talvez sua presença me mantivesse vivo.

"Quem tem um porquê de viver, quase sempre encontrará o como.”


Nietzsche

Talvez você seja meu como. Talvez você seja meu porquê.

Quem sabe eu estivesse vivo.

Capítulo XVI

O Sol começava a nascer, eu estava sentado na varanda quando ouço som de passos e
me viro. Alice me encarava confusa.
“Lu, que horas são?”

“05h30min...”

“Por que acordou tão cedo?” Disse ela fazendo cara de espanto.

“Acordei e não consegui mais dormir...”

Ela se aproximou e botou uma mão sobre a minha, fazendo-me corar.

“É bonito, não é?” Disse me referindo ao nascer do Sol.

“Muito...”

Alice virou-se para mim e perguntou:

“No que você tá pensando?”

Várias coisas se passavam pela minha cabeça. Desejos, sonhos, lembranças, sons,
sensações, todas ligadas aos momentos que havíamos passado juntos até então. Será que eu
deveria dizer a verdade? Será que eu deveria mentir? Como ela reagiria?

Ela se aproximou e encostou suavemente o dedo indicador em meus lábios.

“Tudo bem, não precisa me contar.”

Eu abaixei meus olhos, observando seus pés delicados cobertos apenas por uma fina
meia rosa se mexendo um contra o outro, tentando fugir do frio, me levantei e fui até o quarto
pegar um cobertor. Voltei e cobri as costas de Alice que olhava com ar de agradecida para mim.

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“Assim você não sente tanto frio...” Disse olhando nos olhos dela.

Ela olhou com o canto dos olhos para o chão e murmurou algo que entendi como “tem
outro jeito de você me ajudar a esquecer o frio...”

“O que você disse?” Perguntei.

“Ah, nada.” Disse ela sorrindo. “Bom, vou trocar de roupa, já venho, Lu.”

Ela se levantou, várias coisas passaram pela minha cabeça e, tomado pelo impulso, me
levantei atrás dela, segurei-a pelo pulso e puxei em minha direção.

Nossos lábios se tocaram, nossas almas se conectaram, nossos sonhos aparentemente


começaram.

Capítulo XVII

Será que ela sentia meu coração? Será que ela sabia que nós dois possuíamos naquele
momento um só coração que batia ao ritmo de nossas emoções?

A sensação de seus lábios suaves encostando-se aos meus me fez leve, capaz de voar,
me fez romper a linha que dividia realidade de ilusão e desejos. Fez-me viver.

Nossas mãos se entrelaçavam, simbolizando a união de nossos corações, uma união


que jamais poderia ser quebrada, uma união eterna.

Depois de alguns segundos, ah, como eu desejava que eles tivessem se prolongado,
nós ficamos olhando um nos olhos do outro e, enfim, olhamos cada um para um lado, os dois
tomados pela vergonha. Virei o rosto. Ela também. Voltamo-nos novamente para lados
opostos e começamos a rir do nada, para o nada.

Quando finalmente nos acalmamos, ela falou:

“Preciso me trocar...”

Eu acenei com a mão de modo que dei a entender que estava tudo bem, me encolhi
num canto e sorri, ao mesmo tempo em que lágrimas tomavam meus olhos. Lágrimas de
felicidade. Quanto tempo desde a última vez que chorei de felicidade?

O cheiro de seus cabelos, seu toque, seus olhos, sua boca, seu coração. Foram tão
poucos segundos, mas tantas sensações. A cena se repetia incansavelmente em minha mente
de todos os ângulos possíveis.

Aquilo para mim era um marco, uma fortaleza, uma vitória, um acolhimento, era o
quase nada que valia por quase tudo, era uma rosa que brotava em meio a um deserto.

Meus olhos dessa vez não se perdiam no horizonte. Iam além. Será que o mundo que
estava na minha frente era o mesmo para ela? Afinal, o que é um mundo? Para mim, mundo é
o conjunto de pessoas, valores, lugares, enfim, tudo que você deixa entrar em sua vida. Ela era
parte do meu mundo. Ela havia se tornado definitivamente a partir daquele momento, o
centro do meu mundo.

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Como seria o meu amanhã? Como seria o meu hoje? Bom, lá no fundo, a verdade é
que eu não me importava desde que ela estivesse presente em todos os momentos de minha
vida e em tudo que eu fizesse.

Sinto uma mão no meu ombro, ela me beija na bochecha:

“Então, o que vamos fazer hoje?

Capítulo XVIII

A luz do Sol batia levemente em nossos rostos através das árvores, o ar puro infiltrava
nossos pulmões. Tantas perguntas caladas, tantas palavras que nunca haviam sido trocadas. E
lá estávamos nós sentados na grama tomando chocolate quentes um ao lado do outro,
intocáveis. O mundo exterior não existia.

“Alice...”

“Oi?”

“O que você sente por mim?” Disse eu meio envergonhado.

“Ah... Eu te amo, seu bobo.” Disse ela igualmente constrangida.

O amor é tão estúpido que chega ao ponto de ser belo. É estupidamente belo,
estupidamente verdadeiro, estupidamente simples e ao mesmo tempo estupidamente
complexo. Nós eramos estupidamente nós mesmos, nós eramos estupidamente um do outro.

“Eu também amo você.” Respondi me aproximando de sua bochecha e dando um leve
beijo.

Passamos horas de mãos dadas evitando nos olhar nos olhos, conversando sobre
nossos sentimentos, nossos momentos.

“Lembra aquela vez que eu disse na sexta série que te odiava por você ter sem querer
rasgado uma folha da minha agenda, Lu? Eu fiquei a noite inteira chorando em casa, não sabia
se sentia ódio ou amor por você... Foi algo idiota, eu sei, mas mesmo assim.”

“Eu me senti a pior pessoa do mundo. Tudo por uma agenda... Pelo menos não
paramos de nos falar.”

“É.”

“É agora que eu tenho que te beijar?” Perguntei “Não sou muito experiente.” Na
verdade, eram meus primeiros beijos.

“Acho que é, eu também não sou.” Ela sorriu, pelo jeito, eram os primeiros dela
também.

Aproximamos nossos rostos suavemente e trocamos um beijo apaixonado, unido a um


abraço e a suspiros.

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Tudo à nossa volta parecia estar incrivelmente em seu lugar. As plantas, a terra, o céu,
as nuvens, o Sol, até mesmo as formigas. Tudo estava perfeito. Tudo era perfeito. Ela para mim
era perfeita.

Desaproximamos nossas faces e abrimos lentamente os olhos. Pela primeira vez após
minutos nossos olhares se cruzavam. Eu vi a sinceridade nos olhos dela, eu vi meu mundo nos
olhos dela e, então, nos unimos em um abraço.

“Alice, eu te amo. Mais do que qualquer coisa.”

Muitas outras lágrimas ainda escorreram pelos meus olhos apaixonados naquela
pequena, mas ao mesmo tempo enorme manhã de inverno.

Capítulo XIX

Alice já estava na casa, eu havia dito que ia comprar alguma coisa para comer. Passei
num restaurante fast-food e comprei dois lanches, então resolvi comprar algum presente para
ela, algo que pudesse fazer com que ela se lembrasse de que estaríamos juntos até o final.

Mas o que comprar? Passei vários minutos sentado em uma praça pensando,
observando de longe as vitrines.

“Quero algo delicado como sua pele, puro como seus olhos, brilhante como sua
própria existência.” Pensava eu comigo mesmo.

Um colar é eterno, delicado, mas não era o que eu procurava. O metal frio não possui
sentimentos, é apenas bonito, luxuoso.

Levantei-me e procurei em várias lojas. Procurei por Joias. Procurei por roupas.
Procurei por pelúcias, procurei por todas as lojas que um namorado normalmente procuraria.
Aliás, o que eramos? Seriamos mesmo namorados? Não havia feito ainda um pedido. Era
necessário um pedido? E se ela dissesse não? E se ela dissesse sim? E se eu não quisesse mais?
Eram muitas dúvidas, mas admito que era divertido imaginá-la usando as roupas, as joias,
abraçando as pelúcias. Alice sempre foi delicada em tudo que fazia e se esforçava para fazer
tudo muito bem, apesar de ser meio atrapalhada.

Parecia que pela primeira vez na vida eu me sentia plenamente feliz. Minha felicidade
era sólida, palpável, cheia de vida. Eu estava cheio de vida. Tudo finalmente se encaixava, cada
segundo, cada detalhe, cada sensação. Ah, quantas sensações novas, seria isso o que chamam
de paz? A Alice era minha paz.

Quando me dei conta, estava quase na hora das lojas fecharem. Entrei em desespero.
Os lanches estavam esfriando, precisava voltar logo para onde estávamos “morando” durante
aquele período.

Percorro ruas e ruas em busca de algo, mas nada parece fazer jus à ternura de seu
olhar.

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Já estava quase desistindo quando passo em frente a uma floricultura. Uma flor. Um
buquê de flores. Flores são belas, flores são perfumadas.

Entrei e pedi para a atendente sugestões. Flores de todas as formas, flores de todas as
cores, combinações, era tudo lindo, mas ao mesmo tempo comum. Falo que vou dar uma
olhada sozinho e começo a percorrer a loja.

Realmente, eram flores muito belas, cada qual com seu perfume, mas nada me atraia.

Meus olhos passam por todas e param. Um ponto vermelho em meio a todos os outros
me chamou a atenção. Era uma rosa. Uma única rosa escondida no canto. Mas a atendente
havia dito que todas já estavam vendidas. Será que haviam esquecido? Será que não a viram?

Estava eu observando a rosa, a rosa observando a mim, bela, imponente, única. A


única entre milhares. Rosas sempre me encantaram, rosas são tristes, solitárias, mas ao
mesmo tempo majestosas. Rosas representam dor. Rosas representam amor. Rosas podem
ferir. Rosas podem te fazer sorrir. Rosas podem te fazer chorar. Na verdade, sempre acreditei
que rosas pudessem chorar.

Comprei-a, a última rosa, peço para deixá-la com espinhos. Tomo cuidado ao segurá-la.
Com o cabo embalado e as pétalas protegidas, saio da loja.

Já estava quase escurecendo. Várias coisas se passavam pela minha mente, o que eu
deveria dizer? O que eu deveria fazer?

E então, antes que eu pudesse perceber, estou parado frente à porta, agora,
finalmente, a última que me separava do meu amor.

Uma nuvem dançava pelo céu. Parecia perseguir o horizonte.

Eu era uma nuvem.

Capítulo XX

Uma porta. A última entre nós. A última fronteira entre eu e me amor, a porta que
dividia o tudo do nada, a porta que dividia naquele momento minha vida.

Abro-a.

Alice dormia calmamente sobre o sofá, eu poderia passar horas observando aquele
rosto que despreocupadamente repousava.

Não importava quão obscura fosse a estrada que eu devesse seguir, quão ofuscado eu
ficasse pelas mágoas que insistiam em me cegar, quão grandioso fosse meu sofrimento, eu sei
que sempre poderia buscar minha paz dentro daqueles olhos que graciosamente haviam se
fechado aquela noite.

Dou alguns passos, sinto o nervosismo percorrendo meu corpo. Aproximo meu rosto
de seu ouvido.

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“Ei. Eu amo você”

E beijo sua face. Ela lentamente sorri para mim.

“Eu também.”

Ela se senta, eu faço o mesmo, mantendo a rosa de certa forma escondida ao meu
lado.

“Alice...”

“Oi, Lu?”

“Senti sua falta.”

“Eu também.”

Beijamos-nos. Um beijo longo e apaixonado, interrompido as vezes apenas para que


pudéssemos ouvir um do outro três palavras que significavam tudo: Eu amo você.

“Ah, eu acho que os lanches esfriaram... Desculpa.”

“Idiota! Como vou comer agora meu lanchinho assim?” Disse ela fazendo cara de dó.

Nós dois rimos e nos abraçamos.

“Eu estou tão feliz...”

“Eu também, Lu, eu também!”

Seguro uma de suas mãos, puxo a rosa e estendo cuidadosamente em sua direção.

“Alice...”

“Oi?” Pergunta ela, imóvel, mas com os olhos brilhando. Brilhando talvez até mais do
que já vi brilharem um dia.

“Essa é uma rosa. Ela é única, assim como você. Exala raro perfume apreciado por
todos os enamorados. O vermelho sangue de suas pétalas atrai nossos olhares, mas por baixo
delas, muito mais do que podemos imaginar se faz presente.

Essa rosa, a última entre várias, representa nosso amor. Eterno, não importa o que
aconteça, nem que suas folhas sequem.

Os espinhos são todos os momentos difíceis pelos quais passamos e com certeza
hemos de passar.

Seu mistério é tão belo quanto seu perfume, sua dor é tão grande quanto todos os
sentimentos escondidos atrás de toda a sua majestade.

Essa rosa representa para mim você. Você é a minha rosa. Rara, eterna, misteriosa,
atraente, o muito escondido por trás do pouco.

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Alice, você, que desde sempre representa tudo para mim, aceita namorar comigo?”

Meus olhos se fecham enquanto espero pela resposta.

Capítulo XXI

Parada. Perplexa. Surpreendida.

Alice me olhava da cabeça aos pés sem saber o que fazer. Ela fecha os olhos e respira
fundo, começa a abrir lentamente a boca.

“Lu...”

Congelo. Respondo engolindo seco.

“Oi?”

O silêncio novamente se faz presente durante alguns segundos, ela encosta uma mão
no meu ombro e se aproxima com o rosto. Um suspiro, um olhar. O destino em um só
momento, o destino em uma só palavra.

“Me desculpa, tá?”

Ela beija minha testa carinhosamente e olha para baixo. Não entendo. Teria eu ouvido
um “não” sorrateiramente disparado em minha direção? Sinto meu mundo inteiro girar e, logo
após, estilhaçar-se violentamente. “Não”? Levanto-me, com os olhos perdidos.

“Uma rosa e seus espinhos. Uma rosa e seus espinhos...” Repito mentalmente.

Alice levanta-se, assim como eu havia feito, me abraça e aproxima seus lábios de meu
ouvido.

“Você é tão idiota...”

Não bastava ter me rejeitado, agora ainda caçoava de mim? Meu chão havia se
perdido. Que chão? Houvera algum dia um chão? Todo esse tempo teria eu caminhado sobre
ilusões?

“É claro que eu aceito, não precisava nem pedir.” Diz ela lentamente para mim.

Tudo à minha volta se recompõe. Meu mundo, meu chão, meus sonhos. Tudo.

Abraçamo-nos. Beijamo-nos. Os dois mergulhados em lágrimas. Lágrimas tão


cristalinas quanto nosso futuro.

Uma rosa e seus espinhos.

Uma rosa e seu perfume.

Uma rosa e seus mistérios.

Capítulo XXII

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Duas vidas, dois mistérios.

Nossas vidas são tão misteriosas que nem nós mesmos somos capazes de entender. O
que é o fim? O que foi o começo? Quando foi o começo? Existiu um começo? Existirá um final?
Quando será o final? Estamos no meio? O que é o meio? O que nos divide? O que nos agrega?
O que nos faz viver? O que nos faz morrer?

Os grandes mistérios do grande ofício de ser humano não me importavam muito


naquele momento.

Os únicos mistérios que me importavam eram aqueles que me encantavam. O mistério


de seus olhos, o mistério de seus pensamentos, o mistério de sua perfeição imperfeita que
perfeitamente me completava.

Alice, o maior mistério entre os maiores mistérios, a mais pura entre os puros. Minha
vida, meu mistério. Meu tudo em meio a um mar de nada.

Não importaria onde estivéssemos, nossos corações estariam para sempre unidos. Eu
percorreria o céu caçando seu olhar entre estrelas, vasculharia o mais vasto campo em busca
da flor que mais perto chegasse de seu perfume. Faria qualquer coisa para sempre lembrar
daquela que faz meu coração bater. Mesmo que um dia nós nos separássemos, eu viveria
apenas por ela.

Nós sequer dormimos aquela noite, passamos o tempo todo observando as estrelas
deitados em direções opostas, apenas com o topo de nossas cabeças quase se encontrando.

“Acho que vi uma estrela cadente, Lu!”

“Quer fazer um pedido?”

Ela encosta suavemente em meus cabelos com uma das mãos e diz:

“Pronto! Você também fez um?”

“Fiz sim. Qual foi o seu?”

“Seu eu falar não se realiza, né?”

“Boba. Eu amo você.“

Alice se levanta e me dá as mãos, me puxando. Fico de pé.

“Você já perseguiu uma estrela?”

Eu olho com cara de desentendido.

“Ela caiu por ali! Vem!”

Saímos em disparada por dentro da casa, de mãos dadas e cruzamos a porta em


direção ao nada.

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Fecho os olhos deixando ela me guiar e, mentalmente, disse essas palavras:

“Alice, eu já persegui uma estrela sim. E encontrei”

Capítulo XXIII

“Alice...”

“Oi?”

Silêncio... Olhares.

Amor, esperança.

O que? Quando? Como? Onde? Por quê?

Por que...?

Por que nenhuma palavra saia da minha boca? Por que nenhuma parte de mim
respondia aos meus comandos? Por quê?

Alice me observava confusa. Passei a encarar seus pés, dentro de meias grossas e
compridas que por sua vez estavam dentro de seu sapato, quase tão delicado quanto os olhos
de quem os calçava. Pés que tentavam evitar o frio esfregando-se um no outro.

Estávamos no caminho de volta para a casa após a perseguição às estrelas. Nada


chamava mais a minha atenção do que Alice.

“Você tá bem?”

Olho para cima. Seus olhos me examinavam confusamente em busca de alguma


resposta. Faço que sim com a cabeça.

Um sorriso. Outro. Será que algum dia já fiquei sem sorrir após ver aquele rosto exibir
tão delicada expressão de alegria? Era o sorriso mais belo que eu já havia visto em toda minha
vida. Puro, gentil, aconchegante.

Caminho em sua direção. Um abraço. Mais sorrisos.

Sua respiração esquentava levemente minha nuca, eramos dois em meio à madrugada,
únicos no meio da rua. Iluminados pelas estrelas e pelas luzes do alto dos postes. Iluminados
pelo amor.

O toque de suas mãos cobertas por luvas não seria tão cedo esquecido por mim. O
perfume suavemente doce de seus cabelos também. Eu estava vivendo os dias mais felizes da
minha vida, finalmente o vazio dentro de mim havia sido preenchido. Por quê?

Por que amamos? Por que sofremos, por que choramos?

Por que estávamos ali parados? Por que estávamos ali calados?

Por que respiramos? Por que vivemos?

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Por quê?

Tantas perguntas, talvez todas com apenas uma resposta.

Sussurro próximo ao ouvido de Alice:

“Por que eu amo você.”

Capítulo XXIV

“Por que eu amo você.”

Por que seu olhar me encanta?

Por que sua respiração me acalma?

Por que sua existência me alegra?

Por que eu me encontro em você?

“Por que eu amo você.”

Ali estávamos, abraçados, unidos, apenas ouvido o som de nossa respiração e sentindo
os batimentos de nossos corações em harmonia.

Amor.

Saudade.

Por que eu sentia saudade? Ela estava ao meu lado, afinal.

Tristeza.

Meus pensamentos me aprisionavam, me afastavam da imagem de seus olhos, me


afastavam do toque de seus lábios, me afastavam...

Afastavam...

Afastavam...

Solidão.

Acompanhado, mas só.

Por quê?

“Eu amo você, Lu.”

Paz.

Sua voz suave me libertava de minha prisão, me libertava da solidão.

“Eu vou estar sempre com você”.

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O poder da palavra. Estava novamente vivo, novamente com os pés no chão. Ou


estaria voando? Alice me encarava nos olhos com a mais pura expressão de amor.

“Eu amo você.”

Três palavras.

Toda minha vida.

Três palavras.

Por toda minha vida.

Três palavras.

Resumiam minha vida.

Alice...

Alice...

Amor.

Talvez, um dia...

Alice...

“Alice...”

“Oi?”

Aproximo minha face da sua e nossos lábios mais uma vez se encontram.
Aconchegamos-nos nos braços um do outro.

Palavras.

Nunca mais do que gestos.

Palavras.

Nunca mais do que amor.

Amor.

Nada mais do que tudo.

Alice.

Nada mais do que minha vida.

Juntos, de mãos dadas, caminhamos até a casa.

Nós observavamos o nascer do Sol.

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O Sol observava o nascer da eternidade.

Capítulo XXV

Dormimos a tarde inteira. Ou melhor, Alice dormiu a tarde inteira. Observei sua face
detalhe a detalhe enquanto isso. Simplesmente não pude dormir.

O orvalho nas folhas tornava os campos levemente brilhantes, toda a natureza criava
um clima aconchegante no ar. Eu esperava ansiosamente aqueles olhos se abrirem para um
mundo totalmente novo. Um mundo de nós dois. Um mundo de amor, cercado de estrelas.

Seu corpo repousava sobre a cama, imóvel, como se estivesse coberto por uma aura
de paz que “contaminava” todo o ambiente.

Um amor.

Um amor que eu podia chamar de meu.

Nossas vidas haviam mudado tanto em apenas um dia.

Duas vidas haviam tornado-se uma.

Seu corpo tremia levemente de frio. Eu delicadamente cubro-a com um cobertor. Alice
sorri levemente e se ajeita.

Não haviam palavras para descrever o carinho que estava sentindo por ela aquele
momento.

Mas e se a eternidade acabasse? E se nossos caminhos se separassem?

Seria eu capaz de viver sem aqueles olhos vívidos?

Seria eu capaz de viver sem aquele toque de carinho? Sem aquela voz de conforto?

Não.

Não suportava a ideia da perda. Era de mais para mim. Tão próxima, mas tão distante.
E se eu falhasse? E se eu não fosse o bastante?

Sentei-me em uma poltrona ao seu lado e acariciei levemente seus cabelos. E se eu


nunca mais pudesse tocá-los? E se nunca mais pudesse cheirá-los?

Tantas coisas que não queria perder.

Éramos duas almas vagando em meio a um mar de amor, inexplorado. E se eu


afundasse? E se esse mar secasse?

Alice acorda e olha em meus olhos, sorrindo.

“Bom dia!”

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E se esse mar para sempre nos transportasse?

Capítulo XXVI

Horas, minutos, segundos.

Os mais felizes de toda a minha vida? Talvez.

Eu havia aprendido a amar Alice com o passar do tempo. Horas, minutos, segundos.
Cada vez mais.

Mas ao mesmo tempo, acumulei mágoas. Horas, minutos, segundos.

Dias preenchidos pela dor, mas ao mesmo tempo pelo amor. Eu desejava aquilo que
eu apenas podia olhar. Sonhos se perderam nessa grande caminhada chamada vida. Por
muitas vezes pensei em desistir, por muitas vezes pensei que tudo estava acabado, que tudo
estava morto. Eu estava morto.

Mas em apenas um dia, tudo criou vida. Aquele mundo cinzento coloriu-se com tons
vívidos. O ar se preencheu com a mais doce melodia. A melodia de nossos corações.

E agora, o símbolo de minha paz, o sentido de minha vida repousava à minha frente.
Como aquele corpo frágil poderia ser tão forte e me sustentar? Como aquele sorriso poderia
ser tão profundo a ponto de me curar?

Eu não pedia respostas naquele momento. Apenas esperava ansiosamente pelo


momento em que aqueles olhos se abririam para mim. Abrir-se-iam para um mundo novo. Um
mundo construído por nós.

Ela havia curado minha alma.

Ela havia preenchido meu vazio.

Ela havia me tirado do abismo.

Não me lembrava de nenhum momento grandioso de felicidade que não estivesse


ligado a ela. Lembro-me de passar noites aos prantos, desejando que junto com as lágrimas,
minha alma fosse levada. Quase tentei tirar minha vida, mas a imagem de Alice sorrindo e me
dizendo que tudo ficaria bem me aparecia e, mais uma vez, me salvava. Ela sempre esteve lá.
Não sei como, mas sempre esteve.

Será que eu, que sequer conseguia manter minha própria felicidade conseguiria trazer
alegria a ela?

Sempre me considerei inútil. Sempre me considerei incapaz.

Nesse momento, lágrimas já escorriam pelo meu rosto.

Sentei-me no chão próximo à cama onde ela estava deitada.

Será que eu merecia esse amor?

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Será que eu poderia sustentar esse amor?

Então, braços me envolvem.

Tudo para, uma última lágrima que escorria pelo meu rosto é suavemente seca pelas
mãos de Alice que, já acordada, diz ao meu ouvido:
“Seque suas lágrimas com amor.”¹

¹: Referência à música Tears, da banda japonesa X Japan

Capítulo XXVII

Último dia de viagem. Tantos momentos passamos juntos. Juntos de verdade.


Momentos que valiam mais do que minha vida inteira.

Havia esquecido todo o ódio.

Havia esquecido toda a tristeza.

Não queria acordar daquele sonho. Um sonho que se sonhava são. Um sonho que se
sonhava a dois. Dois sonhos, um sonho.

A grandiosidade noite não era suficiente para abrigar a plenitude de uma paixão que
de nossos interiores nasceu. As palavras não eram suficientes para abrigar meus sentimentos.

Estávamos ligados pela alma. Elo que jamais poderia ser partido. Elo mais denso que
qualquer material existente. Dois formando um.

“Me diga alguma coisa. Qualquer coisa. Quero apenas ouvir sua voz. Apenas ouvir
minha cura.” Disse eu para Alice, inspirado pelas estrelas refletidas em seu olhar. Eu repousava
minha cabeça sobre seu colo.

Ela se aproximou de mim, acariciou meus fios de cabelo e me beijou.

“Palavras não são necessárias quando duas pessoas se amam, apenas olhares.”

Beijamos-nos, observados pela Lua e pelas estrelas, selando nossa viagem. Uma
viagem que para sempre estaria em nossas memórias. Para sempre estaria em nossos
corações. A viagem de nossas vidas.

Passamos a noite em claro, trocando gestos, olhares, palavras. Tudo. Rimos, choramos,
sorrimos, emocionamo-nos. Todos os dias que vivemos passaram pelos nossos olhos e se
dividiam em antes e depois. Antes e depois do que? Antes e depois de realmente começarmos
a viver. Viver um pelo outro. Viver sustentados um pelo outro.

Já estávamos de malas prontas. Tudo estava pronto. Nós estávamos prontos? Como
seria nossa vida a partir daquele momento? Estaríamos para sempre juntos, de verdade? O
para sempre duraria realmente para sempre?

Fechei os olhos, coloquei a mão sobre meu peito, respirei fundo e pensei:

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“Não importa.”

O para sempre estava em nossos corações.

Capítulo XXVIII

Embarcamos.

Despendido de sonhos passados, cumprimentando sonhos futuros.

A cidade que durante dias nos abrigou, abrigou nossos sonhos ficava cada vez menor
no horizonte.

“Nós não nos despedimos...”

“Como, Lu?”

“Não nos despedimos... Não nos despedimos de nosso passado... Para dar boas vindas
ao futuro.”

Alice me observa confusa e, depois de certo tempo, fala:

“Não precisamos dividir nossas vidas em passado e futuro. Vivamos o presente como
se não houvesse amanhã e como se fosse sempre a primeira vez. Eu amo você, e isso nunca
mudou. Nunca mudará. Nunca vou ser capaz de ver minha vida sem você. Nunca fui. Nunca
serei.”

Abraçamos-nos. O ônibus cruzava territórios. Nós já havíamos cruzado os céus.


Entrelaçado nossos dedos. Cruzado nossas histórias.

Nove horas juntos. Uma eternidade pela frente. Como seria voltar a passar noites sem
ela ao meu lado?

Já sentia saudade. Como poderia respirar? Como poderia caminhar? Como seria viver
buscando apenas um raio de um olhar?

Sonhos doces. Sonhos puros. Sonhos verdadeiros. Sonhos. Há quanto tempo não
sonhava?

Nunca amei alguém além de Alice me minha vida. Nunca me via com outro alguém.
Nunca esperei mais do que palavras. Por que estávamos ali? Era eu digno de tudo aquilo?

Não. Não olharia mais para trás. O passado nada mais era do que passado. Não
deixaria que aqueles momentos tão especiais fugissem de mim. Não me permitiria mais correr
durante a noite dentro de meu coração ferido, perseguido pelas sombrias paredes que me
cercavam. Paredes que escondiam à verdade dentro de mim. Paredes que me separavam do
ato de ser feliz.

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Pintado no mais profundo vermelho, meu coração enfurecido libertava-se de suas


correntes. Não mais me escondia. Passado, presente e futuro uniam-se em seus olhos, que se
uniam ao meu coração.

Lágrimas de dor ja não mais correriam pelos meus olhos. Apenas lágrimas de amor.
Toda a sua existência brilhava em meu coração. Um Sol, em torno do qual giravam minhas
emoções.

Não temia mais o futuro. Não temia mais o passado.

“Nunca diremos adeus.” Dissemos, com a sincronia de nossos pensamentos e de


nossos corações.

Capítulo XXIX

Depois de nove horas de viagem, vários dias juntos, nos separamos.

Lágrimas na rodoviária. Lágrimas no caminho para casa. Lágrimas de amor. Amo


eterno. Lágrimas eternas. Lágrimas que libertavam. Lágrimas que consolavam.

Como seria o amanhã?

No fundo, não me importava. Sabia que ela ainda estava comigo e que eu estaria com
ela. Até os ventos cessarem, até os mares secarem, até o último raio de Sol brilhar, até o
último suspiro, até o último momento.

Sob a luz da Lua, a mesma que já inspirou tantos românticos, eu andava. Ouvia a
harmoniosa sinfonia silenciosa de meu coração. O silêncio de uma alma inquieta. Notas
invisíveis de amor. Não poderiam ser vistas, escritas ou ouvidas. Apenas sentidas.

Primeira noite sem ela. Noite preenchida por pensamentos. Sonhei acordado. Não
pude fechar os olhos. Esperava ansiosamente pelo próximo dia. Primeiro dia de aula, primeiro
dia “oficialmente” com ela. O que pensariam? Não me importava. O que diriam? Não me
importava. Nossas primeiras palavras? De tudo me importava.

Eu esperava mais uma vez pelo momento em que ela tocaria minha alma. Vagando em
um amor profundo, intocáveis. Acima de um mundo de dor. Um mundo de sofrimento. Um
mundo frio. Estaríamos além. Estaríamos em um mundo novo, nosso. Apenas nosso.

Não queria voltar. Nada me faria voltar para “aquele” mundo, repetia para mim
mesmo mentalmente.

Tudo à minha volta parecia pela primeira vez inócua. Minha alma atravessava tudo
sem sentir dor. Minha alma parecia finalmente se encaixar em meu corpo. Minha alma estava
em paz. Tudo estava em paz. Meu mundo estava em paz.

Não mais caia em meio a um abismo. Não mais caia no buraco de meu próprio coração.

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Noite em claro. O relógio parecia passar tão vagarosamente que uma eternidade se
passava entre cada hora. Uma eternidade deliciosamente perdida nas lembranças. Uma
eternidade dolorosamente perdida no anseio do dia seguinte.

Quantas horas até o Sol nascer?

Não sei.

Quantas horas até a escuridão novamente cessar?

Não sei.

Horas...

Minutos...

Segundos...

Horas...

Minutos...

Segundos...

Horas...

Adormeço em meio aos meus pensamentos.

Capítulo XXX

O ar fresco de fim de inverno parecia envolver meus pensamentos. A brisa suave que
me massageava era para mim como as mãos de Alice me consolando. Eu seguia confiante, pela
primeira vez.

Eu havia sonhado. Um sonho tão real que se confundia com a ilusão. Minha vida
sempre fora pura ilusão sobrepondo realidade. Agora, elas se fundiam. Havia perdido
finalmente a linha que dividia minha vida em verdade e mentira, concreto e abstrato. Tudo se
unia em uma grande melodia e meus olhos contemplavam o espetáculo invisível de meus
próprios sentimentos.

Não sentia sono ou desanimo em ir para a aula pela primeira vez em anos. Pelo
contrário, estava ansioso, de olhos bem abertos, fitando o infinito.

Cada centímetro andado era uma vitória. Cada fragmento de ar respirado era uma
conquista. Estava cada vez mais próximo de meu “prêmio”. Seus braços.

Olhos dóceis e misteriosos.

Fios de cabelo suaves e brilhantes.

Palavras puras e gentis, mas fortes e determinadas. Tão determinadas quanto


indecisas.

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Rainy Horizon

Toda a contradição do ato de ser humano na sua mais bela aparição. A mais perfeita
imperfeição, a mais silenciosa sinfonia. O mais intocável do concreto. O mais concreto do
intocável.

Sonhos e realidade.

Realidade e sonhos.

Cada passo, uma vitória.

Uma vitória, um passo.

Uma vitória, um suspiro.

Um suspiro, esperança.

Esperança, amor.

Amor, Alice.

Alice...

“Bom dia!” Me dizem braços que me confortam, chegando sorrateiramente pelas


minhas costas.

“Bom dia, meu amor!”

Capítulo XXXI

Abraçamos-nos. Já estava em frente à escola? Não havia visto o tempo passar. Não
havia visto nada além de sua face em meus pensamentos. Conversaríamos um pouco e depois
nos separaríamos durante o período de aulas. Já estava ansioso pelo próximo reencontro,
quando mal havia tido a chance de “degustar” o primeiro.

Cada palavra me fazia esperar mais e mais pela próxima. Acompanhava cada som que
saia de sua boca, cada expressão, cada movimento. Observava até mesmo o movimento de
cada fio de cabelo.

Quinze minutos pela frente, quinze minutos de sonho. Quinze minutos que seriam
interrompidos bruscamente após uma espera silenciosa e delicada. Contrastes. Toda a vida é
feita de contrastes. Amor e ódio, dor e paz, desespero e esperança, sorrisos e lágrimas, viver e
morrer, lembrar e esquecer. Contrastes tão fortes que acabavam se tornando parecidos e
pouco separados no horizonte, onde apenas o azul profundo reinava. Qual seria a cor da vida?

A vida. Uma junção de sentimentos e momentos. Todos juntos formavam a vida. Como
o branco é formado por todas as cores, a vida é formada por todos os momentos. A vida era
branca, mas com cores alternantes e instáveis. Ora branca, ora cinzenta.

Que cor estava minha vida naquele momento? Acho que realmente não importa.

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Nomes. Nomes que definem coisas. Nomes que definem momentos. Nomes que
definem cada um. Nomes. Significados. Nunca uma palavra é a mesma para duas pessoas.
Nem um dicionário e nenhuma letra são capazes de definir o significado real de cada palavra.
Palavras são pessoais, melodiosas, públicas, silenciosas. Contradições, mais uma vez. O que
afinal não era formado por uma contradição?

Quinze minutos de silêncio. O silêncio que significava mais do que palavras. Olhares
que significavam mais do que a existência. A existência que significava mais do que minha vida.
Quinze minutos tão rápidos quanto lentos, aproveitados em partes

Quinze minutos de euforia. Os tons agudos, médios e graves se uniam à imensidão.


Olhares que não eram nada mais do que olhares. A existência que significava nada mais do que
o existir. Quinze minutos não tão aproveitados quanto desejava.

O contraste do planejado e do real.

Contraste.

O contraste entre o próprio contraste. O mesmo do diferente, o diferente do mesmo.

Palavras vazias, palavras preenchidas com sentimentos.

Palavras.

O amor silencioso, o amor verdadeiro.

Amor.

Alice.

Um momento quebrado por um único sinal.

A separação.

Capítulo XXXII

Primeiras aulas desinteressantes. Mundo desinteressante. O que poderia ser


interessante com um mundo interno muito mais rico pronto para ser explorado junto de Alice?

Sentado em minha carteira observava o tempo passar pelos meus olhos. Pessoas
passarem pelos meus olhos. Palavras que sequer alcançavam meus ouvidos.

Minhas palavras silenciosas não alcançavam seus ouvidos. Alcançavam?

As suas tocavam minha alma.

Um grito silencioso cortava o corredor. Ninguém ouvia. Ninguém sentia. Apenas eu.

Um grito de dor.

Não! Não olhe para trás!

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O passado vinha me perseguir novamente na solidão.

Passado de sofrimento.

Não!

Protegia-me com sua imagem em meus pensamentos. Sonhava acordado pelo seu
abraço. Sonhava acordado pelo seu encanto.

Minha consciência escorria por entre meus dedos.

Tentava te alcançar.

Você já havia escapado de minhas mãos minutos atrás.

Tentava te alcançar.

Escrevia seu nome desesperadamente em minha carteira.

Ouvia seu nome desesperadamente em meu ouvido.

Sentia seu perfume desesperadamente em meu casaco.

Vivia você.

Sentia você.

Caia por você.

Procurava você.

Respirava você.

Quantas horas até ver você?

Quantos minutos até ver você?

O tempo passava pelos meus olhos.

O tempo passava...

Você passava pela minha consciência...

Minha consciência escorria pelos meus dedos.

Você havia ido embora.

Mesmo que momentaneamente, para mim era uma eternidade.

O tempo passava...

Lágrimas escorriam.

Capítulo XXXIII

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Aquela noite você havia ido embora.

Me deixado em meio à nebulosa noite de perguntas.

Por quê?

Como?

Onde?

Quando?

Você me disse que precisava ir.

Vejo-te no paraíso, um dia. Distante.

Quem sabe a luz da Lua não seja mais que o bastante para nos guiar até o paraíso?

Quilômetros. Quantos?

Veja as nuvens... Estão sumindo no horizonte. Como você?

A noite pesada e o ar vivo.

Levados pela Lua.

Quanto?

Palavras misturadas ao destino.

Que destino?

Existe mesmo um destino?

Levado pela luz da Lua...

Um dia.

Sempre.

Um dia no paraíso.

Um dia.

Juntos.

Por que ir embora?

E suas palavras?

Não entendia mais nada. O que estava dizendo? Quem era eu? Por que estavamos ali?
Que paraíso era esse?

Acordo em meio à noite, confuso.

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“Alice...”

Um sonho...

Levado pela luz da Lua.

Capítulo XXXIV

Várias semanas se passaram.

Semanas se passaram, folhas de árvores caíram, flores cresceram.

Semanas se passaram.

Nós nos encontrávamos todos os dias. Após as aulas, antes das aulas, nos dias que
não havia aulas. Sempre.

Palavras de amor trocadas, palavras de amor sentidas.

Tantos bilhetes trocados, olhares cruzados...

Tudo que passamos juntos enriquecia minha alma, acariciava meu coração.

Seu nome decorava cada página de meu caderno e cada pedaço de minha consciência.

Meus olhos examinavam cada milimetro de seu rosto, procurando um defeito em meio
à perfeição imperfeita de seu rosto e sua alma.

Cada dia esperava ansioso à hora de te encontrar, à hora de te abraçar.

Sua respiração tranquilizante em meus ombros me dominava, me enlouquecia.

Sempre seria feliz com você ao meu lado. Sempre.

Para sempre.

Mais uma vez me encontrava a caminho da escola.

Mais uma vez me encontrava a caminho de seus braços.

Mais uma vez me encontrava a caminho de um novo caminho pelo qual


caminharíamos juntos eterna caminhada.

Mais uma vez me encontrava de pé em frente à escola te esperando.

Mais uma vez.

Apenas mais uma vez.

E mais uma.

E mais uma.

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Sempre estaria à sua espera.

Sempre.

Avisto de longe seu rosto em meio à multidão.

Não estava mais sorrindo?

Não estava mais me procurando?

Por quê?

Estaria triste?

Será que feri seus sentimentos?

Será que algo ruim aconteceu?

Cada passo que Alice dava parecia demorar horas. Horas que perfuravam meu coração,
me impedindo de sorrir.

Por quê?

Após tão curta e longa espera, ela se aproxima de mim.

“Lu...”

Silêncio.

Capítulo XXXV

“Lu...”

O silêncio em meio ao barulho. Não ouvia mais nada. Sua boca estava imóvel. Tudo
estava imóvel. O mundo havia parado. O que ela iria me dizer? O que? Por que não sorria? Por
quê?

Seus olhos estavam umedecidos por lágrimas que teimavam em não cair.

“Apenas me diga algo. Qualquer coisa! Você está bem?” Pensava. Palavras que não
saiam. Tantas coisas se passavam pela minha cabeça. Meu corpo parecia estar prestes a
explodir. O que?

Alice carregava uma folha de papel na mão direita. Sua letra emanava tristeza. Estava
levemente amassada e com a tinta borrada. Lágrimas?

Uma folha escrita com lágrimas?

Por que não me dizia nada?

Por que eu não dizia nada?

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Por quê?

Segundos dolorosos que dilaceravam minha alma como uma lâmina afiada, cortando
pedaço por pedaço minha frágil existência.

Por que não me dizia nada?

Por quê?

Alice... Por quê?

Por que nada saia de minha boca?

Por quê?

Por que nada saia de sua boca?

Por quê?!

Por quê?!

O que iria acontecer?

Alice?

Poderia você ler meus pensamentos?

Alice?!

O que estava acontecendo?

O que me aguardava?

O que estava escrito naquela folha?

O que ela iria me dizer?

Lágrimas escorriam pela minha consciência, mas não tocavam meus olhos. Um choro
silencioso. O mais doloroso choro é aquele de quem não pode mais chorar.

Por quê?

O que?

Finalmente reuni coragem.

Coragem para apenas uma palavra que poderia mudar tudo.

“Alice?"

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Afinal...

O que...?

Capítulo XXXVI

“Seque suas lágrimas. Eu estou com você.” Disse procurando manter a calma.

Será que ela ainda estava comigo?

“O que aconteceu?” Pergunto.

“O que aconteceu... Queria saber também...”

Silêncio.

Segundos que se estendiam por horas mais uma vez.

Alice abaixa a cabeça e sai correndo por entre a multidão de alunos.

Não conseguia me mover. Perseguia Alice com a mente.

O que afinal estava acontecendo ali?

O que afinal iria acontecer ali?

Por que você estava fugindo de mim?

Por que meus sonhos estavam fugindo de mim?

Sentia um forte impulso para correr até Alice e perguntar o que estava acontecendo,
mas não conseguia. Minhas pernas estavam atadas ao medo. E se fosse um adeus?

O que afinal havia naquela folha?

Folha escrita com lágrimas. Folha escrita com sangue. Folha escrita com a essência da
alma. Folha que emanava uma melancolia profunda.

Tive forças apenas para ir até a sala de aula e me sentar.

“Por quê?”

“O que?”

As mesmas dúvidas corroíam meu coração.

“Adeus?”

Por que não havia te seguido?

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Por quê?

Por que você chorava?

Estaria eu sendo negligente?

Pedaços de minha alma povoaram folhas durante aquela aula.

Palavras embaralhadas. Lágrimas ocultas. Choro solitário de uma alma torturada.


Palavras. Palavras embaralhadas. Palavras nunca choradas.

Palavras desconexas, palavras inexistentes. Palavras de adeus, palavras de recomeço.


Palavras de dor, palavras de amor.

Eu em meio à sala fria.

Sonhos em meio a mim.

Sonhos fragilizados.

Sonhos.

Perdidos, encontrados.

Sonhos.

Por quê?

Olho para meus pés e vejo uma folha delicadamente colocada sob o pé de minha
carteira.

Folha escrita com lágrimas. Folha escrita com sangue. Folha escrita com a essência da
alma.

Pego com a mão tremula delicada folha de papel.

O que?

Capítulo XXXVII

Uma tremula caligrafia decorava o papel que estava e minhas mãos.

Nós nos encarávamos.

Era como se eu estivesse olhando para um pedaço da alma de Alice.

Tudo que escrevemos com o coração é um pedaço de nossa alma.

Não tinha forças para ler. O que estaria escrito naquele pedaço de papel?

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Sinal para o recreio.

Dobro delicadamente a folha de papel, adiando sua leitura e saio da sala.

Arrasto-me pelos corredores, agora opressores. Todos pareciam me observar.

“Parem de me olhar! Parem de me olhar!” Gritava mentalmente.

Todos pareciam me repreender, sentia como se estivessem cada vez mais calados À
medida que eu avançava.

“Parem de me olhar! Parem de me seguir!”

Sentia como se todos seguissem meus passos silenciosamente e perguntassem para


onde eu estava indo.

Encontrei um lugar livre dos olhares e me sentei.

Abri delicadamente a folha de papel. Suas palavras tremulas mais uma vez me
encaravam.

Repouso meu olhar sobre a primeira palavra e começo a ler:

Capítulo XXXVIII

Tantos sonhos. Tantos momentos. Tantos olhares. Momentos que jamais poderei
esquecer.

Sempre estive ao seu lado assim como você esteve ao meu.

Meus sonhos, seus sonhos, nossos sonhos. Foram tantos.

Promessas feitas sob a luz da Lua, promessas feitas sob as asas do amor.

“Vou estar com você até o fim”, você disse.

E se o fim estiver mais próximo do que esperávamos?

E se a eternidade não puder ser alcançada por nossas mãos?

Lágrimas já mancham essa folha de papel. Guarde-as para sempre como fragmentos
de uma alma que sempre te amou e para sempre te amará.

Envolvi-me com o para sempre, me envolvi em nossas promessas.

Durante a noite, chorava. De alegria, de esperança.

Agora, essa noite, choro. Lágrimas de adeus. Lágrimas de um para sempre que para
sempre acabou.

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Lágrimas de um amor perdido. Lágrimas de um amor esquecido.

Não quero ser forçada a dizer adeus.

Não quero que você ouça como as últimas palavras de minha boca palavras de tristeza.

Não quero que você se prenda a uma falsa luz do que nós fomos um dia.

Abra-se para o futuro.

Abra-se para um novo alguém.

Abra seu coração.

Ame. Mais do que amou a mim. Mais do que amou qualquer uma. Mais do que nunca,
ame. Faça alguém tão feliz quanto você me fez desde que nos conhecemos.

Um dia vamos nos encontrar e espero que, mais uma vez sorrindo, conversemos sobre
nossas vidas. Sobre quão boas elas se tornaram e sobre os nossos novos para sempre,
separados.

Não gostaria de me reter ao motivo. Mas apenas para não deixar dúvidas.

Minha mãe vai se mudar para outra cidade. Logo, terei que ir também.

Não quero ver seus olhos molhados pelas lágrimas que causei. Não quero que essa seja
a última lembrança que terei de você ainda comigo.

Saiba que todos os dias que passamos juntos foram minha vida. Agora terei que seguir
com meu novo amanhã. E você com o seu.

Não queria que fosse assim.

Nunca quis dizer adeus.

Nunca vou conseguir viver do adeus.

Mas não tenho escola se não dizer:

Adeus.

Eu amo você como nunca amei ninguém. Amo você o bastante para querer te ver feliz
com outro alguém.

Alice

Capítulo XXXIX

Meu coração estava apertado. Faltava-me ar, faltava-me chão.

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Então era isso, afinal?

Apenas isso?

Dobrei nova e delicadamente o papel, que escondi mais uma vez em bolso.

Meus olhos incrédulos do que estavam acontecendo olhavam em volta. Nada.


Ninguém.

Sai correndo em meio à multidão procurando um olhar como um cão procurando


abrigo da chuva.

Onde?

Alice?

Não a encontrei sequer em sua sala de aula.

A coordenação, claro! Por que não perguntar por ela na coordenação?

Alice havia saído mais cedo da escola hoje.

Insisto tanto com lágrimas nos olhos que me deixam sair também.

Mais uma vez corri em meio a uma multidão. Cada um com sua lista interminável de
afazeres e com suas vidas para seguir, alheios ao meu drama particular. Alheios a tudo se não
ao próprio mundo. Quantas vezes me indaguei sobre como o mundo deveria ser mais
humano? Na verdade, nunca gostei de ser chamado de humano. Não há humanidade em ser
parte da humanidade, pensava eu.

Cruzava ruas intermináveis, seguia caminhos intermináveis chorando lágrimas


intermináveis. Uma dor interminável.

Por que o sonho tinha que acabar?

Por que nós sempre acabamos por acordar?

Perdia-me em meus pensamentos, tanto que quase acabei por ser atropelado duas
vezes.

Não me importava.

“Conseguiria eu viver sem você ao meu lado?”

Não me importava o cansaço. Não me importava mais nada. Apenas queria poder
encontrar seu olhar.

Tantas ruas intermináveis...

Tantos minutos infinitos...

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Finalmente chego a frente à casa de Alice.

Por que afinal um sonho finito?

Capítulo XL

Déjà vu?

Uma porta. A última entre nós. A última fronteira entre eu e me amor, a porta que
dividia o tudo do nada, a porta que dividia naquele momento minha vida.

Déjà vu?

A diferença agora é que ao invés de um sonho, a porta provavelmente abrigava apenas


um pesadelo.

Respiro fundo tentando me acalmar e toco a campainha. Silêncio.

Segundos...

Minutos...

Segundos...

Horas...

Minutos...

Segundos...

Déjà vu?

“Adeus?”

Por que não havia te seguido?

Por quê?

Déjà vu?

Ícaro tentou alcançar o Sol com suas asas de cera e morreu, abatido por sua própria
liberdade e ambição, com o derretimento de suas asas que levaram à sua queda no mar, que
por sua vez levou à sua morte.

Déjà vu?

Uma avalanche de lembranças dos momentos passados nos últimos meses soterrava
minha mente em dúvidas.

Por quê?

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O medo do que poderia encontrar após aquela porta apenas aumentava minha espera.
Segundos que se estendiam por horas mais uma vez.

Mais um Déjà vu.

Balanço a cabeça de um lado para o outro tentando dissipar a nuvem negra de


sofrimento que tentava constantemente me cobrir.

Ouço sons vindos de dentro da casa.

Som de chave abrindo fechadura.

Som de ansiedade.

A porta se abre, mas a figura que aparece em minha mente é de quando abri a porta
aquele dia.

Déjà vu?

Capítulo XLI

A mãe de Alice me cumprimenta.

“Bom dia, Luiz!”

Pergunto pela Alice. Ela havia saído de casa para relaxar.

Olho sem graça para meus pés, peço desculpas pelo incomodo e saio.

“Onde?”

Sento-me no banco de uma praça próxima ao local onde eu estava.

“Onde?”

Tento afastar os pensamentos ruins para me focar apenas em uma maneira de


encontrar Alice.

Então me lembro que esse mesmo banco onde eu havia me sentado fora antes o local
que assistiu talvez nossa primeira promessa.

Caio em minhas próprias lembranças.

Eu havia completado doze anos no dia anterior. Estava visitando Alice. Ela havia dito
que não pode me visitar no dia anterior e que iria dar meu presente naquele momento, apesar
dos meus protestos. Eu dizia que sua amizade já era presente o bastante para mim, então ela
olhou nos meus olhos e, me puxando pelo pulso, me trouxe até esse mesmo banco onde
estava agora sentado.

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“Fecha os olhos!” Disse ela com um olhar tão amigável que não havia como negar
obediência à tão simples pedido.

Ela me abraçou e, chegando perto de meu ouvido, cantou uma música. Canção de
amor, amizade, eternidade, do brilho eterno que existia dentro do coração de duas almas que
se amam.

Eu estava praticamente hipnotizado por aquela canção tão pura e harmoniosa que
combinava perfeitamente com a voz de Alice.

Ela sempre foi uma boa cantora. Na verdade, ela possuía um talento musical invejável.
Fiquei surpreso ao descobrir que a música havia sido composta por ela, inclusive os arranjos,
os quais tive o prazer de ouvir meses depois. Um piano tão tocante quanto a letra. Fragmentos
da alma de minha amada lançados ao ar como notas musicais.

Logo após isso, meus olhos lacrimejavam de alegria. Abraçamos-nos em silêncio e,


lembro-me apenas de ouvir um “parabéns”.

Então, levantei-me, peguei uma pedrinha no chão e cravei nossos nomes na madeira
do banco, dizendo logo depois olhando para os olhos de Alice que aquilo era o mais próximo
da eternidade que eu havia no momento.

Nós então nos abraçamos e nos dirigimos pela primeira vez ao mesmo bosque que nos
abrigou tantas vezes após as aulas.

Recobro a consciência e me dirijo até esse mesmo bosque.

Vejo uma menina sentada ao lado do rio. Sua presença emanava serenidade, paz,
apesar de seus olhos tristes. Olhos tristes que tanto me encararam um dia.

Aproximo-me e coloco uma de minhas mãos sobre um de seus ombros.

“Alice...”

Capitulo XLII

Olhos tomados por lágrimas me encaram.

Olhos valentes voltados para um futuro incerto.

Olhos valentes voltados para mim.

Alice sorriu sem graça e virou a cabeça para o lado, tentando esconder as lágrimas.

Após limpar o rosto, ela torna a olhar para mim e sorri desajeitadamente.

“Oi!” Dizemos em sincronia.

“Alice, eu...”

“Não diga.”

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Encaramo-nos novamente em silêncio.

Não sabia o que dizer. Não sabia o que pensar. Não sabia o que fazer. Duas almas em
meio à solidão procurando desesperadamente a luz, antes tão presente e então bruscamente
tirada de nossas mãos.

Mergulhávamos em meio ao azul profundo do céu com nossos pensamentos. Palavras


silenciosas trocadas em meio ao nada.

“Lu... Você pode sentir o meu amor?”

Sim. Eu sentia. Não apenas o amor como também sua dor. Por que eu não podia ser
feliz? Por que minha felicidade sempre era abruptamente arrancada de minhas mãos?

“Sim.”

As árvores que nos cercavam choravam. O ar chorava. Nós chorávamos.

O mundo chora quando o amor encontra um obstáculo aparentemente intransponível.

O mundo chora ao ouvir duas almas mergulhando na dor.

Nós não sabíamos o que nos esperava. Nós não sabíamos o que esperar de nós
mesmos.

Passamos horas conversando. Sonhos, ilusões, despedidas intermináveis, lágrimas,


gestos de amor, tudo que podíamos e não podíamos dizer.

Ao final de tudo, um beijo selou a despedida. Adeus. Um adeus que selava meu
coração à solidão. Prometi a mim mesmo não entregar meu coração a mais ninguém.

Naquele dia, mergulhei em meus próprios pensamentos. Escondi-me do mundo, me


escondi de mim mesmo.

Um adeus que encerrava um ciclo. Um ciclo que encerrava o que eu ousei chamar de
vida.

Um adeus.

Nunca mais.

Nunca mais.

Silêncio.

Minha vida em silêncio.

O fim.

O nunca mais.

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Chorei durante meses tentando suportar a ferida que parecia nunca cicatrizar, mas,
enfim, segui em frente. Como havia prometido, fechei meu coração assim como fechava os
olhos toda noites. Buscando o sono eterno. Buscando um novo amanhã onde pudesse te
encontrar.

Dias vazios, dias ao vento. Dias sem cor, dias sem som.

Do que valia uma vida sem você?

Do que valia uma vida sem uma parte de meu coração?

Capítulo XLIII

Dez anos depois.

Pego meu notebook.

Atrasado. Como sempre?

Abro a porta de meu apartamento, a luz do Sol invade meu olhar. Meu olhar invade o
horizonte. Apenas mais um dia, não? Arrumo levemente alguns fios de meu cabelo e
desabotôo um dos botões de minha camisa para ficar mais confortável. Desço até a garagem.

Mais um dia, não?

Desço o elevador.

Tudo no meu dia é cronometrado, cada passo, cada minuto.

Trabalho como designer. Solteiro. Um metro e setenta de pura melancolia. Magro,


cabelos castanhos, um pouco volumosos. Dizem que meus olhos parecem transmitir muito
mais da minha alma do que qualquer outra coisa. Introspectivo. Poucos amigos, mas amigos
em que posso confiar. Pesadelos, sim. Sonhos, também.

Alcanço a saída e dirijo-me até a estação de metrô. Assim como quase todos os outros
dias que vivi os últimos anos. Como disse, sonhos, sim. Mas muito ocultos por trás da neblina
espessa que recobria o meu horizonte. Procurava não manter minha mente ociosa. Pensar
havia tornado-se um pesadelo. Não podia. Se não cairia em uma tristeza profunda, um choro
invisível de olhos que não mais podiam chorar.

Sempre senti como se houvessem arrancado um pedaço de mim e confiado ao infinito.


Meu sofrimento era silencioso e infinito. Um espinho em meu coração. Quanto mais eu
pensava, mais eu me feria, mais esse espinho minha pele dilacerava.

Não posso negar que sou bem sucedido, mas dizem que dinheiro não trás felicidade.
Concordo. Na verdade, ser chamado de inteligente me chateia. O que é inteligência? Do que
adianta ser considerado inteligente se não consigo viver? Ver o mundo de uma forma
diferente machuca. Muito Nunca, nunca me sinto como parte da sociedade. Nunca me sinto
parte de mim mesmo.

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Consciência que não se encaixava na alma. Uma constantemente lutando pela morte
da outra. Ou aliadas em busca da morte.

Mais um dia.

Apenas mais um dia.

Por favor,

Não me permita mais pensar.

Por favor.

Não me permita mais continuar...

Capítulo XLIV

Meus sonhos. Não mais conhecia.

Minha vida. Não mais conhecia.

O prazer em uma manhã de inverno ao lado de uma pessoa querida. Não mais
conhecia.

Não mais me conhecia.

Não mais me procurava.

Nada mais encontrava ou esperava.

Nada mais.

Meus dias passavam iguais, tediosos.

Mais um dia no trabalho se foi.

Mais um dia em minha vida se foi.

Mais um dia.

Deito sobre minha cama, observando o teto, como de costume. Meus olhos fixados no
nada. Não via nada.

Levanto-me. Abro meu guarda roupa, do qual observo o conteúdo de cima a baixo.

Visualizo uma caixa pequena e delicada entre várias. Uma caixa. Lembranças...

Que lembranças? Não conseguia identificar. Um pequeno raio de vida parecia começar
a me iluminar. O que?

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Na ponta dos pés, procuro pegá-la sem deixar cair seu conteúdo.

Abro-a curioso, procurando algo que sabia que iria encontrar, mas ao mesmo tempo
não sabia.

Uma foto. Uma única foto.

Dois adolescentes sorrindo, debochando dos problemas do mundo. Como se não


houvesse mundo quando os dois estavam juntos. Como sem ao houvesse chão. Dois
adolescentes que eu há muito tempo não via ou procurava. Um adolescente sufocado dentro
de mim. Uma adolescente escondida em minhas memórias.

Um nome me vem à cabeça.

“Alice...?”

Junto encontro duas cartas. Duas cartas marcadas pela alma.

A primeira, direcionada a mim. A mim?

A segunda direcionada à Alice.

Sim.

Uma carta que havia escrito anos atrás. Uma carta de despedida nunca entregue.

Leio a primeira com lágrimas nos olhos e então me preparo para ler a segunda.

Repouso meus olhos sobre as primeiras palavras e começo a me recordar de cada uma
que foi escrita e de todo o sentimento contido em cada gota de tinta.

Começo a ler.

Capítulo XLV

Alice,

Estou observando uma foto. Nossa foto. A única que temos desde que estamos...
Juntos?

Não quero aceitar o fim.

Não quero admitir a existência de um fim.

Algo em minha cabeça me impede de dizer adeus.

Algo me impede de pensar em seguir em frente.

Não sei o que dizer, passamos tanto tempo juntos. Você é um pedaço de mim.
Infelizmente, parece não haver outra escolha além de abandoná-la.

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Kuniyuki
Rainy Horizon

Irei para sempre sentir sua falta. Irei dormir todas as noites com a certeza de que irei te
encontrar em meus sonhos.

Foram tantos momentos. Não esquecerei jamais de sua voz suave tocando meus
ouvidos, das notas cantadas e tocadas por você, das palavras gentis que sempre acalmaram
meu coração. Nunca me esquecerei do toque suave de suas mãos em meu rosto, do som de sua
respiração durante a noite, do olhar sereno que sempre me fez seguir em frente. Dos seus fios
de cabelo balançando ao vento, da sensação de sua presença. Da única verdade em minha
vida.

Tenho medo dos anos que virão, tenho medo dos obstáculos que terei de enfrentar sem
você ao meu lado.

Tenho medo de te esquecer, por mais que tenha certeza de que isso não acontecerá.

Tenho medo de ser esquecido. Tenho medo de viver sem você.

Mas tento olhar para o futuro com a certeza de um dia te reencontrar, seja apenas em
meus sonhos ou em um cruzamento entre duas ruas. Sei que um dia nossos corações mais uma
vez irão bater lado a lado.

Minhas lágrimas derramadas sobre a eternidade cicatrizam meu coração.

Fiz a promessa de jamais ter outro alguém se não você, promessa que irei cumprir com
todas as forças que ainda restam nesse frágil corpo.

Espero que você encontre sua felicidade. Espero que você encontre sua verdade. Eu já
encontrei a minha em você.

Não sei se vou poder seguir em frente, não sei se vou poder viver. Mas as estrelas do
céu de seus olhos irão me guiar nas lembranças até o meu repouso em seu sorriso pueril.

Não quero escrever essa palavra, mas não tenho outra escola.

Adeus.

Alice, eu amo você. Como jamais amei outro alguém. Um amor que vai transgredir a
eternidade. Um amor que manterá a chama de minha alma acesa. Um amor que manterá meu
caminho iluminado e livre das sombras da dúvida. Nunca te esquecerei.

...

Afasto a folha de papel já meio amarelada de meus olhos e levanto a cabeça ao teto,
como se procurasse o céu.

Começo a desencadear lembranças de um dia. O último e verdadeiro dia de minha


vida. Entrego-me às lembranças, me entrego aos seus braços.

Revivo então aquele dia. Dia em que realmente nos despedimos. Dia em que não tive
coragem de te entregar essa carta, pois significaria o adeus eterno. Dia que perdi a mim
mesmo.

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Kuniyuki
Rainy Horizon

Capítulo XLVI – FINAL

Minha mente enche-se de lembranças.

Revivo enfim aquele dia. O verdadeiro último dia que passamos juntos.

Já haviam se passado dois meses desde que Alice havia se mudado. Havíamos
combinado de nos vermos. Após longa espera, finalmente iríamos nos encontrar. Esperava
ansiosamente, contava cada segundo.

Ela chegaria à cidade às 15h20min, eu estava esperando na rodoviária, próxima à


nossa escola. (Antiga, para ela).

Ela finalmente desembarca. Seus olhos gentis buscam os meus em meio à multidão.

Finalmente me encontra.

Nossos olhos enchem-se de lágrimas. Corremos para um abraço curto, mas eterno.

Saímos os dois de mãos dadas pela rua. Fomos automaticamente para o bosque. Nosso
ponto de encontro eterno. Nosso “lar”.

O dia estava nublado. Combinava com minha melancolia e serenidade aparente.

Deitamo-nos na grama ainda de mãos dadas, observando o infinito.

Mal trocamos palavras durante esse dia. Trocamos gestos de carinho, olhares, mas
poucas palavras. Poucas palavras que me marcaram para sempre.

A carta estava em meu bolso, mas eu não havia coragem suficiente para entregar.
Entregaria-me ao adeus. Nunca me entreguei. Não admitia tal ato. Seria o mesmo que me
entregar à morte.

Após vários minutos em silêncio, Alice me chama.

“Lu...”

Viro meu rosto para o dela.

Ela também fica em silêncio. Nossas almas estavam em silêncio. Nossas vidas estavam
em silêncio.

Repousei minha mão sobre suas bochechas rosadas e fechei os olhos.

Era um gesto. Um gesto que representava a confiança de minha alma às mãos daquela
que sempre seria dona de meu coração. Lágrimas escorreram de seus olhos.

Levantei, Alice fez o mesmo. Nós nos abraçamos em meio a lagrimas. Abraçamos-nos
em meio a sonhos. Abraçamos-nos em meio ao mundo.

Chorávamos como nunca antes havíamos chorados. Um choro misto de alegria e


tristeza, amor, saudade, vida.

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Kuniyuki
Rainy Horizon

Disse ao ouvido de Alice o quanto a amava. Pedi para mais uma vez ouvi-la cantando
para mim.

Alice cantou com a alma. Sem usar palavras, apenas sons. Os sons de seu coração.

Foi a última e a mais marcante vez que ouvi sua voz soar tão melodiosa.

Após isso, calamo-nos mais uma vez. Foi um dia de silêncio marcado pelo som de
nosso amor.

Passamos vários minutos nos abraçando. Vários minutos nos amando ao vivo. Vários
dias que valeram por anos, mas passaram como segundos.

Olho para o céu. Uma gota de chuva cai em minha testa.

Chuva.

O que a chuva iria me trazer dessa vez?

Desejava apenas que ela levasse minha tristeza embora, minha alma, tudo.

Por que eu estava sendo castigado com um mundo sem meu amor? Por quê?

Abaixo a cabeça e murmuro:

“Por quê?”

Alice se aproxima de meu rosto e desfere um singelo beijo contra minha face.

Levanto meus olhos e encaro os dela, brilhantes e umedecidos.

Abro a boca lentamente e pergunto:

“Por quê?”

Alice me observa confusa e diz:

“’Por que’ o que?”

Fico alguns segundos em silêncio e então caio em um choro profundo. Repouso minha
cabeça contra seu ombro aos prantos e completo minha pergunta:

“Por quê... Por que o céu está chorando?”

Alice então me abraça mais firmemente e, ao pé de meu ouvido, responde


delicadamente:

“Por que ele cai aos prantos sempre que uma alma reconhece seu amor verdadeiro.
Por que o mundo sabe que um dia vamos nos reencontrar e chora em saudade. Por que nós
existimos um para o outro. Por que nós nos separaremos fisicamente um do outro. Por que
compartilharemos nossas almas um com o outro.”

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Após isso, nós não trocamos mais nenhuma palavra. Não tive coragem de entregar a
carta. Mas entreguei um anel. Um anel onde estava gravada uma única palavra. “Eternidade”.

A partir daquele dia, não mais nos procuramos. Talvez por medo da dor. Talvez ela
tenha seguido com sua própria vida. Talvez esteja casada. Talvez... Quem sabe ela ainda...

Observo novamente a caixa que estava em meu colo. Vejo um anel. Nele estava
gravado apenas um nome. Alice. E também havia uma pequena fita de seda amarrada com as
seguintes palavras: “Jamais esquecer.”

Guardo a caixa em meu armário novamente. Guardo as memórias em minha mente.

Dirijo-me até a janela.

Nublado.

Pego uma lista de telefone, procurando desesperadamente um nome.

Será que ela ainda se lembrava de mim? Será que ela ainda amava a mim?

Com o telefone em mãos, disco o número.

Ouço os toques, cada um durava uma eternidade.

Alguém atende. Uma voz feminina madura, mas delicada.

“Oi?”

Começam a cair as primeiras gotas de chuva do dia.

Sorrio com os olhos tomados por lágrimas e mexo lentamente os lábios.

“Alice?”

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A chuva sempre me fascinou. Desde pequeno acompanhava pela janela as pequenas gotas de
água irem ao encontro do chão.

“Por que o céu está chorando?”

Rainy Horizon ----------------------------------------------- Fim.

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Escrito por Kuniyuki

Postado originalmente em: http://rainy-horizon.blogspot.com/

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