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‘Um vie pal bom fe Esta é uma obra introdutéria ao estudo de Hans-Georg Gadamer, oferecendo um relato claro dos temas centrais de sua filosofia, contemplando os materiais mais complexos e disponibilizando um relato valioso e detalhado sobre a sua hermenéutica filoséfica. Expoe e analisa claramente termos-chave — muitas vezes problematicos aos leitores -, como “fusao dos horizontes”, “consciéncia historica eficiente” e “a logica da pergunta e da resposta”, bem como a redefinigao de Gadamer de conceitos como “preconceito”, “autoridade” e “tradico". O livro também mostra a influéncia de Gadamer em outras areas da filosofia, a resposta de outros filésofos ao seu trabalho, como também criticas do seu trabalho baseadas no relativismo. www.vozes.com.br ISBN 978.85.996.4585.4 yaWvavy J9pUSeICWO7) a Bt) NMV1 SIXHD Compreender GADAMER I | Brorrors 2 e& Chris Lawn BN‘ 154 Pete —7 ‘Série Compreender Sail = Comprender Kent Goren Pina «Prac cee reali COMPREENDER Se eae Ce ae oe GADAMER intra sire oe ge eee Uae yaa es Cin Sots ag nr oe Dados Internacionais de Catalogacio aa Publicagéo (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) ww, Chis Compreender Gadamer / Chis Lawn ; radueto de ‘Hélio Magri Filho. ~ Peuspols, RJ: Vor, 2907, - (Série Compreender) “Titulo original: Gadamer: «guide fr the perplexed Bibliografia ISBN 97885-326-5585-5 1, Filosofia alema 2 Gadamer, Hans Georg 19002002 I. Tito. IL Série, 077586 epp.i9s | y EDITORA VOZES Petrépolis {indices para catalogo sistematico 1. Gadamer : Fulesona lem 195 © Chris Lawn, 2006, Titulo original inglés: Gadamer: A Guide for the Perplexed Direitos de publicacdo em lingua portuguesa 2007, Fatora Vores Lida, Rua Frei Luis, 100 25689.900 Petrépotis, RJ Internet: hup://www.vozes.com.br Brasil Todos os direitos reservados. Nenht ; jos. Nenhuma parte desta obra oderd ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma onseaisqer teios(lewdnico out mecnic, incluind fotocépia ¢ gravacio) ou arquivada em qualquer sistema ou bbanco de dados sem permissao escrita da Editora Diretor editorial Frei Anténio Moser Editores ‘Ana Paula Santos Matos José Maria da Silva Lidio Peretti Marilac Loraine Olenki Secretirio executive Jodo Batista Kreuch Editoragdo: Dora Beatriz V. Noronha Projeto grifico: AG-SR Desenv, Grifico Capa: Marta Braiman ISBN 978-85.326-35853 ISBN 0-8264-8462X (edicio inglesa) Este lero foi composto ei Rua Frei Luis, 100 ~ Petr reso pela Faltora Vores Lda, is, RJ = Brasil- CEP 25689:900, Fass (24) 2251-4070 SUMARIO Prepicio, 7 Introdugdo, 11 Gadamer em poucas palavras, 11 + Gadamer ¢ a filosofia, analitica, 15 + A estrutura dos capitulos, 24 1, Quem é Gadamer?, 81 Hans-Georg Gadamer: resumo de uma longa vida, 32 Gadamer ¢ Heidegger, 33 - Gadamer ¢ os nazistas, 35 Apés a guerra, 38» Aposentadoria © reconhecimento internacional, 39 + Gadamer: 0 homem e seu trabalho, 40 2. 0 problema do método, 47 Método e modernidade, 47 - Descartes ea busca pelo método, 48 + Gadamer ¢ 0 método, 52 + O restabelecimento, dda tradigao, autoridade e preconceito, 55 3. Das hermenéuticas as hermenéuticas filos icas, 65 O que sio hermenéuticas?, 65 + Hermentuticas ronuinticas, 66 + Hermenéuticas de Dilthey, 74 + “A. hermenéntica da facticidade” de Heidegger, 76 4, Averdade sem método, 88 Cadamer ea verdade, 88 - A verdade como experiéncia, 86 + A verdade € hist6rica, 89 + A “fusio dos horizontes” € 08, problemas do entendimento do passado a partir do presente, 91 + A consciéncia historica efetiva, 94 + O dislogo, A léqica da pergunta e da resposta, 99 Gadamer sobre a linguagem e a lingiisticalidade, 103 Filosofia e linguagem, 103 » Discurso de Gadamer sobre a matureza da linguagem, 108 + As hermenéuticas da palavra falada, 110 + “O ser que pode ser entendido linguagem”, 111 6. A estética de Gadamer, 117 Arte ¢ verdade, 117 + Arte como um jogo, 122 « Arte como simbolo ¢ festival, 125 » A inclinagao pottica de Gadamer, 128 + Gadamer na linguagem did comum, 131 + O poema como “texto eminente”, 134 7. 0 contemporaneo G: lamer, 139) Em busca da Verdade e métado, 139 + Gadamer ¢ Rorty sobre a solidariedade, 140 + Hersuenuticas aplicadas, 146 8. Companheiros de jomada e criticos, 157 Gadamer hoje, 187 - Gadamer ¢ 0 pésmodernismo, 158 Companheiros de jornada: Witigenstein e Rorty, 160 Griticos de Gadamer, 166 Criticas desconstrutivas, 176 1 181 Glossério, 187 Conctus. Referéncias bibliogrificas, 195 Indice, 201 PREFACIO A proposta para este livro veio de Hywel Evans, ex-editor comissionado em filosofia da Editora Continuum, portanto quero agradecershe por ter me convidado a contribuir com esta sétie de publicagbes. A intengio da “Série Compreen- der", em minha opinilo, ¢ elucidar as idéia filosoficas com plexas e difceis dos importantes pensadores. Espero que eu tenha conseguido me manter fel aesta expectativa. A maioria dos estudos sobre Gadamer exibe uma tendéncia e um enfo- {que em seu trabalho principal, Verade e metodo (VIM, 1989). Este meu estudo procurou ir mais além, tragando os desen- volvimentos do pensamento de Gadamer nos 40 anos 2pés a primeira publicacao do livro Verdadee método. Estou ciente de «que Gadamer € responsivel por uma enorme quantidade de estudos sobre 0 pensamento clissico. Seus inovadores estu dos hermenéuticos, especialmente sobre Plato e Arstételes, nao recebem 0 valor € a consideracio que merecem, € slo ‘mencionados, as vezes, somente de passagem. Procurei apresentar os temas ¢ as idéias principais do trabalho de Hans-Georg Gadamer ¢ explicé-os em termos niotéenicos. Apesar de Gadamer sempre adotar um conhe- cimento detalhado da histéria da filosofia, cle ¢ obstinada- ‘mente nio-técnico, evitando o tipo de filosofia que se atém & logica das distingdes finas. Iso acontece por uma variedade de razdes, Primeiro, ele se coloca em uma tradigao acodémi- ca que nio esté sempre familiarizada com aqueles trabalhos apresentados pela maioria dos envolvidos com o pensimen- to analitico filos6fico angloamericano. Ciente disso, pensei 1. VK = Verdadee metodo (publicado no Brasil pela Edtora Vozes em fornecer os argumentos necessérios e, mais ainda, fazer com que Gadamer seja relevante as idéias ¢ movimentos. além de seus préprios termos de referéncia, isto é,a traliclo intelectual alemé. Segundo, Gadamér 6, inicialmente, dificil de ser posicio nado, pois seu trabalho nao ¢ facilmente classificvel e seu pro- jeto intelectual parece ser muito abrangente e generalized, Em termos flloséficos conven do metafisica ou ética, ou até mesmo filosofia politica, mas mesmo assim consegue trabalhar de forma tal que faz com {que sua filosofia kermenéutica seja mais relevante, além des- sas atividades. Certamente seu projeto ¢ filos6fico, porém se estendendo além da gama, muitas vezes, estreita de muitos f Idsofos contemporiineos. Gadamer procura fazer sentido do entendimento humano como um fendmeno filos6fico, hist6: rico € cultural. Ele procura também, especialmente em seus trabalhos mais recentes, apresentar a dimensio hermenéuti- cade todas as atividades humanas, e é capaz de oferecer uma medida de critica, Alguém pode ver Gadamer como um daqueles tkimos polimatas intelectuais europeus, especializado em linguas mortas € vivas, e tio atualizado com os desenvolvimentos em arte abstrata quanto conhecedor de antropologia, lingiistica € filosofia. Assim como os intelectuais “pés filoséficos" de Ri- chard Rorty, 0 campo de visio de Gadamer para a curiosida- de intelectual era amplo, e sua idéia central de que todoo en- tendimento é, essencialmente, o dislogo é mais bem compre- cendida quando as fronteiras do estreito especialismo sio der- rubadas, e também quando as idéias filosoficas,literdrias e ci- centificas convive em relativa harmon Finalmente, Gadamer ¢ diflel porque sua terminologia, traigoeira, sendo freqilentemente su. gestiva, evasiva e sem muita preciso. Isso, eu sugiro, nao acidental, pois seu trabalho aspira ansiosamente alcancar 0 objetivo de manter aberto o espaco interpretativo sobre c qual sua hermenéutica se concentra de maneira resoluta, Durante todos esses anos, muitos colegas, estudartes € amigos estimularam meu interesse em Gadamer. Um débito ‘especial de gratidio a minha colega ¢ amiga, Louise Camp- Dell, que diligentemente leu € comentou 0s capitulos sobre a “estética, apesar de qualquer infeliz colocagio e interpretacao cerrada ser de minha inteira responsabilidade. Mary Fox, Jeff Lambert, Joby Hennessy, Angus Mitchell e Treasa Campbell ‘que, sem perceber, me fizeram um enorme favor quando me forcaram explicar a verdade ¢ 0 método € a importancia de Gadamer. Nao estou tao certo de que fui bem-sucedido, mas a tentativa foi produtiva, resultando neste livro. E, concluin- do, eu quero agradecer a Margareth por sua pacié os também a Omar e Polly por sua cons- meus agradecin tante amizade. Chris Lawn Desert Cross, Enniskeane, Co, Cork, anda, ‘Setembro de 2005 clawn@eircom.net INTRODUGAO ‘Gadamer em poucas palavras Como poderfamos deserever 0 éxito de um filosofo em poueas palavras? Na obra Great Thinkers A’, de Julian Baggi- ni aceitei o desafio e escrevi a seco sobre Gadamer. A tinica instrucio dos editores era de que a peca escrita nao poderia ‘ter mais que £00 palavras, portanto tive de ser breve ¢ sucin- 10, Isso foi o cue escrevi Desde os tempos de Descartes, afilosofia moderna considerava correto 0 médo como ma rota paraa certera absoluta. Munide de um procedimento ri onal, 0 pensamento humano se torna igual cen ca natural na substituigio das forgis negras da tra Adicio com a verdade objetiva O trabalho de Fians- Georg Gadamer (1900-2002) contesta este discurso cotimista da modernidade, especialmente em su ‘obraprima, Verdade emitdo (1960). Gadamerinicia seu discurso, reavaliando a idéia da tradicio ~ da qual o pensamento ihuminista se distancios - e ale- igando que a “uadigao" e a “razio" nio podem ser facimente consideradas em separado. Para Gad ‘mer, a tradiclo nao pode ser um objeto de question ‘namicnto racional "puro". A idéia de que podemos desviar dos nossos proprios pontos de referéncia cultural para acatar a verdade eterna é uma de- _monstragao fietcia do pensamento moderista, ‘Gadamerrelaciona sua idéia de “tradigao" Areela- Dorada nogio de *preconceito", que ele entende ‘como préconeeito ou préjulgamento, em outras 1. Grandes ponatons de A aZ (N. do wad). palavras, como aquilo que torna possivel qualjuer tipo de discriminago, O preconceito nio é uma forma distorcida de pensauscuto que precisa ser Iapidado antes de vermos o mundo corretamen te, Para Gadamer, os preconceitos estio preser- {esem todos os entendimentos, Contra as reivind: cages do Taminismo de que a razio, separada dt perspectivahistrica e cultural, representa um tes {te paraa verdade, Gadamer alega que nés estamos inredimivelmente incrustados na Kingagem e na ‘cultura - e que o escape para uma certeza clara através do método racional é uma idéia absurda, Como Gadtamer substancia a afirmagio de que as formas de entendimento sio sempre prejudiciais € que nio podemos fazer alegacses estritamente objetivs sobre 0 mundo? Aqui é onde encontra ‘mos sua contribuicdo singular a0 pensamento con temporineo. O entendimento 6, invariavelmen te, *hermenéutico”, ele alega. O termo deriva da hermenéutica, “a variével do conhecimento que lida com a interpretacio” (Diciondrio Oxford), His toricamente, a hermenéutiea era aarte de ler cor. retamentee interpretar de forma exata os textos Aantigos, particularmente a Biblia. Nas maot de Gadamer, a hermenéutica se transformou num rocedimento mais abrangente para o entendl ‘mento em si, que ele chama de hermentutica floss. {fica ea caracterizaem cermos de umn “circulo her ‘menéutico”. A idéia do circulo se refere a0 cons. ‘ante movimento de rotagéo entre uma parte de lum texte #ceu sgnificade total, Quancho fares sentido de um fragmento do texto estamos, sic ‘multaneamente, interpretando o todo. Gadamer justifica a extensio do papel da hermengutica, tor ‘nando. uma caracteristica necesira para qualquer tentativa de entendimento do mundo, fazendo ‘eferéncia 3 hist6ria da hermentuticae ds tentati ‘as iniciais de codificar priticas de interpretagio A hermenéutica é também um filamento submer: 0, existindo através da hist6ria da filosofia. O dis curso de Aristételes sobre a phroness on “sabedo ria prtica” € um caso em vista. Arist6telesafirma «que, Amedida que n6s nos tomamos moralmente ‘orientados, habituamonos a uma tradigio mora, porém oagente moral esti sempre confrontando simuagBes que vio além das regularidades do hiébi to, Esta oselagio entre oabito ea novidade ése- ‘methante & dindmica do circulo hermenéutico | principal autoridade de Gadamer para esta ri: vindicagio€ seu professor Martin Heidegger. Em Sere tenpo Heidegger mostra como a interpreta ‘Gio do mundo é possivel sem um préentendi mento. Contrivio a Descartes, ee mostra que 0 centendimento nio é resolvido na privacidade da consciéncia, mas sim através do nosso ser no mun do. Mas, se todo 0 entendimento interpretacao, entio ele é ainda orientado por aquilo que Gada- mer chama de uma “Tusio de horizonces". Um texto, ou qualquer coisa, ou até mesmo um even to dentro do mundo que interpretamos, tem seu proprio horizonte de significado, A interpretacio cesta situada dentro do horizonte mituo do intér- Prete eda coisa ser interpreta O pemsnmento moderna de que oenendiem to depende de um distancamento da alg, rash nce cima pie are tanca quando visto pela perspec herent ta Fara Gadamer a serdade no € un meio, that smplesmente allo que acontece no die fo Als de imerpremcio eo liga, ua fonverao constante dento da rac, O in thee pres o seid rons mt ten sto desaranjadose redeinidos quando ox pedpriospreconeitos do interprets so que: tos pelo horzonte do texto ou po parceivo to didog. Beskameac, Gada gn que ex Sinifcados nunca podem ser completos, Uma entra conseqiencia ta “fuso a horizons” de Gada € um relacionamento redeinido com o pasado, Se todo oentendimento clog, em tio tanto una conversa com o passa quanto come futuro, Porento, o panaonso Eun pall setrangcro massa fei continue no pre= sente, como uma lingua contempordnea eu balho deaniguidade, juntos, dento de una tae 0 comum. Aqui, novamente, aida a separ {0 metodoligicaé para Gadamer, umn nfo came: ¢0. Nio podemos encontrar um pontoarquimedt ao fora da cultura ¢finguagem em noni sca pela verdade, pois ssi como nosson preconce tos, a8 condigées de entendimentofazem pute dlauilo que procuramos tomar compreenste © questionamento de Gadamer do meétodo rio: nal rejetaaopinio de que arazio existe po is da linguagem. Os produto culturaisinluinco arte) © 0 mundo natural nao sio obetos par i vestgacé racional, mas sim vozes dentro da fi brea de uma conversagiointermindvel (BAC. GINI & STANGROOM, 2004, p. 100.102) Espero que este resumo possa oferecer uma visio geral Algumas vezes, um pid esboco deste ipo pe ser a 'mo lugar para se comecar, e a pessoa nunca estudou seria sents o trabalho de um pensador antes. O que fica evidente nessabreve descrio das conquistas de Gadamer € uma preo. cupagdo sobre as concepcdes herdadas do mundo a respeto a verdade ¢ da razao, um restabelecimento e uma tevisio das hermenéuticasantigas, e uma visio nostlgica do passado dle um mundo prémoderno que} desapareceu, Uma posicio. filossica tio evidentemente contra o mundo moderno deve. «star condenada j de inicio, Na realidade, de forma estrana, o questonamento de Gadamersobrea fundaedes do moder nisme filos6fco o coloca na mesma posicio daqueles penta. ore cicos dos timos 30 anos, chamadon de poe roden nos". Zste € um tema que vou explorar em maiores detalh-s nos ikimos capitals. No desejo de posicionar um pensador dentro das coor nadas do dette sale induc se aban sss audiéncia, éimperativo especular sobre seu lugar na histra da fsota modern dao que as tla cee Aificeis de fazer, sem o peso da historia recaindo sobre a pens. vel efemeridade. £ sempre possivel que um pensador scja so mente capaz de falar dos seus/suas contempordneos/con- temporiineas, nio tendo, basicamente, opinio alguma para as geragdes além da presente. A observacio chinesa de que ainda é muito cedo para refletir sobre as influéncias da Revo- lugio Francesa nos vem a mente. Bu suspeito de que o traba- Iho de Gadamer resistra e se fortalecera quando muitos dos seus contemporaneos ja se transformaram em nada mais que simples notas de rodapé na historia da filosofia do século XX. Seus trabalhos, de alguma forma, assim como os “penstmen- tos fora da estagao” de Nietsche, levardo algum tempo antes ‘que sejam totalmente apreciados ~ especialmente por aqueles ‘que trabalham nas tradig6es Silos6ficas angléfonas. No mo- mento atual, o wabalho de Gadamer recebe reconhecimento, limitado nos patses de lingua inglesa, 0 impacto total de suas ‘conquistas ainda est4 por vie. Na proxima segic deste capi To quero apontar algumas das razdes pelas quais Gadamer ainda no conseguin deixar sua marca. Gadamer e a filosofia analitica Gadamer faleceu em 2002, apés uma vida prodigiosa mente longa. Apesar de considerado como @ Grande Velho Homem da filosofia ¢ das letras em sua Alemanha nativa, quando morreu, ele havia alcangado algo semelhante na Eu: ropa e América do Norte, porém era conhecide somente por ‘um niimero limitado de filésofos angléfonos, teoristas sociais ¢ criticas literrios. Como um filésofo mundialmente reno- mado, ele no é um nome a ser constantementeinvocado; ele indo é pareo para os gigantes jé aclamados do pensamento do século XX, como Wittgenstein ou Heidegger. Existem muitas razdes hist6ricas e culturais por tris desta caréncia de fama, fora do mundo da lingua alema. Primeiro de tdo, devemos dizer que Gadamer no se encaixa no perfil de um estereéti- po fildsofo anglosaxio. Apesar de haver dediczdo toda a sua vida estudando ¢ ensinando, principalmente, fiosofia antiga, interpretagbes notiveis dos clissicos gregos como Platio € Arist6teles, a concepcio de Gadamer da filosofia era excepcio- nalmente ampla, ultrapassando os limites convencionais da. ogica e da epistemologia, o género preferido dos seus cole- gas ingleses e americanos. Gadamer era essencialmente um fi- '6sofo da cultura ou, pelo menos, um filésofo para quem a base da cultura e suas conquistas eram uma questo para re- dexio ¢ questionamento. Ele responde questées sobre as ba- ses das ciéncias humanas e de como elas existem em relagao 4s ciéncias naturais. Sua gama de visio se estende além das teenicalidades da maioria dos filésofos modernos, que além de toda sua complexidade permanecem, freqiientemente ¢ deforma miope, ito de um campo de operacéo limitado ¢ especialista, guardando zelosamente seus proprios Pequenos dominios académicos e lutando contra usurpado- Tes clentificos ¢ outras possiveis ameacas, ‘Na época atual, a racionalidade cientifica é totalmente di. fasa. Apesar dos desatios da teologia e de forcas opostas cultu- rais como o ambientalismo, as filosofias alternativas e da nova ra ainda influenciam a opiniio cientifica mundial, conside- rindose como a linguagem da autoridade e legitimidade na ‘dade moderna: a linguagem através da qual todas as outras vo- 2s devem ser testadas e, fundamentalmente, consideradas au- Sentes. O que ¢ considerado razosvel e accitével em qualquer €poca precisa passar pelo teste da razio, que é, muitas vezes, ‘wna questdo com tendéncia positivista sobrea testabilidade ca verificagio. Para muitos, a opinigo cientifica mundial é verda- de autoevidente, dona de sua prépria autoridade. Por outro lado, existe uma enorme tradigio de pensamento que procura uestionar tal auto-evidéncia, colocando todo o projeto cient fico, ¢ alguns até diriam o Ihuminismo, em divida. A partir do século XVIII, com a ascendéncia do pensa- ‘mento cientifico, aquilo que poderiamos chamar de cultura li terdria, a autoridade dos textos cléssicos e candnicos e arte ¢ literatura, adotaram uma posigio subordinada. Houve uma éfoca quando a expressio, no caso da Biblia, da palavra de Deus, ¢, numa extensio menor, da literatura, as realizacbes supremas da humanidade ~ aquilo que Matthew Arnold de creveu om sua obra, Cultura ¢ anarquia, quando falou sobr reilizagdes culturais de todas as idades, chamando de “o me- hor que é pensado e escrito” ~, foram, depois da revolucao ch centifica, colocados em ctivida como autoridades insuperéveis da sabedoria ¢ verdade, ‘A grande expresso desta nova autoridade é ¢ na obra de René Descartes, Discurso do método, onde ele fala, nna nova linguagem revoluciondria da modernidade cientifica, dda sua descrenca autobiografica da literatura e dos clissicos. ‘ mundo das letras, ele admite, ndo é baseado no raciocinio autoevidente, mas sim na excentricidade de nada mais que 1 € opinio questionavel. Contra isso, quina pensante -ontrada a0 fundacionalismo cartesiano’, partindo depois para a elabo- 2. Heidegyere, na tradigéo anata, Ryle ¢ Wittgenstein no século XX produzem os staques mais influentes a Descartes. ra como a incorporagdo de formas de conhecimerto e verda- de na discrepiincia a uma imagem simplista da ciéncia como luma imagem exata de todas as coisas. O autor inglés, C.P. Snow, apelidou com sucesso esta separagio de “duas cultu: ras" e mostrou como a cultura literaria desempenha um papel importante ao seu oposto nas ciéncias, A separacio, de acor- do com Snow, foi uma fenda na cultura e bem discutida pela ‘massa social dos anos 50, Enquanto para Snow a separagio era cultural, € possivel agora mostrar como essa diviséo tem suas origens na teoria filoséfica que remete ao romantismo, lum precursor éas varias rejeigdes dos dlias atuais do pensa ‘mento iluninista Esta divisio. tre a cultura literdria e cientifica oferece um ano de fundo para uma exposicdo do trabalho de Gadamer ‘em especial, © permite mais genericamente um acesso 38 ori gens daquela velha ¢ cansada divisio entre a filoscfia “conti- nental” ¢ a “analitca”, que por si sé explica por que o trabalho de Gadamer nao recebeu a atengio que merece. Por que isso acontece? Vamos comecar olhando, primeiramente 0 relacio- namento entre ws culturas cientificas¢ literérias ¢ a divisio na filosofia entre os chamados movimentos continental e analiti C0 ou tradigées. so nos levar4.a uma consideracio de uma das importancias do trabalho de Gadamer: como podlemos usar sta versio da hermenéutica para construir pontes através da divisio aparentemente cavernosa c intransponivel entre as cul turas literarias e cientificas. Para Gadamer, existe basicamente somente uma cultura ou tradicio e deveria ser sempre possi- vel, para suas partes discrepantes, encontrarem um idioma co- ‘mum e aleangar um entendimento, nao importando quio limi: tado e provisional tal entendimento possa ser, Indo além das duas culturas, a hermenéutica afirma a possiblidade de didlo- 0 entre as culturas nacionais hostis ¢ aparentemerte irreco. nheciveis; o entendimento transcultural e o didlogo esto sem- pre direcionados, mesmo que nunca perfeitamente obtidos. ‘Gadamer nos lembra que, apesar das recen findaveis dis daalteridade e diferenca, no despertar da desconstru- ‘so, ainda podemos olhar para as coisas que compactilhamos ‘em comum e que nos unem como espécie, sem fazer conces- 80es @ nogéo abstrata de uma humanidade comum, nis ¢ da localizacio geogréfica’, O sonho de uma linguagem es, ervoneo. Por exemplo, um 40k 1.0 sétulo continental é, muitas ve co, Po exempt um ok thethores representantes do pensamentoinicial continental £01 © Pe Inglés Coleridge! nguagem e suas possiidadescraivascimaghaties A on te, a poesia, aliteratura e a metafora nao sio meros ornan tos da linguagem ~ como caracterizads aces \ocador Patio no lio inal da Republi inas vate tall propria inguagem. Os l6sotos que abalhan no eck Gio anatca ma tendéncia de lr Plat deforma irre €olhar par os trabaoslierdsos como. linguagear ens estado decadente Gadamer tom sempre seestuttods reg analea de fazer filosotac, por esta razio, se traballo de tm nl erate especialmente, eu abo sube vga fem, no recebeuo tatamentoadequao no ands de ok ses deling ingles" A pongo losSten de Gadanes eee gindo como sempre o fer das tradigdes continents de hee iment denon em oa Pos i com a maiora dauito que se pasa por llesoia den tod ai ales, Oe pode srt mos aor analiticos €a alana, pela qual no fr apologi gus oe Gadamer com o abo de Martin Heidegger. melo Pensadores analiticos, seguindo as pegude ie Rell nap, Heidegger é um filo eis sofo a ser tratado com uin alto grau de cuidado, pois ele represeita a filosofia europtia nosen ‘pice mais opaco e obscuro’ 6 para termos certeza, a gama de ideias ¢ questdes é a ‘mesma em ambas as tradigdes filos6tica, mas as ahordagens, 0s idiomas ¢ 05 esilos parecem mundos parte como ¢ de ‘monstrado, muita vezs, pelos trabalhos de Heidegger. Mas sso nl € necessariamente o caso, Uma reivindicaio irapor. tante feita nesta introdugéo dos trabalhos de Gadhmer ¢ de que ele € de importéncia vital como um construtorde ponte centre as duas ~ muita a = tr 8 Vezes antagonicamente suspeitas ~ tra. 4igBes. Isso pode parecer como uma extraordindria declare ‘do a ser feita, pois existe uma preocupacio clara e evidente a oposicao com os trabalhos de Gadamer em relacio aoe 4. Excegesinctuem Lawn (2004) 5. Camap (1 Samap (1974 acusonabertamente Heidegger de fouls dlaragdes metafisicas como “O nada nadifcat a ‘analitica, mas vou procurar jus principios centrais da filoso tificar esta posicio nos eapitulos seguintes. Uma razao ime- dita para o fracasso de Gadamer em deixar sua marca no mundo filos6fico angléfano esté na sua distancia do estilo predominante de andlises, que se modela nos procedimentox métodos da ciéncia natural. Podem até existr dividas de certos segmentos, como sio evidentes a respeito do trabalho ‘de Heidegger, de que aquilo que Gadamer faz seja realmente filosofia, Entio, o que ele faz? Hie trabalhana tradicio da her rmeneutica e, emergindo dela, seu trabalho é conhecido como hhermenéuticafilosofica’ ‘A hermenéutica filos6fica é uma frase em fraca circulae ‘fo no mundo dos paises da lingua inglesae isso é uma outra razio para excluir Gadamer do cendrio filos6fico. A herme néuticafiloséfica cresce a partir de uma atividade mais antiga, conhecida simplesmente como hermenéusca Iso é definido pelo Diciondrio Oxford como “uma ramificaga0 do conheci mento que lida com a interpretagio, especialmente da Escri- cura ou textos literdrios”. Portanto, hermenéutica comega a vida como um procedimento ou técnica para a interpretacio de textos sagrados e clissicos. A interpretacdo envolve mais, «que uma investigagao flos6fica das origens histbricase signi: ficados das palavras, ela pode ser vista como um elemento no processo, no ato ou evento do entendimento em si. Esta é ‘uma das contribuigdes mais importantes de Gadamer ao pen samento contemporineo. Seu compromisso com a idéia de que todo o entendimento é interpretacio, demonstra que as hhermentuticas estio envolvidas em todos os atos de entendi mento, isto é, a8 hermenéuticas vio além cos limites da inter- pretacao textual. Narealidade, para Gadamer, as hermmenéuti- cas sio universais: aquilo que acontece quando interpretamos, tum texto € 0 que acontece quando procuramos entender 16.0 subttulo do principal vabatho de Gadamer, Verdade ¢ métado, € "Esbocos de uma hermeneuticafilosétiea"O subuitulo do livro nfo agra ‘dow a0 editor por ser pouco irspirado, pois era de ser precedido pelo t tulo propriamente dito: Compreender ¢acontcey. Depots se encontrou o tulo que fara fortuna, Verdadr métdo (publicado no Brasil pela Bitora ‘Vore). qualquer coisa em nosso mundo sociocultural, seja o signifi- ado da vida ou uma interpretago mais comum dos objetos Gisrios, das idéias e situagSes. A leitura é interpretacao, olhar ¢ imerpretagio, pensar é interpretagio; interpretagdo nio € Luma atividade especial restrita& elucidacio de texts diffcels, cla €um aspecto de todas as formas do entendimento huma, no. Retornando a distincio que ofereci anteriormente entre Cultura cientifiea ¢ iteraria. Gadamer estd mais preocupado com ‘o entendimento” clo que com o mais limitado e possivel, Imente mais técnico “conhecimento”. Talvez isso forneca a chave da visdo filoséfica de Gadamer. Certas versdes da filoso- fia podem ver suas fungdes como um questionamento da na {ureza limites do conhecimento humano, como era sem di, Vida 0 caso no perfodo do alto modernismo no século XVII Mas, o entendimento, os processos ¢ atos do entendimento, ue ocorrem diariamente em nossas tentativas de fazer sents do donosso mundo, estao incessantemente em funcionamen. {e panias hermentuticas, Gadamer ve na apropriagio e nego. ciagio diéria do mundo o entendimento hermentutico em funcionamento, Por esta razio, a filosofia ea aividade prtica nao esto tio a parte e, novamente por esta razio, 0 trabalho de Gadamer ¢ tao distante das tecnicalidades da filosofia ana, Iitica. E, novamente, pelo fato do entendimento hermenéuts Co e oentendimento serem evidentes em todas as atividades riticas ¢ preocupacdes, adistingio entre a literariae a cienth, fica desaparece, - O entendimento é maior que a literaria ¢ a vena mente, de Martin Heidegger, para liberatas herent desu eamisa de forga metodolgiea,O wabalho ssc dese penhido € mosvar como o enteimento & bascimente ie tric. somente quando este caminho for pererrde gue hermentuteas Blosfcas poerio ser aeatadans Hermenéuticas de Dilthey Depois de Schleiermacher, a figura mais significativa no. desenvolvimento das hermenéuticas € 0 seu bidgrafo, 0 fil. sofo alemio e pensador social Wilhelm Dilthey (1833-1911), Dilthey ¢ uma figura central nos debates do século XIX sobre ‘anatureza e o status da ciéncia, ¢ ele teria um profundo efeito sobre o futuro desenvolvimento das hermenéuticas, especial- mente sobre o trabalho de Heidegger ¢ Gadamer. Contra uma tendéncia prevalecente de juntar todos os coahecimen ‘tos em uma categoria ampla da ciéncia, Dilthey viuo conheci mento como possuidor de duas partes componentes distin- tas, as ciéneias naturais ¢ as ciéncias humanas (Geisteswiscens- chaften); a ciéncia natural como atividade que normalmente ‘entendemos como ciéncia, ¢ a ciéncia pura da causa e efeito, As ciéncias humanas eram todas aquelas nhecin unificagSes do co- "nto, preocupadas com entendimento da pratical dade da vida humana, como economia, histéria e filosofia Dilthey inelui também os aspectos mais criativos da humani- dade, que por si 6 eram uma expressio da vida, da arte e da literatura. Nés nos referimos com freqiiéncia a elas como tes ou humanitérias. Para Dilthey, aquilo que divide estas ‘duas categorias basicas de conhecimento é 0 seu objetivo. No ‘caso da ciéncia natural, o ponto é disponibilizar explicagdes, Mas, explicagZo casual ¢ inapropriada as ciéncias humanas; 0 que énecessario aqui é 0 entendimento, Verstehen, a0 invés de descri¢ao empirica direta e explicagio. Dilthey alerta para os Perigos de aplicar metodologias da ciéncia natural, embora existam metodologias bem-sucedidas para a explicagio e des- rico das conexdes casuais entre as coisas €o mundo natural, para as atividades estritamente humanas. Até mesmo Aris- \Gteles, na secio inicial metodolégica da sua obra, Etica Nici mmaco, sugere cautela para aqueles na expectativa de um tipo de precisio e exatidao da ciéncia no estudo dos assuntos hu- manos. Considerando a complexidade ¢ a imprevisibilidade da vida social - 0 fato elementar de que nés todos somos, de alguma forma, tinicos e diferentes ~ temos que nos contentar com coisas que io, na sua maioria, verdadeiras. Entio, que tipo de verdades podemos legitimamente esperar obter de um estudo das ciéncias humanas? Mais que isso, o problema com qualquer estudo da vida humana é que sempre somos parte daquilo que estamos procurando entender. Isso cria di ficuldades especiais que nio sio imediatamente dbvias na ciéncia natural, pois os ideais de imparcialidade e desapego slo mais Eiceis de identificar com o estudo de dados emp cos, O sentido no qual, segundo Gadamer, Dilthey € mais avangado que Schleiermacher est em seu distanciamento da interpretagio psicolégica, longe do foco em significados sub- jetivos e num movimento em diregio a uma categoria mais ampla da “vida”. Desde Feuerbach e Nietzsche, existe um mo- vimento em filosofia que prioriza a categoria da vida sobre a reflexio e a raziio, acatando qualidades cognitivas como sen- do uma parte integral da vida e nao qualidades exclusivamen- te separadas, Tent do mundo a partir de um ponto de vista teérico ¢ racional sio criticadas porque a reflexio floséfica ignora o pensamento pré- filos6fico do “mundo-vida' e, conseqdentemente, traz violén- a aos nossos relacionamentos didrios no mundo. Nés esta mos envolvidos no n nele antes de comegarmos a filosofar. Na realidade, a pers. pectiva filoséfica sobre a vida é uma distorcio, dependendo das formas de pensamento nio relacionados com 0 carter real dos relacionamentos humanos no mundo. ras filos6ficas de fazer sentido do homem indo © encontramos nosso caminho Para Dilthey, os estudos humanos fazem parte de uia. tentativa prépria de entender o mundo num nivel de expe: riéncias vividas. Experiéncias vividas de quem? Aqui Dilthey ‘evoca uma versio do circulo hermenéutico. © entendimenty da vida no mundo, na época atual, esté sempre conectado com © passado cultural que é a hist6ria das ciéncias e dos estudos hhumanos, manifestados nos artefatos culturais e textuais do pas sado, Para Dilthey, 0 entendimento hermenéutico esta inex tricavelmente conectado ao pasado, A categoria da vida mos tra que as interpretacdes no presente estio sempre conecta- das a sua hist6ria no passado. N6s somos, irredimivelmente, hist6ricos. Ainda que Schleiermacher tenha pensado na inter. retaco como uma tarefa envolvendo alguma medida de re construgio hist6rica, ele nao consegui enfatizar o pens mento de que todo o entendimento tem uma dimensio ne- cessariamente hist6rica. Esta foi a contribuigao mais impor. tamte de Dilthey & hermenéutica. Apesar da mudanga para 0 entendimento hist6rico, o trabalho de Dilthey seria criticado por pensadores subseqiientes, incluindo Gadamer, como ve- remos a seguir Apesar de Dilthey ter sido capaz de identificar as diferen- ‘ga5 entre as ciéncias naturais e humanas e mostrar como as ciéncias humanas eram hermenéuticas e no como a ciéncia natural que era envolvida na explicacdo, ele era um produto do seu tempo e foi incapaz de se livrar das restrigdes de uma busca Por método. Dilthey acreditava na possibilidade de adquirir co- nhecimento objetivamente vlido, mesmo que fosse intrinseca- mente histérico ¢ interpretativo. A mudanga para as herme- neuticas histéricas, isto 6, as hermenéuticas que enfatizam 0 clo no entendimento entre o passado ¢ o presente, é um movi ‘mento importante, pois representa a principal fonte de recur so para a inspiragio do mentor de Gadamer, Heidegger. “A hermenéutica da facticidade” de Heidegger © pensador existencial e fenomenolégico Martin Hei -degger € uma figurachave na histéria do desenvolvimento ‘das hermenéuticas. Apesar de se abster de mencionar as her- ‘menéuticas em seus tltimos trabalhos, a sua obraprima de 1927, Sere tempo, estérepleta de fortes influéncias hermenéu- ‘cas. E suas andises da existncia humana (0 Dasein) depen dem de um redirecionamento radical do eirculo hermen€uti <0": Mais importante para os nossos objetivos a revoluciond Fa reorientagio de Heidegger das hermenéutica, io impor tante para a aprecagio da direcio futura do pensamento de \Gadamer. De acordo com Gadamer, a apreciagao de Dilthey ‘da naturera histrca do entendimento ainda estava vinculada ‘a uma perspectiva metodolégica das ciéncias humanas - ape- Sarde fra sbsonin da categoria da vida. Para Gadamen fo Heidegger quem genuinamente revelou a historicidade do centendimentoe iberou as hermenéuticas de sua conexo, na ‘busca por um método paralelo as ciéncias natura Em Vordade enétodo, Gadamer explora uma seco impor- tante da obra de Heidegger, Ser¢o tempo. Gadamer analisa a signifcdncia do cteulo hermenéutico para Heidegger, como um prelidio A sua prépria posse da posigio. io deve er reduzido 20 nivel de um ee vic oo, ot1até mesmo a um ereulo ue é meramente tolerado, No ciclo ent oculta urna posibilda de poritiva do tipo de conhecimento mais primo dial, © de compreendemos genvinamente esta Postibilidade somente quando éentendemos que ‘onosto primeir, tlio e constante objetivo na iterpretagio nunca é permit que nosa pré pos se, présio epré-concepcio seam apresentadona 1s por concepedesfantasonas ¢ populares, mas sim asegurando o tema cienttio através dareso- luo destas pré-estruturas em seus proprios ter smos (VM, p. 268). © indicio real para a compreensio do efrculo hermenéu- tico 0 conjunto de interpretagies preexistentes que faze § Richard Palmer indica, de manera interesante, qu apesar de Heide {ac de form infrequete 0 termo om aus trsalhorreaiadon ape Sere tempo, [Ee] we volta com ceria freqhénci reinerpretagio do ino of Kant Nite Heelers de Kk, Teale Trocrie Seu pensmento ators mai hermeneutic’ no sd Aicional de estar cetrado na iterpretagio do texto” (1050, p. 12 co de Heidegge ¢ ue, arues de podermies meses eee so e pré-concepcio". Isto é, diante dessa assercio estranha eee ee Sy ee ee. coisas esto além de qualquer diivida, Certas coisas precisam iter estabelecidas antes que a dtivida possa prosseguir: nés po- ‘demos nos engajar com mundo, num senso pritico, antes mesmo de refletirmos a respeito. A observacdo de Wittgens tem & um pensamento bem heideggeriano, pois enfatiza 0 pré-possuir, neste caso da linguagem. A observagio de Witt- genstein novamente revela que existem certas coisas sobre nosso relacionamento com o mundo que nao podem ser colo- cadas em divida e nio podem, Iegitimamente, ser considera- das objetos de investigagao. Nao podemos nos distanciar da linguagem que falamos para questionar sua verdadeira natu: reza ou perguntarmos se a linguagem que falamos ¢ realmen- te tudo aquilo que consiceramos. Deve existir sempre um en ‘gajamento implicito com a linguagem, um relacionamento ta cito com um mundo lingiistico, antes de podermos levantar squestdes significativas, Deve existicalgum senso no mundo antes de comegarmos a fazer julgamentos sobre ele; na realidade, nds jd estamos en- yolvidos no mundo bem antes de nos separarmos do mundo teoricamente para procurar entendélo filosoficamente. He- degger est desafiardo aqui uma versio do “Mito do dado” Nao viermos ao mundo como uma tabula rasa e, com 0 tempo, desenvolvemos uum senso do mundo como sendo cocrente, continuo e aberto ae pensamento racional. Nés comecamos de envolvimentos priticos no mundo, atividades e formas de socia- lizagao. Estas s40, descritas de maneira um pouco diferente, as soncepgbes, as préposses eas prévisdes. Através de treina- to cultural poclemos herdar irrefletidamente uma visio do ‘mundo, uma perspectiva do mundo. Claro, estes nunca sio 0s pontos de partida completos dos quais (entamos fazer nossas interpretagdes indisiduais do mundo. Entretanto, nés pode ‘mos ver agora a maneira pela qual Heidegger se apropriou do circulo hermenéutico, Existe sempre uma versio parcial ou to tal do circulo em operacio nos entendimentos dirios do mun- do. Existe, por assim dizer, um entendimento de fundo, impli cito ¢ ndo afirmado, constantemente em a¢lo, que trabalha em sintonia com aquilo que podemos chamar de entendimento de primeiro plano, isto é, tudo aberto a reflexzo, ao julgamento e 2 interpretagio. Heidegger expe a estrutura hermenéutica no mago da existéncia. © Dasen, a terminologia de Heideyyer para a exsténcia humana, se posiciona no mundo de sua propria eragao, tren ‘és do entendimento deste mundo. Mas'o entendimento dit rio no ¢ reflexivo; pode ser até til pensarmos nele como algo que est sob nosso dominio, mas mesmo assim nunca pote ee Um objeto de entendimento ttle consciente. Com denen mento didrio nés estabelecemos um relacionament com 0 ntundo ¢, nvoluntariamente, adotamos um modo de ser que Heidegger chama de “hermenéutico", O mundo ¢ interpriee do “como” um determinado mundo dentro do qual exise a “possblidade positiva do tipo de conhecimento mais primor- dial’. Ehermenéutico, porque o Dasen, através de seus envel vimentos préticos no mundo jé culturalmente interpretado, ‘oti se projetando constantemente para o futuro, enqumto Permanece enraizado em entendimentosticitos no presente « > passado, A existéncia humana nio esti presa nos préenten

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