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Espelho de fora: arquitetura brasileira vista do exterior (1)
  Fernando Lara    
        
   
Fernando L. Lara é arquiteto, professor da PUC-Minas e
  doutorando pela University of Michigan  

      
  De dentro e de fora

Expressões do tipo fazer sucesso lá fora são freqüentemente usadas no


Brasil para descrever a qualidade do que se produz aqui dentro. De certa
forma, é como se fosse necessário esse reconhecimento externo, este
certificado internacional de qualidade, superior ao reconhecimento do
próprio país. No caso da arquitetura, são freqüentes as duas faces deste
dilema: de um lado, a ansiedade de ver-se nesse espelho externo da
mídia internacional, de outro a urgência de afirmação da própria
brasilidade de nossas demandas, desafios e contextos.

Enquanto revistas francesas, italianas, norte-americanas, espanholas,


inglesas e japonesas são devoradas com voracidade pelos arquitetos,
publicações nacionais lutam pela pura sobrevivência e não conseguem
“vender” mais do que informações locais, traduzindo a posteriori os
assuntos de destaque dos chamados “países desenvolvidos”. Diriam
alguns que continuamos antropófagos culturais, festivos comedores de
tendências estrangeiras, só que agora sem ritual algum.

No entanto, somos também consumidos pelo resto do mundo. Muito já se


falou sobre um tempo passado das décadas de 40 e 50 quando éramos,
nós arquitetos brasileiros, uns dos mais dinâmicos grupos exportadores
de arquitetura. Um tempo onde as revistas nacionais antecipavam aquilo
que seria publicado alguns meses depois nas melhores revistas da
Europa e dos EUA.

Ao longo do tumultuado século XX, saímos de consumidores passivos de


uma modernidade incipiente (até os anos 30) para produtores, ainda que
periféricos, de um modernismo elegante (anos 40 e 50) que entra em
crise e se isola (anos 60 e 70) para em seguida sermos de novo
consumidores, agora de pós-modernismos (anos 80), e enfim re-
descobertos na última década com gosto de revivalismo.

Os caminhos da imagem da arquitetura brasileira neste século, aqui


dentro e lá fora, funcionam como um jogo de espelhos que refletem e
refratam ao mesmo tempo. Refletem no sentido de espelhar à distância
aquilo que aqui acontece, devolvendo imagens locais dentro de uma
moldura de legitimação. Mas deve-se notar que toda imagem no espelho
é invertida e a maioria delas é influenciada pelas cores do próprio
espelho, no caso, as culturas outras de onde se fala. Esse olhar
estrangeiro filtra aquilo que vê pelas nuanças de sua retina, ora
ressaltando um aspecto, ora diminuindo outro. Assim, a imagem refletida
é também sempre refratada, deslocada, desviada, distorcida.

Este artigo é resultado parcial de uma pesquisa em andamento que parte


desta necessidade de reflexão ou de re-descoberta da arquitetura
brasileira, usando esta visão do estrangeiro formada por pouco mais de
mil artigos publicados no exterior.
Metodologia

Usando-se o Avery Index da Columbia University como base de dados,


uma busca de artigos sobre arquitetura brasileira publicados fora do
Brasil gerou um total de 1007 artigos, de 1906 a 2000. Esta abordagem
quantitativa serve de pano de fundo para levantar questões relativas à
arquitetura brasileira e sua imagem vista através das lentes do
estrangeiro. Estas 1007 entradas foram organizadas em uma planilha
segundo título do artigo, autor, arquiteto, edifício, cidade, periódico, país,
língua e data da publicação. À análise quantitativa das informações deve-
se sobrepor a análise qualitativa dos diversos momentos e contextos
históricos paralelos, e dos próprios caminhos trilhados pela arquitetura
brasileira deste século.

Para que pudéssemos compreender este conjunto de informações,


adotou-se uma estratégia de cortes analíticos. Estes cortes ou inserções
pretendem reduzir dimensionalmente a complexidade dos dados,
trabalhando nesta primeira investigação com apenas uma ou duas
variáveis de cada vez. Num momento posterior pretende-se cruzar
variáveis para que relações mais complexas entre os arquitetos e as
estratégias e políticas editoriais possam ser investigadas.

Primeiro corte: publicações por data

O gráfico ao lado [figura 1] mostra o número total de artigos publicados


no exterior para cada triênio desde o início do século. Uma primeira
observação revela aquilo que todos já sabemos: que a arquitetura
brasileira foi amplamente divulgada no exterior nos anos 40 e 50, menos
um pouco nos anos 60, menos ainda nos anos 70 para voltar às revistas
em meados dos anos 80 e principalmente nos anos 90. Importante seria
analisar esta curva em função de vários fatores estruturais e conjunturais,
internos e externos. O primeiro fator conjuntural externo relevante é o
final da Segunda Guerra Mundial (1945) quando à demanda reprimida de
artigos e revistas de arquitetura vem somar-se o encantamento com a
arquitetura moderna brasileira que já vinha ocupando espaços no exterior
desde o Pavilhão Brasileiro da feira mundial de Nova York (1939, Costa e
Niemeyer). Em meados dos anos 60, o enfoque da arquitetura
internacional se volta para uma crítica aos ideais modernistas (Archigram,
Venturi, Tendenza, Metabolistas) e a arquitetura brasileira deixa então de
fascinar a mídia estrangeira.

Em termos de conjuntura interna, o período de maior qualidade do


modernismo brasileiro coincide com o boom de publicações dos anos 50,
mas o desaparecimento dos anos 60 e 70 não pode ser tomado
simplesmente como perda de qualidade. No final dos anos 80, a
conjuntura internacional passa a re-visitar e re-avaliar o modernismo e é
grande o número de artigos sobre a arquitetura brasileira neste sentido.
Os anos 90 reforçam esta tendência que se soma à visibilidade crescente
de arquitetos fora do eixo Rio-São Paulo.

Em termos estruturais, percebe-se que entre um momento e outro as


revistas mudaram, o que antes eram predominantemente reportagens
sobre obras e projetos diversos dá lugar a números temáticos com textos
analíticos acompanhando obras de poucos arquitetos e/ou regiões. A
abrangência e universalidade do projeto modernista é substituído pelo
enfoque individualista e localizado da contemporaneidade. É interessante
notar também que os períodos de crescimento econômico não parecem
ter paralelo com a curva de publicações, mas é visível a relação entre um
grande número de artigos e os períodos democráticos (1945-1963 e
1985-2000) enquanto a pior depressão (que pode ser traduzida por
isolamento/fator nacional ou falta de interesse/fator estrangeiro, ou
ambos) se dá justamente no intervalo entre 1964 e 1985.

Segundo corte: país de publicação

Os EUA apresentam o maior número (275) de publicações sobre


arquitetura brasileira, com a França tendo também um grande número
(203), seguidos por 138 artigos em revistas italianas, 96 em periódicos
ingleses e 77 em alemãs. Por ser o Avery uma compilação norte-
americana, é possível que o número de artigos em língua francesa,
italiana e alemã seja até um pouco maior. Fora o eixo EUA-Europa
aparecem a vizinha Argentina e o distante Japão com um número
significativo de artigos.

O mapeamento destes dados revela ainda três grandes vazios: Rússia,


China e Leste Europeu. Dadas as relevantes tradições arquitetônicas
destas regiões, principalmente Hungria, Checoslováquia e Rússia,
presume-se que a total ausência de artigos sobre o Brasil nesta
amostragem provenientes destes países seja uma deficiência da própria
base de dados do Avery.

Mais interessante do que o número absoluto de artigos publicados é


perceber a dinâmica destes números no tempo. O gráfico ao lado [figura
2] mostra o número de artigos por país e década e nos revela algumas
informações interessantes. Enquanto os EUA aparecem como o primeiro
país a publicar significativamente a arquitetura brasileira já em meados
dos anos 40 (reflexo da política de boa vizinhança de Truman/Rockfeller),
é também o primeiro país a deixar de divulgar a arquitetura brasileira
ainda nos anos 50.

Em publicações francesas o interesse cresce um pouco atrasado em


relação aos EUA em decorrência provavelmente das dificuldades da
guerra e da reconstrução, mas se sustenta até meados dos anos 60,
crescendo de novo nos anos 80 e surpreendentemente caindo de novo
na última década do século, ao contrário de todos os outros países.
Inglaterra e Itália tem um número crescente de publicações nos anos 40
e 50, que em seguida caem quase a zero nos anos 70 e voltam a crescer
bastante nos anos 90, juntando-se a publicações espanholas,
holandesas, japonesas e argentinas que formam este boom do final do
século.

Terceiro corte: local da obra ou projeto no Brasil

O mapeamento no Brasil das obras e projetos citados revela, como era


de se esperar, uma forte concentração no eixo Rio-SP [figura 3]. Brasília
vem em seguida com Curitiba e Belo Horizonte bem atrás. A partir dos
anos 80 percebe-se uma maior diversidade regional, com maior
visibilidade para Salvador, Recife, Fortaleza e Manaus, que acompanha
de certa forma a re-articulação da prática da arquitetura no país nas
últimas duas décadas. Entre os edifícios mais citados, destacam-se dois
projetos de Affonso Reidy, o MAM e o conjunto Pedregulho, ambos no
Rio de Janeiro. Também bastante publicados no exterior são os edifícios
da Pampulha e o Museu de Niterói, de Niemeyer, o SESC da Pompéia de
Lina Bo Bardi e o Aeroporto Santos Dumont, dos irmãos Roberto. Causa
estranhamento a ausência dos edifícios de Brasília e de outras
referências nacionais como a FAU-USP de Vilanova Artigas ou o MASP
de Lina Bo Bardi, ou até mesmo o Ministério da Educação de Lúcio Costa
e equipe, entre os mais citados. Pelas características preliminares deste
levantamento no Avery Index onde apenas a ficha de cada artigo foi
computada, é bastante provável que quando no futuro pudermos
examinar com profundidade cada um dos 1007 artigos, outros edifícios
venham a se juntar aos mais citados.

Quarto corte: publicações por arquiteto

Para melhor investigar a variável arquiteto, fez-se necessário dividir a


totalidade dos nomes em dois blocos que representam de forma
aproximada duas gerações brasileiras. Entre a primeira geração de
arquitetos modernistas brasileiros, Oscar Niemeyer é sem surpresa o
mais citado, em expressivos 121 artigos. Burle Marx, Lina Bo Bardi,
Affonso Reidy, Rino Levi, Lúcio Costa e os irmãos Roberto vem em
seguida, nesta ordem. É importante notar que enquanto Reidy, Levi,
Costa e os irmãos Roberto foram citados principalmente nos anos 40 e
50, Burle Marx e Lina Bo Bardi têm sido ainda mais presentes em
publicações recentes. Outros arquitetos desta primeira geração com um
número significativo de artigos no exterior sobre suas obras são Jorge
Moreira, Sérgio Bernardes, Warchavchik, Artigas, Francisco Bolonha e
Atílio Correa Lima. Notar a concentração desta primeira geração no eixo
Rio-SP, embora tenham deixado obras por todo o país.

No grupo que arbitrariamente denominei de segunda geração para


facilitar a compreensão, o destaque fica com Paulo Mendes da Rocha,
Severiano Porto e Marcos Acayaba. Em seguida também citados pelo
menos quatro vezes vem Carlos Bratke, Gerson Castelo Branco, Éolo
Maia e Sylvio Podestá, João Filgueiras Lima, Walter Toscano, Luis Paulo
Conde, Croce-Aflalo-Gasperini, Jaime Lerner, Roberto Montezuma e
Zanine. Fica evidente neste grupo a pulverização regional dos arquitetos
cujos escritórios representam diversas regiões do país, em contraste com
a primeira geração que se concentrava no eixo Rio-SP.

Quinto corte: publicações por autores e periódicos

A variável periódicos mostra uma liderança da revista francesa


Architecture d'aujourd'hui com mais de 150 artigos publicados sobre a
arquitetura brasileira, seguida de longe pelas inglesas Architectural
Review e a italiana Domus. Tomar qualquer tipo de conclusão baseada
apenas nesses números seria precipitado, já que nesta fase da pesquisa
não dispomos ainda de informações sobre linha editorial ou comercial
dos periódicos constantes do Avery Index. O que se percebe
comparando os artigos dos anos 50 com os mais recentes é uma
mudança na forma como as publicações expõem arquitetura em geral,
não apenas a brasileira. Enquanto a maioria dos artigos dos anos 40 e 50
eram mais informativos e expositivos, revelando para o público as obras
e projetos desenvolvidos no Brasil e se atendo a informações sobre
programa, área, materiais construtivos e funcionalidade, os artigos das
últimas décadas são bem mais analíticos. A suposta isenção da
reportagem dá lugar à perspectiva crítica assumida pelo autor. Essa
tendência coincide com o desenvolvimento da arquitetura como disciplina
acadêmica e campo do conhecimento e nesse sentido passa a ser
importante então discutir e investigar os autores dos artigos.

Uma breve panorâmica da variável autor revela a presença, também no


cenário internacional, dos dois mais importantes críticos brasileiros das
últimas duas décadas, Hugo Segawa e Ruth Verde Zein. Entre os dois
professores brasileiros, coloca-se o crítico Paul Meurs, com um número
significativo de artigos publicados sobre arquitetura brasileira na Holanda.
Também entre os que mais publicam estão Carlos Eduardo Comas e
Roberto Segre, com vários títulos publicados em periódicos da América
Latina. Oscar Niemeyer e Lúcio Costa são os únicos a se destacarem
como arquitetos e também como autores.

Considerações finais

Muito tem se falado sobre a crise da arquitetura moderna brasileira dos


anos 70 e sobre a vitalidade e diversidade contemporâneas. A análise
dos acontecimentos recentes é sempre difícil, pela falta de
distanciamento e clareza, mas esse levantamento no Avery Index aponta
claramente para uma volta do Brasil às publicações internacionais desde
meados dos anos 80.

Das questões panorâmicas aqui levantadas a maioria não é surpresa e


vem apenas confirmar empiricamente aquilo que já sabíamos, como o
vazio de publicações dos anos 70 e o aumento da diversidade regional
das últimas décadas. Mas a questão no meu modo de ver mais
significativa e que merece ser debatida com cuidado é o fato de a curva
de publicações não encontrar paralelo com a variação do crescimento
econômico, mas sim coincidir com os períodos democráticos. Fica para o
debate e investigações futuras a tese de que em relação à imagem da
arquitetura brasileira no exterior, democracia parece ser a variável mais
importante.

Nota

1
Uma versão mais abrangente deste trabalho foi apresentada no XVI Congresso Brasileiro de
Arquitetos, Colóquio Arquitetura Brasielira Re-descobertas, Cuiabá, setembro de 2000

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