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RESUMO
Este texto é um esforço para sintetizar o trabalho da coordenação pedagógica da Escola Municipal do Parque São
Cristóvão, com especial destaque para a revisão da redação do Projeto Baobá, entre 2013 e 2104, bom como pauta
alguns resultados alcançados a partir de 2015. Consta nas páginas seguintes uma leitura muito particular do exercício
dessa função, assumindo os erros e virtudes de escrever sobre uma prática em que estou tão implicado. Também
destacamos alguns exemplos para ilustrar uma prática de trabalho que tem procurado tratar a diversidade étnico-racial,
em especial o ensino de história e cultura afro-brasileiras, como eixo condutor de todo nosso trabalho pedagógico.
Procuramos mostrar que a efetivação desse trabalho ocorreu em meio a conflitos e disputas de posição política e
pedagógica, como não podia deixar de ser, tendo como base de sustentação uma visão institucional que reconhece seus
deveres como liderança de um projeto mais que as individualidades que compõem o corpo docente.
INTRODUÇÃO
“Aqui nessa escola somos todos água e estamos de
passagem. Esta escola não. Somos água, mas esta
escola é porto! E o Projeto Político Pedagógico desta
escola permanece...”
Jacilene Silva
Diretora
Escola Municipal do Parque São Cristóvão
A Escola Municipal do Parque São Cristóvão (EMPSC) está localizada no bairro de São
Cristóvão, em Salvador, capital do estado da Bahia. Fundada em julho de 2006, a diretora da
unidade, Jacilene Silva, conta que esta escola é fruto da luta comunitária da qual ela é parte por ser
moradora da localidade há mais de 20 anos. Ao longo dessa última década, a escola construiu um
PPP intitulado Projeto Baobá (EMPSC, 2014), cujo principal objetivo é garantir que o aprendizado
das crianças ocorra sem deixar de lado a valorização e afirmação de sua identidade étnico-racial.
A redação original deste projeto ocorreu durante o primeiro período de gestão da referida
diretora (2006 a 2010). Em 2011, “Jaci”, como é chamada pela comunidade, assumiu um cargo na
direção do sindicato dos trabalhadores da rede municipal, a APLB-Sindicato, retornando à direção
da escola em outubro de 2013. O autor desse relato, por sua vez, assumiu o cargo de professor na
unidade em junho de 2012. Em outubro de 2013, assumiu o cargo de coordenador pedagógico da
Educação de Jovens e Adultos e, por fim, em 2015, tornou-se coordenador pedagógico dos anos
iniciais do ensino fundamental em tempo integral com o fechamento do período noturno. Entre o
final de 2013 e início de 2014 revisamos a redação do Projeto Baobá. Este momento de revisão do
projeto em meio às dificuldades de trabalho impostas pelo cotidiano é o cerne deste texto. Nele,
atualizamos o que já havia sido estabelecido desde a fundação da unidade, isto é, que o objetivo
principal de nosso trabalho seria:
Escrevemos “atualizamos” para reconhecer que desde a primeira gestão de “pró Jaci” o PPP
da escola já declarava sua intenção de incluir o ensino de história e cultura afro-brasileira desde a
inauguração da unidade, influencia direta de uma gestora que há muitos anos milita no movimento
negro para além de seu trabalho docente. Assim, podemos dizer que o “caminho pedagógico”
desenvolvido a partir de 2014 retoma de maneira institucionalizada e sistemática algumas trilhas
que estavam se apagando ou mesmo esquecidas. Entre elas, destacamos que:
- o direito de aprender da criança, inclusive zelar pelos 200 dias letivos, é encarado como prioridade
total e responsabilidade de qualquer adulto da escola;
Não obstante, ao sentirmos que era preciso aprofundar os fundamentos de nossa prática
didática, tivemos de recorrer a autoras e autores do campo da educação e relações étnico-raciais e
encontramos na obra de Gloria Ladson-Billings uma descrição bastante precisa das dificuldades que
devem ser enfrentadas por uma escola que ousa pautar a diversidade étnico-racial e o ensino de
história e cultura afro-brasileira como eixos centrais do seu trabalho pedagógico. Vejamos o que diz
essa autora:
1 No Brasil, por vezes, até essa condição não é aceita, dada a força do mito da Democracia Racial e seu poder de
velar a racialização da sociedade brasileira.
2 A crítica da autora, nesse ponto, é direcionada aos programas de correção da “falta”, isto é, aos programas que a
partir da detecção de uma “privação cultural” propõem saídas de “educação compensatória”. Segundo a autora,
existem três grandes tipos de programas: aqueles destinados a remediar ou acelerar a escolarização, sem considerar
as necessidades sociais ou culturais dos alunos; outros programas visam ressocializar o aluno “fracassado” a partir
de valores e atitudes predominantes na sociedade americana; por último, existem os que pretendem facilitar a
Apesar da autora se referir ao sistema educacional estadunidense, em especial ao
californiano, ao compararmos com a realidade enfrentada pelas crianças negras moradoras da
periferia de Salvador encontramos muitas similaridades. Vários “déficits” adjetivados são usados
para classificar os desajustados ao sistema educacional. Déficits de atenção, de aprendizagem, de
leitura são algumas das deficiências as quais Ladson-Billings se refere. Por isso nos parece tão
precioso a proposta de um Ensino Culturalmente Relevante.
[…] o ensino culturalmente relevante usa a cultura do aluno para preservá-la e transcender
os efeitos negativos da cultura dominante. Os efeitos negativos são causados, por exemplo,
por não se perceber a história, cultura ou antecedentes descritos nos livros didáticos ou
currículos, ou por se enxergar aquela história, cultura e antecedentes de maneira distorcida.
[…] O objetivo principal do ensino culturalmente relevante é ajudar no desenvolvimento de
uma “personalidade negra relevante” que permita aos alunos afro-americanos optar por
excelência acadêmica e ainda assim se identificar com a cultura africana e afro-americana.
Especificamente, o ensino culturalmente relevante é uma pedagogia que capacita os alunos
intelectualmente, socialmente, emocionalmente e politicamente, pelo uso de referentes
culturais para transmitir conhecimento, habilidades e atitudes. Esses referentes culturais
não são meramente veículos de ligação ou explicação da cultura dominante; são aspectos
do currículo por direito próprio (LADSON-BILLINGS, 2008, p. 36 – grifo nosso).
Antes de adentramos nas questões pedagógicas propriamente ditas, um dos pontos mais
importantes nesse processo de reconstrução do Projeto Baobá é a consolidação do corpo docente da
escola. Para entendimento geral, devemos dizer que a Secretaria Municipal de Educação (SMED)
não aloca professoras em suas escolas por afinidade pedagógica, mas por ordem de chegada à fila
de atendimento. Deste modo, muitas profissionais competentes, porém sem qualquer conhecimento
ou empatia para o ensino da história e cultura afro-brasileira, africana e ameríndia foram designadas
para trabalhar na EMPSC.
Neste ponto, a liderança de nossa diretora foi fundamental para determinar os alicerces de
nosso trabalho. Em primeiro lugar, todas profissionais, sejam pedagogas ou licenciadas nas áreas
diversificadas, passaram por uma entrevista com a equipe gestora antes da assinatura do termo de
assunção emitido pela SMED. Nela, colocávamos as professoras a par das características
específicas do PPP da escola como pontuado acima e anunciávamos as regras de trabalho na
unidade.
Por exemplo, dizíamos que nosso PPP exige uma formação não oferecida na universidade e
que, para tanto, haveria necessidade de realizarmos encontros de formação aos sábados para não
suspendermos as aulas ao longo da semana. Além disso, estabelecíamos que o planejamento deveria
ser entregue por email, com ao menos 15 dias de antecedência, para que as cópias das atividades
Numa escola cuja imensa maioria de estudantes são negros, pautar a autoestima da criança negra significa abordar o
contexto histórico que produziu uma sociedade hierarquizada pela cor da pele e características fenotípicas. Nesta
unidade, deve-se oportunizar na aprendizagem um espaço de aceitação e reconhecimento positivo da identidade negra;
Ao se abordar as características do continente africano, bem como o modo de vida dos diferentes povos que lá vivem,
pode-se trazer à tona o reconhecimento das origens do modo de vida dos estudantes, uma vez que vivemos na cidade
de Salvador, a cidade que possui o maior número de pessoas negras fora do continente africano e que herdou muitos
dos costumes desses povos;
Esta unidade visa conhecer personagens e locais históricos, personalidades contemporâneas, movimentos e
organizações que demonstram a resistência do povo negro na luta contra o preconceito e o racismo desde o inicio da
colonização até os dias atuais.
Fonte: EMPSC, Projeto Baobá, 2013. (redação atualizada para nova versão em elaboração exigida pela SMED para 2017).
O quadro acima sintetiza as linhas gerais que cada professora da escola deve levar em
consideração no momento de elaboração de seu planejamento anual, do cronograma bimestral e de
seu plano de aula semanal. Primeiramente, esses documentos tem a função de organizar o tempo
pedagógico da professora e das crianças ao longo do ano letivo. Em segundo lugar, sendo a
educação escolar um ato intencional e isento de neutralidade, o planejamento pode ser visto como
uma carta das intenções didática e das expectativas da professora. Consequentemente, a terceira
função desses documentos é possibilitar as sugestões, o acompanhamento e a intervenção
qualificada da coordenação, assim como instrumentaliza o acompanhamento da avaliação discente.
Começamos o texto dizendo que nossa escola não abre mão da aprendizagem aliada ao
ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e ameríndia como eixo central de nosso PPP.
Apesar dos desafios impostos à gestão pedagógica, temos consolidados resultados positivos. Em
relação à aprendizagem, a cada ano letivo temos um maior índice de estudantes alfabetizados, em
especial no ciclo I (1° ao 3° anos). Esse dado pode ser observado quando comparadas as sondagens
diagnósticas realizada no início dos anos letivos de 2016 e 2017. Nesta avaliação, os estudantes
participam de um ditado com 5 palavras de um mesmo campo semântico, normalmente da
polissílaba para a monossílaba, seguida de uma frase sem ajuda da professora ou de seus colegas.
TURMA matrículas PS SQN SQL SIL ALF ALF TURMA matrículas PS SQN SQL SIL ALF ALF
1º A 29 4 10 13 2 0 1º A 24 15 4 1 2 2
1º B 26 14 7 4 1 0 1° B
2° A 27 1 2 10 4 10 2° A 38 3 8 10 3 14
2º B 31 3 3 8 5 12 2º B 28 0 3 10 8 7
3º A 29 2 0 2 3 22 3º A 32 1 0 7 5 19
3º B 28 1 0 3 4 20 3º B 30 1 2 1 2 24
3º C 26 0 5 1 5 15 3° C
4º A 33 0 0 0 1 32 4º A 27 1 1 0 0 25
4º B 31 0 0 3 1 27 4º B 26 0 2 0 0 24
4º C 28 1 0 4 9 14 4º C 25 1 1 0 0 23
5º A 27 0 0 0 3 24 5º A 31 0 0 2 6 23
5º B 33 0 0 1 5 27 5º B 31 0 0 0 1 30
5º C 31 0 0 0 2 29 5º C 32 0 0 0 0 32
total 379 26 27 49 45 232 total 324 22 21 31 27 223
percentual *** 6,86% 7,12% 12,93% 11,87% 61,21% percentual *** 6,79% 6,48% 9,57% 8,33% 68,83%
Tabela 1- Níveis conceituais de escrita no início do ano letivo de 2016 e 2017. PS: Pré-silábico; SQN: Silábico Quantitativo; SQL:
Silábico Qualitativo; SIL ALF: Silábico Alfabético; ALF: Alfabético. No ano letivo de 2017 não temos as turmas 1°B e 3°C. Fonte:
arquivos da coordenação pedagógica da EMPSC.
De acordo com os dados, vemos que apesar da redução de 51 matrículas no ano 2017, o
percentual de estudantes alfabéticos, isto é, aqueles que dominam os princípios de uso do Sistema
de Escrita Alfabética (SEA) aumentaram cerca de 7,5%. No entanto, se olharmos a série de dados
por ano de escolarização, vemos que os 4° e 5° anos de 2017 possuem poucos estudantes
não-alfabéticos. Em geral, estes casos incluem os estudantes com alguma deficiência de
aprendizagem (física, motora, intelectual ou mesmo questões familiares e sociais) em que julgamos
ser necessária a manutenção dessas crianças com seu grupo de idade e socialização, conforme
legislação vigente (LDB 9.394/96 e correlatas). Igualmente, podemos observar entre o 3° ano de
2016 e o 4° ano de 2017 uma grande evolução dos estudantes que praticamente são os mesmos,
porém agora todos estão plenamente alfabetizados.
Para completar este argumento, a seguir temos dois gráficos que mostram as retenções nos
anos 2015 e 2016 em cada turma da nossa escola. Infelizmente, ainda não conseguimos alcançar a
“reprovação 0” e nosso índice continua por volta dos 4%. Todavia, já se pode perceber uma redução
da reprovação em números absolutos no 5° ano, bem como a redução das retenções por frequência
nos 1°, 2° e 4° anos. De qualquer maneira, é preciso ressaltar que a baixa taxa geral de retenção por
rendimento acadêmico no final de cada ciclo, isto é, 3° e 5° anos, é reflexo das estratégias que
lançamos mão ao longo de todo o ciclo para garantir o aprendizado do maior número de estudantes,
em especial daqueles que nos demandam atenção especial.
Tabela 2 - Percentual de retenção nos anos letivos 2015 e 2016 de acordo com as atas de resultados finais da unidade. Fonte:
Secretaria da Escola Municipal do Parque São Cristóvão.
Diversas são as estratégias de ensino, destaco duas neste texto: fortalecer a identidade negra
e autoestima da criança através do ensino da história e da cultura afro-brasileira e ameríndia a partir
do ponto de vista desses grupos e proporcionar à ludicidade papel determinante no acesso ao
conhecimento característico da escola.
Para ilustrar, tomemos a Revolta de Búzios como exemplo. Ano passado algumas
professoras, em especial do 5° ano, colocaram em pauta que as crianças não aguentavam mais ouvir
falar sobre a Revolta porque já haviam estudado este tema nos 4 anos anteriores. A devolutiva da
coordenação partiu do reconhecimento dessa saturação e propusemos então o desafio de que as
turmas do 5° ano realizassem ações que socializassem com os mais novos seus conhecimentos
sobre esse importante episódio de nossa história.
Dessa maneira, um grupo do 5° ano se encarregou de elaborar um seminário para apresentar
aos seus colegas do 3° e 4° anos e, para tanto, a turma teve que retomar seu conhecimento sobre o
tema e encarar o desafio de não só construir uma apresentação eletrônica como ensaiar as falas que
seriam ditas no momento do seminário. Com esse intuito, foi organizada uma palestra com a ativista
e jornalista Ivana Sena para que os estudantes compreendessem o legado da luta de Revolta de
Búzios dentro de nossa realidade atual.
Figura 1- estudantes do 5° ano participam da formação sobre a Revolta dos Búzios e a Resistência Negra com a jornalista Ivana
Sena
O impacto gerado por essa atividade pôde ser medido pelo respeito com que seus colegas os
escutaram e pelos seus comentários após o evento. Já os palestrantes relataram que se sentiram
importantes pela tarefa que lhes foi confiada e se sentiram prestigiados com isso.
Figura 2 - Estudantes do 5° ano (à esquerda) apresentam seminário para uma das turmas do 3° ano, que os assistem com
muita concentração.
Outro grupo do 5° ano ficou incumbido de realizar uma roda de contação de história, na qual
seria narrada em forma de conto infantil para o 1° e 2° anos os acontecimentos da Revolta de
Búzios. Como ilustrado pelas fotografias abaixo:
Figura 3 - estudantes do 5° ano constroem bonecos de papelação para reconheceram fisicamente os supostos rostos dos mártires da
Revolt dos Búzios.
Figura 4 – À esquerda, miniatura de uma página do plano de aula do 3° ano para a semana escolar dedicada à Revolta dos Búzios
(08 a 12/08/2016). À direita, cartaz produzido como planejado. “não precisamos de heróis de mentira, se temos heróis de verdade”.
Por fim, antes de encerrar devemos mostrar como a diversidade étnico-racial pode perpassa
temas e disciplinas. Para ficar em dois exemplo, o da esquerda é uma televisão à manivela
produzida a partir dos estudos propiciados pelo livro “Bia na África”. Tanto a apropriação dos
gêneros textuais envolvidos no livro (conto, relato pessoal e conversas de email) quanto o estudo
das etapas para uma produção de texto que envolve imagem e texto escrito fizeram parte da
execução desse trabalho. Do mesmo modo, na fotografia à direita vemos as produções das crianças
que apresentam alguma deficiência física ou cognitiva e são atendidas pelo Atendimento
Educacional Especializado (AEE). Temas como o “resgate da identidade”, autoestima,
empoderamento, entre outros são contextualizados através de obras da literatura infanto-juvenil
afro-brasileira e colaboram para essas crianças construírem seus conhecimentos reconhecendo-se no
processo educativo através da história e cultura de seus ancestrais.
Figura 5 - Televisão à manivela confeccionada pelos estudantes e produções do AEE contextualizadas em elementos da
história e cultura afro-brasileira.
BRASIL. Conselho Nacional de Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
Parecer CNE/CP, n 3, de 10 de março de 2004. Relatora: Petronilha Beatriz Gonçalves e
Silva. Lex: Brasília, 2004a. Disponível
em:<http://portal.mec.gov.br/cne/index.php?option=content&task=view&id=294&Itemid=22
7>. Acesso em: 26 jun. 2014.