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Este livro não foi iniciativa sua. O que levou ao seu aparecimento.
Não sou pessoa de fazer grande coisa por si mesma como autora. Não se trata de
um gosto pelo anonimato, não vejo alguma qualidade nesta postura de não
querer estar em evidência, é simplesmente uma questão de feitio. Creio que o
José Carlos Marques esteve na Afrontamento (ele foi um dos fundadores dessa
editora), e deram-lhe o “Órgãos Epistolares”. Ele leu, gostou e escreveu-me
perguntando se tinha alguns poemas que lhe pudesse mandar. Eu tinha aí um
monte de poemas, e disse-lhe: “Olhe, escolha os que quiser. Os que não quiser,
ponha de lado. Esteja à vontade.”
Quem são?
São ainda muito pequenos, fizeram agora cinco anos. São filhos do Nuno Félix
da Costa (fotógrafo e poeta). Não imagina a beleza daqueles miúdos, a
tranquilidade deles. Eles pareciam anjos. O miúdo, loiro com uns olhos
radiantes, próprios das criaturas assombrosas. Um pouco mais rude, ele, mas
extremamente sensível, afinal. “Eu comi sopa de lápis de cor”, disse ele uma vez.
Ouvimos estas coisas e depois o que se diz, de forma quase grotesca, é que os
miúdos as ouviram de alguém e as repetem. Não ouviu de ninguém. A miúda
voltou-se certo dia para a mãe e disse-lhe: “Inverno é quando faz frio, mas hoje
faz frio e não é Inverno. As coisas não são o que parecem.” Aquela cabeça está
organizada e tem um pensamento já capaz de ir desafiando os conceitos. Era
preciso arranjar um outro conceito para Inverno, porque aquele não servia. A
miúda tinha toda a razão.
E os últimos meses?
Esta obstinação no confinamento e nesta ociosidade em que nos privam de
tanto, inclusivamente de nos movimentarmos... E é preciso que o façamos, de
outro modo as pernas, os músculos já de si afectados, atrofiam. Precisamos de
um mínimo de contacto, de poder conversar, estar com o outro para manter o
cérebro activo, estimulado. Chega a ser brutal este modelo. Ver chegar o fim
desta forma. O sermos para a morte devia, quanto a mim, ser a nossa questão
essencial. Sermos ensinados a morrer com dignidade, com tranquilidade.
Refere-se ao confinamento?
Sim. É preciso ter em conta que uma grande fatia da população está
envelhecida. Estão-se a fazer uma série de asneiras na forma como se encara a
velhice. Porque não estão nos lares apenas as pessoas que já não têm condições
de cuidar de si. Para muitos foi uma escolha para não sobrecarregarem a
família. E se há muitos que estão em condições físicas deploráveis continuam
lúcidos. Realmente parece que os lares foram focos preferenciais do vírus, que
dizimou muitas das pessoas ali acolhidas. Mas o pior é ficar-se afastado do
núcleo familiar, como se essas pessoas pudessem simplesmente ser isoladas,
privando-as, até na hora da morte de um mínimo afecto.
Mas está a falar da escrita, que é como ter momentos muito breves
em que se desperta a meio de um sonho?
Sim, estou. E quando falo nessas formas de invisibilidade, o que percebemos é
que o mundo que temos diante de nós, em que tudo parece ser visível, acessível,
esse mundo da visibilidade é, afinal, muito estreito. É muito limitado, muito
filtrado. É-o através da nossa perspectiva, da nossa sensibilidade, das nossas
posições éticas. Mas a verdade é que, de cada que nos pomos a questionar o que
se passa connosco, damos sinal de que há algo que ficou soterrado. “Porque é
que eu não sinto?” Se não sentisse, nem punha essa pergunta.
Pode, claro.
Na nossa evolução, no aperfeiçoamento da técnica, muitas vezes, quando
deixamos de usar uma pedra lascada para atacar e ferir uma presa, quando
passamos a usar uma lança, esse instrumento muda, a arma aperfeiçoa-se, mas
a função não. É a mesma. Mesmo que seja uma pistola, e que já não haja
propriamente uma luta, porque quem atira está afastado de qualquer perigo,
mas nesta situação a única coisa que mudou foi a técnica. Hoje, quando
largamos uma bomba, mesmo à distância, a partir de uma sala noutro
continente, essa distância torna-se virtual. Mas a intencionalidade é a mesma, e
o sentimento acaba por dar connosco, mesmo que leve mais tempo, a culpa e o
remorso tocam-nos.
Enquanto espécie?
Pense-se que, depois dos nove meses no útero, quanto tempo não levamos para
aprender a andar e até adquirir algum grau de autonomia. Por outro lado, é
perigoso a idealização dos papéis. O da mulher, da mãe que é perfeita, que tem
de estar sempre dedicada aos filhos... Este conceito de família, construído a
partir de uma santificação e, no seu reverso, de um sacrifício das mulheres, está
profundamente errado. Mas depois vem o outro modelo, que é virar o erro do
avesso, e criar outro igualmente inaceitável, que é lutar contra a família, pôr em
causa tudo. Os modelos têm uma certa função, mas são grosseiros, e, se
generalizados, mostram-se sufocantes. Mas voltando atrás, devemos perguntar-
nos se não havia outro modelo para se lidar com esta pandemia. Parece-me que
sim, que havia outra forma menos grosseira de lidar com o problema.
Há aquele conto da tradição sufi, “Nasrudin e a Peste”. Conhece?
Não.
“Peste, onde vais?”, perguntou-lhe Nasrudin quando se cruzou com ela, que se
dirigia então para Bagdade. “Olha, vou matar dez mil pessoas.” E ele: “Mas
porquê?” “Então, porque é a minha função, não tenho outra!” Mais tarde,
voltaram a cruzar-se e Nasrudin estava furioso: “Mentiste. Disseste que
matarias dez mil pessoas, mataste 100 mil!” E a peste respondeu-lhe: “Não
menti não. Sabes porquê? Porque os outros morreram de medo. Foi o alarme.”
Por favor.
Quando tinha uns 15 ou 16 anos, na escola havia um médico escolar. Estava a
brincar e deu-me uma dor enorme, e eu fui ao gabinete e mostrei-lhe onde me
doía. Ele não me ligou meia. Disse que não era nada porque a coisa estava a
passar. Fiquei muito ofendida com a desconsideração dele, tendo sido uma dor
fortíssima. Lembro-me de ter pensado: “Quem é esta gente? Uma pessoa
queixa-se de uma dor e eles riem-se. Será preciso que a dor fique connosco para
ser real? Preciso de ficar de cama? Que ideia é que eles têm da dor?” E jurei para
mim mesma: “Nem que eu morra, não me volto a pôr nas mãos desta gente.”
Nessa noite a dor voltou, e não me deu hipóteses de me armar em orgulhosa.
Senti necessidade de ter uma coisa fria na barriga, e sei que me desloquei, com a
barriga colada à parede, tentando chegar até aos meus pais. Às tantas caí. Tive
uma peritonite arrasadora, que me deixou de cama, e logo depois uma flebite na
perna esquerda, rara numa pessoa da minha idade. Isto foi no tempo da
penicilina, lembra-se?
Não (risos).
Não, claro, vocês não se lembram. Vinha a preço de ouro, de fora. Estive muitos
meses de cama, e quando regressei ao liceu tinha de ir de carro.
Não.
Uma víbora. Eu amava o César. A empresa onde estive produziu o filme
“Recordações da Casa Amarela”, e eu fui fazer o levantamento, ou seja, dar
algumas pistas para que os jornais pudessem escrever sobre o filme. Mas já
conhecia o César de antes, de há muito. Um dia fomos tomar um café, e eu tinha
acabado de me divorciar. E ele era mau, era um velhaco amoroso. E disse-me:
“Bem feita.” E eu fiquei parva e quis saber porquê? “Porque tu tiveste, durante
anos, um amante.” “Eu?”, “Sim, tu. E eu sou testemunha.” “Mas quem?”,
perguntei-lhe eu na minha inocência, pondo até a hipótese de ter-me esquecido
de algum romance que houvesse tido. “O Heathcliff!” Ele tinha chegado a dar-
me coisas sobre o romance, e eu andei anos imersa naquela obra. Escrevi
páginas e páginas, fiz o meu monte dos vendavais dessa obsessão. E um dia,
simplesmente, perdi o interesse.
Grupo homossexual?
Sim, terá sido isso? Pode não ser isso. Mas lembro-me dos tantos projectos que
por ali se fizeram, das revistas que se fundaram...
Pode dar-me algum exemplo?
A revista “Serpente” era lindíssima. Uma antologia erótica que a Isabel fez e que
era também lindíssima. Eu colaborei nessa antologia com um poema brutal
sobre a doença de couro, uma doença em que se fica sem os órgãos sexuais. Falo
do amor com uma vaca... As parafilias... Quem é que fala nisso? Creio que nessa
altura, havia mais arrojo do que há hoje. Havia menos conservadorismo. Se
calhar isso paga-se caro.
Quando olha para uma figura como Sophia, que encarnou o ideal de
uma mulher culta, bela, em que a pureza estava ligada a um
esplendor clássico, e que associava a um certo recato uma ideia de
aristocracia... Como era ser poeta mulher quando a Sophia era a
figura dominante?
Quem éramos nós face à Sophia, não é? Nós não estávamos no pedestal, no
máximo políamos as estátuas, as pratas. Ali, está-se no pedestal, no Olimpo, é
tudo de uma grande elegância, mas, por outro lado, não se via dela um impulso
de ir buscar a morte à rua e fazer dela a sua amante, e também não se escrevia
do amor com uma vaca... não se dizia: “Resvalo por fodas de alcatifa...” E eu
dizia-o, dando uso ao vernáculo. “Não era ainda uma pomba política polígama
mas era algo que se deslocava por entre oralíssimos cristais e fodas de alcatifa...”
Uma coisa que aconteceu à geração de que faço parte é que de súbito
ficámos sem tecto. Morreram as grandes figuras, as grandes
presenças que admirávamos, em poucos anos a paisagem ficou
desolada. Há uma grande orfandade... Mesmo os poetas que estão
ainda vivos ou se calaram, viraram costas...
Por exemplo?