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Anais do V Congresso Municipal de Educação de São Paulo, v. 1. p. 51-54.

Ética, cidadania e educação comunitária

Prof. Dr. Ulisses F. Araújo


Universidade de São Paulo

Há quinze anos desenvolvo projetos relacionados à ética e à formação


para a cidadania, tendo a escola como lócus. Nos últimos anos minha atuação,
como pesquisador e professor, tem se centrado na Educação Comunitária1.

A busca por novos paradigmas em educação é um antigo e constante


foco de interesse, sempre presente em minhas pesquisas e produções.
Acredito que refletir e buscar outros caminhos para a educação escolar é uma
necessidade frente às mudanças sociais que temos experimentado, sobretudo
nas últimas décadas. Deter-me-ei, por hora, na democratização do acesso ao
ensino e na forma como a escola se organizar frente às novas demandas
sociais e educacionais.

A democratização do acesso ao ensino trouxe para dentro da escola a


diversidade e a necessidade de refletirmos e empreendermos ações voltadas
para a inclusão social. Tal afirmação sustenta-se na crítica a um discurso
saudosista que insiste em tomar a escola anterior a segunda metade do século
XX como parâmetro para a educação. Para os defensores deste antigo modelo,
há algumas décadas tínhamos excelência em educação: a violência e a
indisciplina não entravam na escola e em seu lugar tínhamos alunos e alunas
obedientes e educados, facilitando o trabalho docente e o ensino dos
conteúdos.

Esse discurso contrapõe-se à realidade escolar atual, marcada pelas


diferenças – sociais, culturais, individuais, de valores, de crenças – pelos
conflitos, violência, repetência e evasão. Buscar no passado explicações ou
modelos para o presente é ignorar o contexto no qual a escola se insere.

A escola do passado, aqui compreendida como aquela que vigorava nas


primeiras décadas do século XX, caracterizava-se pelo seu caráter elitista,
atendendo a uma pequena porcentagem da população. As vagas oferecidas
eram insuficientes, assim, os alunos e alunas que conseguiam estudar eram
aqueles que se destacavam como os mais inteligentes, ou seja, eram aqueles
que tiravam as melhores notas, que seguiam todas as regras da escola, eram
aqueles cujas famílias valorizavam a educação escolar, vendo nesta
oportunidade de estudo uma forma de ascensão social. Tínhamos, portanto,
certa homogeneidade em relação às expectativas dos discentes e de suas
famílias e aos valores associados à educação escolar. Em relação ao
comportamento e ao rendimento dos alunos e alunas, estes correspondiam
integralmente às exigências da escola, pois aqueles discentes que não se
adequassem ao esperado eram excluídos do sistema, abrindo vaga para outros
1
Atualmente desenvolve um projeto de pesquisa financiado pela FAPESP sobre a construção de valores e
formação para a cidadania através da Educação Comunitária. Esta pesquisa está sendo desenvolvida em
duas escolas da rede municipal de São Paulo, localizadas na Zona Norte: EMEF Esmeralda Salles e
EMEF Martim Francisco.

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Anais do V Congresso Municipal de Educação de São Paulo, v. 1. p. 51-54.

melhor adaptados. Assim, tínhamos uma escola onde vigorava o ensino


propedêutico e de caráter elitista, destinado a preparar alguns poucos para o
ensino superior.

A democratização do acesso ao ensino, conquista do final da segunda


metade do século XX, incorpora em seu discurso o princípio de que a
educação é direito de todos. Um avanço legal que, no meu entender, ainda não
se desdobrou em um avanço institucional. A escola de hoje continua
estruturada da mesma forma, ou seja, pressupõe homogeneidade discente,
valores comuns compartilhados, expectativas semelhantes em relação à
educação. Estamos diante de um dilema ético: reconhecemos o direito de
todos à educação, mas não preparamos nossos professores para lidarem com
as diferenças entre os indivíduos.

Acredito que um dos maiores desafios a serem enfrentados pelo corpo


docente é incorporar ao cotidiano escolar o trabalho com a diversidade e a
complexidade das nossas sociedades, tomando-as como matéria-prima do
processo educativo. No entanto, quando analisamos os currículos dos cursos
de pedagogia e/ou de licenciatura das grandes universidades, percebemos que
as temáticas contemporâneas continuam excluídas de suas grades. Assim,
refletir e discutir sobre violência, discriminação, meio ambiente, sexualidade,
conflitos de gênero, dentre tantos outros temas imprescindíveis à convivência
democrática, não parece ser relevante à formação docente. Refiro-me, aqui, à
transversalidade em educação, ou seja, à proposta, ainda recente, de que a
escola ensine os conteúdos através de temáticas relacionadas ao cotidiano da
nossa sociedade.

Os professores e professoras atualmente, adentram as salas de aula


dominando, de forma bastante competente, os conteúdos concernentes à
disciplina que ministram. No entanto, bastam algumas aulas para que os
docentes percebam que a formação acadêmica recebida é insuficiente para
lidar com a complexidade do cotidiano escolar. O professor defronta-se com
situações onde torna-se premente uma ação interventiva que transcenda a
transmissão de conteúdos de matemática ou geografia. Ouvimos
freqüentemente queixas dos professores e professoras sobre as novas funções
que têm que assumir.

Chegamos, portanto, ao ponto, onde devemos nos questionar sobre o


papel da escola na sociedade atual. Retomando o caráter elitista da escola do
passado, seu objetivo era preparar uma elite para o ensino superior. O caráter
propedêutico do ensino justificava-se na necessidade única de domínio de
conteúdos que viabilizassem os estudos em nível superior. Ora, com a
democratização do ensino, devemos reconhecer que nem todos aqueles que
estão na escola pretendem prosseguir seus estudos em universidades,
portanto, um ensino propedêutico não satisfaz mais as demandas da
sociedade. Cabe, aqui, a pergunta: qual o sentido social desta escola cujo
acesso é democratizado?

Acredito que as novas demandas sociais apontam-nos para a


necessidade de reinventarmos a escola, ou seja, de re-significarmos seu papel.

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Anais do V Congresso Municipal de Educação de São Paulo, v. 1. p. 51-54.

Defendo uma escola comprometida não apenas com a instrução, aqui


compreendida como a transmissão de conteúdos considerados socialmente
relevantes, mas também com a formação para a cidadania. O caminho que
busco para esta reconstrução/resignificação da instituição implica na abertura
da escola, metaforicamente, refiro-me a derrubar os muros que cercam a
escola e que mantém seus conteúdos apartados das situações e conflitos
cotidianos. Proponho o contato da escola com a comunidade2 na qual se
insere.

Este é um trabalho conjunto, que pressupõe articulação entre os


conhecimentos científicos e os conhecimentos e necessidades da sociedade.
As pessoas da comunidade passam a ser incluídas na escola, participam
através de suas competências e saberes. O conhecimento popular, senso
comum, torna-se, então, base para a sua própria superação. Ou seja, a
realidade dos discentes passa a ser incorporada à escola, sua cultura, suas
formas de conhecer e explicar o mundo, suas crenças e valores, são o ponto
de partida para o desenvolvimento dos conteúdos escolares. É neste ponto de
intersecção de conhecimentos, que as características e a cultura de uma
comunidade (excluídas do currículo escolar) passam a ser valorizadas,
permitindo que estas pessoas, até então excluídas da escola, reconheçam-se
na instituição. Referimo-nos, pois, à construção de valores, mais
especificamente à re-valorização da escola por parte de camadas da sociedade
que apenas recentemente passaram a integrar esta instituição.

Nos projetos de Educação Comunitária que temos desenvolvido, os


esforços da instituição e de seu corpo docente orientam-se através de duplo
sentido: de fora para dentro da escola e, de dentro para fora da escola. Trazer
o que está fora da escola para seu interior significa sensibilizar o olhar de seus
agentes: alunas e alunos, professores e professoras, funcionários; para o seu
entorno. Esta proposta fundamenta-se no movimento das “Cidades
Educadoras”, cujos princípios foram enunciados através de uma carta em
Barcelona, 1990. Este olhar para fora, no entanto, não faz sentido se não for
incorporado ao currículo escolar. Reconhecer que aprendemos na cidade, com
a cidade não é suficiente, é preciso transformar este aprendizado em conteúdo
escolar.

As temáticas citadas anteriormente, violência, discriminação,


sexualidade, dentre outras, fazem parte da vida dos nossos discentes e das
nossas, mas permanecem apartadas do currículo escolar. Deparamo-nos, pois
com o grande desafio: Como vamos incorporar os temas e conflitos do
cotidiano ao currículo da escola?

Acreditamos que estes temas devam ser objeto de conhecimento e


trabalho pedagógico, por serem capazes de propiciar não apenas o
desenvolvimento dos conteúdos escolares, mas também de viabilizar a
formação em valores e para a cidadania de nossos alunos e alunas.

2
Cabe aqui, uma breve referência à abrangência da comunidade. Muitas vezes, a escola tende
a reduzi-la às famílias de seus discentes. A Educação Comunitária prevê uma participação
muito mais ampla, que envolve além dos pais dos alunos e alunas, as organizações,
associações, entidades e espaços que integram uma determinada comunidade.

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Anais do V Congresso Municipal de Educação de São Paulo, v. 1. p. 51-54.

Quando nos referimos à formação em valores geralmente surgem


questões sobre quais valores devem ser compartilhados na escola. Tomando
como referência a Declaração Universal dos Direitos Humanos, acredito que as
temáticas citadas, podem ser problematizadas a partir dos 30 artigos deste
documento. Parto do pressuposto de que este é um documento
potencialmente favorável para guiar a construção de valores desejáveis
universalmente.

Na prática pedagógica este trabalho inicia-se quando sensibilizamos o


olhar dos nossos alunos para o entorno da escola, buscando a identificação de
situações flagrantes de desrespeito aos princípios dos direitos humanos. A
situação identificada, passa, então a ser problematizada: o que acontece ?, por
que acontece?, quais as possíveis ações para o enfrentamento deste
problema?

Questionarmo-nos sobre uma determinada situação é um


posicionamento ético frente à vida. Estamos nos referindo á formação em
valores, á formação de um cidadão comprometido com valores democráticos,
que não naturaliza o desrespeito aos direitos ou se omite diante dele.

Retomo o conceito de transversalidade para defender a incorporação


deste “entorno” da escola ao seu conteúdo. Este conceito pressupõe abertura e
flexibilidade, ou seja, não trabalhamos apenas com temas delimitados pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais, precisamos estar sensíveis e sermos
capazes de incorporar aos currículos escolares temas relevantes em um
determinado contexto, para uma determinada comunidade.

Outra pergunta com a qual venho me deparando nestes anos de


trabalho junto às escolas, refere-se à metodologia. Como fazer?

Tenho proposto a pedagogia de projetos, na qual o tema dos mesmos


nasce da observação do entorno e da sua problematização ética e democrática
a partir da Declaração Universal de Direitos Humanos, por exemplo.

A partir dos temas, vinculados à realidade daquela comunidade,


desenvolvemos os conteúdos das disciplinas escolares. A adoção deste novo
paradigma em educação permite que os alunos e alunas construam seu
conhecimento a partir da significação dos mesmos, ou seja, os conteúdos
escolares são apreendidos tendo como referente uma situação real e
significativa para aquele discente. Os conhecimentos da escola passam a ser
instrumentos para compreensão e intervenção social. A escola, sob esta
perspectiva estará formando cidadãos e cidadãs para a vida, para a sociedade
e não apenas preparando alunos e alunas para o vestibular.

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