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AULA 3
MANDATO CULTURAL E A ABRANGÊNCIA E LIMITES DA
PARTICIPAÇÃO CRISTÃ NA CULTURA
Fabiano de Almeida Oliveira
Os cristãos até hoje têm muita dificuldade em lidar com as questões culturais.
Daí o propósito deste curso que, dentre outras coisas, visa provocá-los a pensarem sobre
essa questão de maneira séria e a se envolverem com o cumprimento do mandato
cultural de forma engajada e responsável.
A inquietação gerada por esta questão, realmente, se justifica pelo fato de ainda
vivermos num mundo caído sob a influência constante do pecado, que continua agindo
em nós através dos mecanismos internos de auto-engano. O que quero dizer é que,
mesmo a despeito da obra de redenção ter se iniciado em nós, o nosso coração ainda não
é inteiramente confiável. Creio que, por isso, é tão importante cultivarmos a santificação
e, a reboque, uma atitude crítica biblicamente orientada, para que possamos “julgar
todas as coisas e depois reter o que é bom e nos abster de toda forma de mal” (1 Ts
5.21-22).
1
CALVINO, João. Comentário à Sagrada Escritura: As Pastorais – I Timóteo, II Timóteo, Tito e
Filemom. São Paulo: Edições Parácletos, 1998. Comentário de Tt 1.12, p. 318.
2
mal haveria em empregar, para a sua glória tudo quanto pode ser corretamente
usado dessa forma.2
2
Ibid.
3
CALVINO, João. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana,
1985, II.2.15, p. 32.
4
Ibid., II.2.16, p. 33.
5
Ibid., II.2.17, p. 34.
3
desta realidade caída todo conhecimento correto, advindo da pena dos sábios, também
está entremeado ao erro e a falsidade, justamente por lhes faltar o verdadeiro
conhecimento de Deus.
Além disso, essas gotículas de verdade com que, como que fortuitamente,
borrifam seus livros, de quantas e quão portentosas falsidades têm sido
manchadas! Afinal, por certo jamais nem sequer o cheiro sentiram daquela
certeza da divina benevolência para conosco, sem a qual a mente do homem
necessariamente se enche de desmedida confusão. Portanto, a razão humana
nem se aproxima, nem se esforça, nem sequer mira em direção a esta verdade,
de sorte a entender quem seja o Deus verdadeiro, ou o que ele seja para
conosco.6
A meu ver, toda tentativa de diálogo crítico com a cultura deve seguir esta
orientação original de Calvino, de que a graça “geral” ou “comum” de Deus possibilitou
a humanidade com capacidades que trouxeram à luz muitos momentos de verdade.
Porém, como Calvino, nós também devemos reconhecer que em todas as mais diversas
expressões culturais, nascidas sob a égide da queda, há uma mistura multifacetada de
elementos de verdade e elementos de falsidade (emancipação idólatra e apostasia).
Cabe, então, ao pensador cristão, ter bem firme e claro no coração os pressupostos que
emanam do verdadeiro conhecimento de Deus na Escritura, bem como, ter uma visão
abrangente da história da cultura e da origem religiosa de seus pressupostos (auto-
reflexão radical) para saber discernir os momentos de verdade presentes nas
manifestações culturais não-cristãs, e depois disso, no dizer de Calvino, “visto que
procedem do seu Espírito, empregá-los, portanto, corretamente para a glória de Deus”.7
Outra coisa que precisamos entender é que, à luz do registro bíblico que serve de
base para o mandato cultural (Gn 1.28), a participação no desenvolvimento da cultura
não é opcional, mas sim uma necessidade estrutural, resultante de uma ordenação
cosmonômica. O Mandato Cultural, antes de tudo, é um mandato cosmonômico, tal
como os demais da criação. O que quero dizer é que quando Deus criou todas as coisas
por meio de sua Palavra, Ele estabeleceu uma série de leis estruturais que fazem com
que a realidade, inexoravelmente, funcione da maneira para a qual foi criada. Ao usar a
sua Palavra criadora para ordenar “sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e
sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal
que rasteja pela terra” (Gn 1.28), Deus não estava simplesmente estabelecendo uma
norma ou preceito com possibilidade de ser obedecido ou desobedecido por suas
criaturas humanas, como acontece, por exemplo, com os vários mandamentos
encontrados na Escritura. Mas Ele estava estabelecendo um estado de coisas com o qual
o homem se envolveria necessariamente, mesmo a despeito da rebelião espiritual do seu
coração. Em Gn 1.28, temos o estabelecimento soberano de uma ordem estrutural
inamovível que perdurará até o fim deste presente estado de coisas, como por exemplo,
acontece com as demais leis estruturais estabelecidas por Deus para reger a realidade
natural. Na verdade, a ordenação cosmonômica registrada em Gn 1.28, é da mesma
natureza que as demais ordenações divinas encontradas no ato da estruturação da
realidade natural ou quando estabeleceu a estrutura de significado do matrimônio.
6
Ibid., II.2.18, p. 35.
7
CALVINO, Comentário à Sagrada Escritura: As Pastorais, comentário a Tito 1.12, p. 318.
4
Isso quer dizer que, vivendo debaixo destas leis estruturais, estabelecidas no ato
da criação, qualquer homem, seja ele cristão ou não, inescapavelmente tem uma
“vocação natural (estrutural)” para participar da abertura e desenvolvimento da cultura,
pois consciente, ou não, de que está fazendo isso para Deus, o homem cumprirá este
mandato estrutural. Portanto, o mandato cultural e seu cumprimento devem ser
encarados como uma atribuição natural e necessária, com a significativa diferença de
que agora, nós cristãos, temos plena consciência da abrangência e das implicações de
nossa participação redentiva nele.
É óbvio que existem limites para o envolvimento cultural e todos eles são
discerníveis a partir do ensino geral da Escritura e do bom senso resultante do mesmo.
Um deles é o limite imposto pelo perigo das associações que, potencialmente, podem
provocar escândalos (Mt 18.1-10; Rm 14). Por isso, que neste caso, o princípio
limitador de nosso envolvimento com a cultura deve sempre ser o amor pelos que estão
ao nosso entorno (Rm 14.15). Outro limite é aquele imposto pela consciência pessoal de
cada um. A consciência é uma de nossas primeiras fontes de autoridade, e por isso,
subverter a consciência se constitui em pecado, ainda que algo seja visivelmente lícito
por ter uma natureza justa e boa (1 Co 6.12-13; 10.23-33). Quando alguém tem uma
consciência sensível, como aquela descrita pelo apóstolo Paulo em 1 Co 10, e mesmo
assim a subverte, ainda que seja em prol de algo visivelmente lícito, justo e bom, ele
peca, não por causa da coisa lícita, mas porque atentou contra uma fonte de autoridade
que é a sua consciência, abrindo um precedente perigoso para subverter autoridades
superiores.
Nesta busca por um envolvimento cristão responsável com a sociedade e suas
produções culturais, penso que o que temos que evitar é um tipo de alienação que nos
leve a construir, em torno de nós mesmos, uma subcultura evangélica que, no final das
contas, acaba sendo um pastiche muito mal feito das produções culturais seculares. O
que temos assistido, no meio evangélico atual, se deve a uma cosmovisão pseudo-cristã
que dicotomiza a vida em duas esferas distintas e estanques: uma esfera que é chamada
de secular, que envolveria o domínio da ética pública e da cultura (trabalho, ciência,
arte, política, negócios, etc.), e a outra que é chamada de religiosa ou esfera da fé
(domínio da espiritualidade). Não é de admirar que muitas pessoas que se dizem cristãs,
nos dias atuais, costumem fazer uma dicotomia entre a espiritualidade e a conduta ética.
Dia desses vi uma entrevista de uma pessoa que se dizia evangélica, afirmando que não
via problema algum em participar de filmes pornográficos.
Todos sabemos que tal atitude vai na completa contramão do que a Palavra de
Deus nos ensina acerca da ética do Reino dos Céus. Já uma cosmovisão cristã,
consistente com a Escritura, nos leva a encarar a vida de maneira integral (criação,
queda, redenção), vendo a fé e a espiritualidade em íntima relação com a conduta ética e
com a nossa vida de amor e obediência a Deus em todos os domínios da vida e da
cultura.
Esta cosmovisão dicotômica entre “sagrado” e “secular”, teve origem na
cosmovisão dualista medieval européia, fundada no binômio natureza-graça. Esta
cosmovisão pseudo-cristã vigorou durante boa parte do período medieval e, segundo
ela, a realidade seria composta de dois domínios relativamente autônomos e estanques,
o domínio da natureza e o domínio da graça. O domínio da natureza envolveria tudo
aquilo que estivesse intimamente ligado ao mundo físico e temporal: razão, cultura,
filosofia, ciência, governos, casamento, trabalho, família, etc. Enquanto que o domínio
5
da graça envolveria tudo aquilo que estivesse relacionado ao mundo celestial e à vida
espiritual: fé, teologia, Palavra de Deus, culto, Igreja, sacerdócio, clero, etc.
Durante todo período medieval houve uma excessiva valorização do domínio da
“graça” em relação ao domínio da natureza. De tal forma, que para serem
“santificadas”, as coisas pertencentes ao domínio da natureza deveriam servir ao
domínio da graça. Isso é muito perceptível quando estudamos a arte medieval. Obras de
arte dignas, nesta época, eram aquelas que retratavam as realidades celestiais.
Dificilmente vemos, neste período, uma pintura de uma paisagem ou de uma
circunstância qualquer da realidade social. Ou seja, a arte só tinha valor se fosse
utilizada para representar alguma coisa sacra. É como se as expressões culturais só
pudessem servir a Deus se fossem utilizadas no interior do domínio da Igreja, da
teologia e do culto. Esta cosmovisão dualista não trouxe apenas problemas para a esfera
artística, mas interferiu também na idéia que se tinha de ciência e nas relações entre
Igreja e governos. Tal predomínio despótico da esfera da “(pseudo)graça” sobre a esfera
da “natureza”, segundo a ideologia católico-romana, ocorrido durante todo o período
medieval, forneceu à civilização européia do período moderno, a justificativa para
racionalizar o seu desejo socialmente compartilhado por emancipação de toda fonte de
autoridade externa (inclusive a Palavra de Deus), com a conseqüente supervalorização
do domínio da “natureza” sobre o da “graça”. A única exceção, neste período
fortemente antropocêntrico e emancipatório (modernidade), foi o movimento
Reformado iniciado no séc. XVI, que redescobriu, à luz da Escritura, o fundamento de
uma cosmovisão cristã integral: a idéia de que não há duas realidades nem relativa e
nem tampouco absolutamente autônomas, mas sim uma realidade integralmente criada
por Deus, no entanto, caída, mas em processo de redenção graças à obra de Cristo Jesus.
Entretanto, não foi a cosmovisão biblicamente orientada, resgatada por alguns
reformadores, que prevaleceu. Já no início da modernidade (séculos XIV, XV e XVI),
esta divisão entre os domínios da natureza e da graça havia se tornado incontornável,
impulsionando o processo de secularização do ocidente.
O processo de secularização continuou até os nossos dia, levando à supremacia
do domínio da natureza nos negócios públicos e culturais e, consequentemente,
reduzindo o alcance do domínio da graça à esfera da vida privada do indivíduo (Igreja,
família e espiritualidade pessoal). Não é de admirar que em nossos dias, tenha se
tornado tão comum aquela visão de mundo socialmente compartilhada, segundo a qual,
questões referentes ao domínio da “religião” ou da “fé” (no nosso caso, os pressupostos
bíblicos) não devem ser consideradas na esfera pública, por se tratarem de matéria de
fórum íntimo e pessoal e, portanto, restritas ao domínio privado. Até mesmo as
instituições confessionais de ensino têm sido tolhidas no seu direito de, pelo menos,
ensinar aos seus alunos a pensarem criticamente a partir de um viés biblicamente
orientado.
Ainda hoje, no meio evangélico, percebemos o predomínio da cosmovisão
católico romana (natureza-graça) na maneira de pensar e de viver dos cristãos. Por
exemplo: Quando um cristão se envolve com a esfera da música, quase sempre ele
descamba para o extremo da alienação ou para o extremo da secularização. É possível
que ele só veja utilidade para a música quando a mesma é utilizada no serviço cúltico,
sendo o exercício de sua arte extra muros eclesiae, interpretado como algo profano a ser
evitado a todo custo. Por outro lado, em virtude de viverem também debaixo desta
cosmovisão dualista, existem músicos cristãos que se tornam totalmente secularizados,
porque não conseguem entender como a sua arte pode estar a serviço de Deus fora dos
muros da Igreja.
6
8
KUYPER, Calvinismo, p. 86-115.
9
WOLTERS, The Intellectual Milieu of Herman Dooyeweerd, p. 6.
8
regular os afazeres estruturais da família. Assim como a igreja não deriva seus direitos
de existência do estado”.10
Isto quer dizer que estas instituições sociais não são meros produtos de uma
evolução contingente e aleatória da sociedade, resultante do desenvolvimento histórico-
cultural, mas são o que são, porque Deus determinou de modo estrutural e inalterado, no
momento da criação, o seu significado e seu funcionamento. Portanto, em cada
instituição social ou setor cultural, existem limites competenciais que devem ser
respeitados pelos demais, assim como estes também não podem extrapolar os seus
próprios limites. Isso não quer dizer que tais instituições devam viver de forma estanque
e completamente independentes. Pelo contrário, elas devem promover o
desenvolvimento histórico-cultural através de seu interrelacionamento, sempre
respeitando cada qual a sua própria esfera de soberania.
Todo este arrazoado, só para dizer que ainda que sejamos cristãos convictos no
desempenho de nossa fé e de nossa conduta cristã, ao atender ao chamado de Deus para
servirmos em esferas distintas da cultura, nós temos que fazê-lo obedecendo aos limites
estruturais da esfera onde estamos atuando, pois tais estruturas divinamente
estabelecidas estão em plena conformidade com as exigências preceituais da Palavra de
Deus.
Voltemos, então, ao exemplo do cristão que serve a Deus como prefeito de uma
cidade. Acerca daquilo que crê e da conduta moral praticada, este homem é o mesmo,
no contexto da Igreja e da vida política. Ele professa a sua fé em Cristo em ambas às
esferas, dando exemplo de uma conduta cristã irrepreensível. Apesar do caráter
ideológico e corruptor do contexto político atual, este cristão representa a sua fé de
maneira destemida. Embora se comporte como cristão autêntico em ambas as esferas, a
maneira como desempenha a sua vocação cultural (prefeito) é relativa à estrutura da
esfera na qual ele serve a Deus. Por exemplo, é parte da estrutura da esfera político-
governamental promover o bem público, executando as leis e aplicando os recursos
financeiros com justiça, visando sempre à manutenção da ordem e bem estar sociais.
Em Rm 13, Paulo aponta para estes aspectos estruturais da esfera governamental
quando diz que “a autoridade é ministro de Deus para o nosso bem”, por isso “é
necessário que estejamos sujeitos a elas, não somente por causa do temor da punição,
mas também por dever de consciência. Por esse motivo, também pagamos tributos,
porque são ministros de Deus, atendendo, constantemente, a este serviço” (Rm 13.4-6).
Acontece que vivemos em um mundo caído, onde as leis estruturais,
divinamente estabelecidas, são, o tempo todo, direcionadas por intenções
emancipatórias e rebeliosas, ocasionando um desenvolvimento cultural distorcido, com
inúmeros momentos de apostasia, inclusive na esfera político-governamental. É por isso
que surgem inúmeros dilemas e desafios à fé de um cristão que executa seu chamado na
esfera pública (como aquele do nosso exemplo), pois ele não governa só pessoas, que
como ele, professam a fé cristã, mas governa a todos (crentes e ímpios). E, além disso,
governa num “estado de direito” cujas leis que tem que executar, nem sempre
representam inteiramente os valores chancelados por Deus em sua Palavra. Mas isso
não é novo e nem exclusivo de nossa época secularizada. Pensem por exemplo na lei do
divórcio outorgada por Moisés. Jesus mesmo disse que, apesar de não ser esta a vontade
de Deus, revelada na estrutura do matrimônio e nem na Palavra, este expediente foi
legalizado em Israel por causa “da dureza do coração das pessoas” (Mc 10.2-12). Isso
não quer dizer, que o que seja legalizável, do ponto de vista humano, deixe,
automaticamente, de ser pecado diante de Deus.
10
KNUDSEN, Calvinistic Philosophy, p. 15. Minha tradução.
9
4. Conclusão
Contudo, é muito comum vermos pessoas que viveram por muitos anos em
rebelião contra Deus, e que depois de regeneradas, passaram a experimentar uma
profunda e indiscriminada aversão por todo seu modo de vida anterior, incluindo
aquelas práticas que não eram pecaminosas em si, mas que por estarem associadas
àquele passado indesejável, passaram a ser desprezadas também. O texto de 1 Co 8 é
muito apropriado para entendermos qual deve ser a nossa postura diante de
situações como estas. E à luz deste texto, a conclusão a que chegamos é a de que a nossa
postura em relação àquelas pessoas que ainda mantêm uma visão de mundo dicotômica
e alienada deve ser a paciência, o discipulado, o amor e a tolerância.