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AULA 3
MANDATO CULTURAL E A ABRANGÊNCIA E LIMITES DA
PARTICIPAÇÃO CRISTÃ NA CULTURA
Fabiano de Almeida Oliveira

Os cristãos até hoje têm muita dificuldade em lidar com as questões culturais.
Daí o propósito deste curso que, dentre outras coisas, visa provocá-los a pensarem sobre
essa questão de maneira séria e a se envolverem com o cumprimento do mandato
cultural de forma engajada e responsável.
A inquietação gerada por esta questão, realmente, se justifica pelo fato de ainda
vivermos num mundo caído sob a influência constante do pecado, que continua agindo
em nós através dos mecanismos internos de auto-engano. O que quero dizer é que,
mesmo a despeito da obra de redenção ter se iniciado em nós, o nosso coração ainda não
é inteiramente confiável. Creio que, por isso, é tão importante cultivarmos a santificação
e, a reboque, uma atitude crítica biblicamente orientada, para que possamos “julgar
todas as coisas e depois reter o que é bom e nos abster de toda forma de mal” (1 Ts
5.21-22).

1. O Mandato Cultural e o Envolvimento Cristão na Cultura

A intenção destas aulas, obviamente, não é a de estimulá-los a um consumo


acrítico e irrefletido das produções culturais não-cristãs, mas oferecer a vocês uma
reflexão biblicamente orientada de como podemos e devemos nos comportar diante dos
diversos desafios culturais, visto ser inevitável a nossa participação no desenvolvimento
da sociedade e da cultura.
Há um princípio geral que podemos depreender de uma passagem da Escritura
que é a de Tg 1.17. Esta passagem diz que “toda a boa dádiva e todo o dom perfeito
vem do alto, descendo do Pai das luzes, em quem não há mudança nem sombra de
variação”. Portanto, não existe nada que seja bom, justo e verdadeiro que, em última
instância, não proceda de Deus. Aliás, Paulo vai nesta direção, quando faz suas
recomendações gerais à Igreja dos filipenses: “Finalmente, irmãos, tudo o que é
verdadeiro, tudo o que é respeitável, tudo o que é justo, tudo o que é puro, tudo o que é
amável, tudo o que é de boa fama, se alguma virtude há e se algum louvor existe, seja
isso o que ocupe o vosso pensamento” (Fp 4.8).
O Reformador do século XVI, João Calvino, foi um dos principais pensadores
cristãos, depois de Agostinho, a resgatar este ensino da Escritura. Calvino dizia, de
maneira enfática, que toda verdade procedia de Deus, e que, por isso, mesmo que
tivesse sido dita por um ímpio, não deveria ser rejeitada, mas sim, bem utilizada, a fim
de que a glória do Senhor fosse promovida.1 Comentando o primeiro capítulo, versículo
doze da epístola a Tito, Calvino assevera:

Desta passagem podemos inferir que é supersticioso recusar-se fazer qualquer


uso de autores seculares. Porque, visto que toda a verdade procede de Deus, se
algum ímpio disser algo verdadeiro, não devemos rejeitá-lo, porquanto o mesmo
procede de Deus. Além disso, visto que todas as coisas procedem de Deus, que

1
CALVINO, João. Comentário à Sagrada Escritura: As Pastorais – I Timóteo, II Timóteo, Tito e
Filemom. São Paulo: Edições Parácletos, 1998. Comentário de Tt 1.12, p. 318.
2

mal haveria em empregar, para a sua glória tudo quanto pode ser corretamente
usado dessa forma.2

Nas Institutas da Religião Cristã Calvino semelhantemente afirma:

Quantas vezes, pois, entramos em contato com escritores profanos, somos


advertidos por essa luz da verdade que neles esplende admirável, de que a
mente do homem, quanto possível decaída e pervertida de sua integridade, no
entanto é ainda agora vestida e adornada de excelentes dons divinos. Se
reputarmos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade, a própria verdade,
onde quer que ela apareça, não a rejeitaremos, nem a desprezaremos, a menos
que queiramos ser insultuosos para com o Espírito de Deus. Ora, nem se
menosprezam os dons do Espírito sem desprezar- se e afrontar-se ao próprio
Espírito.

E então? Negaremos que a verdade se manifestou nos antigos jurisconsultos, os


quais, com eqüidade tão eminente, plasmaram a ordem política e a instituição
jurídica? Diremos que os filósofos foram cegos, tanto nesta apurada
contemplação da natureza, quanto em sua engenhosa descrição? Diremos que
careciam de inteligência esses que, estabelecida a arte de arrazoar, a nós nos
ensinaram a falar com razoabilidade? Diremos que foram insanos esses que,
forjando a medicina, nos dedicaram sua diligência? O que dizer de todas as
ciências matemáticas? Porventura as julgaremos delírios de dementes? Pelo
contrário, certamente não poderemos ler sem grande admiração os escritos dos
antigos acerca dessas coisas. Mas os admiraremos porque seremos obrigados a
reconhecer seu profundo preparo. Todavia, consideraremos algo digno de
louvor ou mui excelente que não reconheçamos provir de Deus?
Envergonhemo-nos de tão grande ingratidão, na qual nem mesmo os poetas
pagãos incidiram, os quais têm professado que a filosofia é invento dos deuses,
bem como as leis e todas as boas artes. Portanto, se esses homens, a quem a
Escritura chama psychikoús – [naturais, 1Co 2.14], que não tinham outra
ajuda além da luz da natureza, foram tão engenhosos na inteligência das
coisas deste mundo, tais exemplos devem ensinar-nos quantos são os dons e
graças que o Senhor tem deixado à natureza humana, mesmo depois de ser
despojada do verdadeiro e sumo bem.3
Pois se o Senhor nos quis assim que fôssemos ajudados pela obra e ministério
dos ímpios na física, na dialética, na matemática e nas demais áreas do saber,
façamos uso delas, para que não soframos o justo castigo de nossa displicência,
caso negligenciemos as dádivas de Deus nelas graciosamente oferecidas.4

Contudo, Calvino sustentará que estas capacidades humanas resultam da graça


“geral” de Deus sobre a humanidade caída,5 e corretamente reconhecerá que dentro

2
Ibid.
3
CALVINO, João. As Institutas ou Tratado da Religião Cristã. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana,
1985, II.2.15, p. 32.
4
Ibid., II.2.16, p. 33.
5
Ibid., II.2.17, p. 34.
3

desta realidade caída todo conhecimento correto, advindo da pena dos sábios, também
está entremeado ao erro e a falsidade, justamente por lhes faltar o verdadeiro
conhecimento de Deus.

Além disso, essas gotículas de verdade com que, como que fortuitamente,
borrifam seus livros, de quantas e quão portentosas falsidades têm sido
manchadas! Afinal, por certo jamais nem sequer o cheiro sentiram daquela
certeza da divina benevolência para conosco, sem a qual a mente do homem
necessariamente se enche de desmedida confusão. Portanto, a razão humana
nem se aproxima, nem se esforça, nem sequer mira em direção a esta verdade,
de sorte a entender quem seja o Deus verdadeiro, ou o que ele seja para
conosco.6

A meu ver, toda tentativa de diálogo crítico com a cultura deve seguir esta
orientação original de Calvino, de que a graça “geral” ou “comum” de Deus possibilitou
a humanidade com capacidades que trouxeram à luz muitos momentos de verdade.
Porém, como Calvino, nós também devemos reconhecer que em todas as mais diversas
expressões culturais, nascidas sob a égide da queda, há uma mistura multifacetada de
elementos de verdade e elementos de falsidade (emancipação idólatra e apostasia).
Cabe, então, ao pensador cristão, ter bem firme e claro no coração os pressupostos que
emanam do verdadeiro conhecimento de Deus na Escritura, bem como, ter uma visão
abrangente da história da cultura e da origem religiosa de seus pressupostos (auto-
reflexão radical) para saber discernir os momentos de verdade presentes nas
manifestações culturais não-cristãs, e depois disso, no dizer de Calvino, “visto que
procedem do seu Espírito, empregá-los, portanto, corretamente para a glória de Deus”.7
Outra coisa que precisamos entender é que, à luz do registro bíblico que serve de
base para o mandato cultural (Gn 1.28), a participação no desenvolvimento da cultura
não é opcional, mas sim uma necessidade estrutural, resultante de uma ordenação
cosmonômica. O Mandato Cultural, antes de tudo, é um mandato cosmonômico, tal
como os demais da criação. O que quero dizer é que quando Deus criou todas as coisas
por meio de sua Palavra, Ele estabeleceu uma série de leis estruturais que fazem com
que a realidade, inexoravelmente, funcione da maneira para a qual foi criada. Ao usar a
sua Palavra criadora para ordenar “sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra e
sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todo animal
que rasteja pela terra” (Gn 1.28), Deus não estava simplesmente estabelecendo uma
norma ou preceito com possibilidade de ser obedecido ou desobedecido por suas
criaturas humanas, como acontece, por exemplo, com os vários mandamentos
encontrados na Escritura. Mas Ele estava estabelecendo um estado de coisas com o qual
o homem se envolveria necessariamente, mesmo a despeito da rebelião espiritual do seu
coração. Em Gn 1.28, temos o estabelecimento soberano de uma ordem estrutural
inamovível que perdurará até o fim deste presente estado de coisas, como por exemplo,
acontece com as demais leis estruturais estabelecidas por Deus para reger a realidade
natural. Na verdade, a ordenação cosmonômica registrada em Gn 1.28, é da mesma
natureza que as demais ordenações divinas encontradas no ato da estruturação da
realidade natural ou quando estabeleceu a estrutura de significado do matrimônio.

6
Ibid., II.2.18, p. 35.
7
CALVINO, Comentário à Sagrada Escritura: As Pastorais, comentário a Tito 1.12, p. 318.
4

Isso quer dizer que, vivendo debaixo destas leis estruturais, estabelecidas no ato
da criação, qualquer homem, seja ele cristão ou não, inescapavelmente tem uma
“vocação natural (estrutural)” para participar da abertura e desenvolvimento da cultura,
pois consciente, ou não, de que está fazendo isso para Deus, o homem cumprirá este
mandato estrutural. Portanto, o mandato cultural e seu cumprimento devem ser
encarados como uma atribuição natural e necessária, com a significativa diferença de
que agora, nós cristãos, temos plena consciência da abrangência e das implicações de
nossa participação redentiva nele.

2. A Abrangência e os Limites da Participação Cristã na Cultura

É óbvio que existem limites para o envolvimento cultural e todos eles são
discerníveis a partir do ensino geral da Escritura e do bom senso resultante do mesmo.
Um deles é o limite imposto pelo perigo das associações que, potencialmente, podem
provocar escândalos (Mt 18.1-10; Rm 14). Por isso, que neste caso, o princípio
limitador de nosso envolvimento com a cultura deve sempre ser o amor pelos que estão
ao nosso entorno (Rm 14.15). Outro limite é aquele imposto pela consciência pessoal de
cada um. A consciência é uma de nossas primeiras fontes de autoridade, e por isso,
subverter a consciência se constitui em pecado, ainda que algo seja visivelmente lícito
por ter uma natureza justa e boa (1 Co 6.12-13; 10.23-33). Quando alguém tem uma
consciência sensível, como aquela descrita pelo apóstolo Paulo em 1 Co 10, e mesmo
assim a subverte, ainda que seja em prol de algo visivelmente lícito, justo e bom, ele
peca, não por causa da coisa lícita, mas porque atentou contra uma fonte de autoridade
que é a sua consciência, abrindo um precedente perigoso para subverter autoridades
superiores.
Nesta busca por um envolvimento cristão responsável com a sociedade e suas
produções culturais, penso que o que temos que evitar é um tipo de alienação que nos
leve a construir, em torno de nós mesmos, uma subcultura evangélica que, no final das
contas, acaba sendo um pastiche muito mal feito das produções culturais seculares. O
que temos assistido, no meio evangélico atual, se deve a uma cosmovisão pseudo-cristã
que dicotomiza a vida em duas esferas distintas e estanques: uma esfera que é chamada
de secular, que envolveria o domínio da ética pública e da cultura (trabalho, ciência,
arte, política, negócios, etc.), e a outra que é chamada de religiosa ou esfera da fé
(domínio da espiritualidade). Não é de admirar que muitas pessoas que se dizem cristãs,
nos dias atuais, costumem fazer uma dicotomia entre a espiritualidade e a conduta ética.
Dia desses vi uma entrevista de uma pessoa que se dizia evangélica, afirmando que não
via problema algum em participar de filmes pornográficos.
Todos sabemos que tal atitude vai na completa contramão do que a Palavra de
Deus nos ensina acerca da ética do Reino dos Céus. Já uma cosmovisão cristã,
consistente com a Escritura, nos leva a encarar a vida de maneira integral (criação,
queda, redenção), vendo a fé e a espiritualidade em íntima relação com a conduta ética e
com a nossa vida de amor e obediência a Deus em todos os domínios da vida e da
cultura.
Esta cosmovisão dicotômica entre “sagrado” e “secular”, teve origem na
cosmovisão dualista medieval européia, fundada no binômio natureza-graça. Esta
cosmovisão pseudo-cristã vigorou durante boa parte do período medieval e, segundo
ela, a realidade seria composta de dois domínios relativamente autônomos e estanques,
o domínio da natureza e o domínio da graça. O domínio da natureza envolveria tudo
aquilo que estivesse intimamente ligado ao mundo físico e temporal: razão, cultura,
filosofia, ciência, governos, casamento, trabalho, família, etc. Enquanto que o domínio
5

da graça envolveria tudo aquilo que estivesse relacionado ao mundo celestial e à vida
espiritual: fé, teologia, Palavra de Deus, culto, Igreja, sacerdócio, clero, etc.
Durante todo período medieval houve uma excessiva valorização do domínio da
“graça” em relação ao domínio da natureza. De tal forma, que para serem
“santificadas”, as coisas pertencentes ao domínio da natureza deveriam servir ao
domínio da graça. Isso é muito perceptível quando estudamos a arte medieval. Obras de
arte dignas, nesta época, eram aquelas que retratavam as realidades celestiais.
Dificilmente vemos, neste período, uma pintura de uma paisagem ou de uma
circunstância qualquer da realidade social. Ou seja, a arte só tinha valor se fosse
utilizada para representar alguma coisa sacra. É como se as expressões culturais só
pudessem servir a Deus se fossem utilizadas no interior do domínio da Igreja, da
teologia e do culto. Esta cosmovisão dualista não trouxe apenas problemas para a esfera
artística, mas interferiu também na idéia que se tinha de ciência e nas relações entre
Igreja e governos. Tal predomínio despótico da esfera da “(pseudo)graça” sobre a esfera
da “natureza”, segundo a ideologia católico-romana, ocorrido durante todo o período
medieval, forneceu à civilização européia do período moderno, a justificativa para
racionalizar o seu desejo socialmente compartilhado por emancipação de toda fonte de
autoridade externa (inclusive a Palavra de Deus), com a conseqüente supervalorização
do domínio da “natureza” sobre o da “graça”. A única exceção, neste período
fortemente antropocêntrico e emancipatório (modernidade), foi o movimento
Reformado iniciado no séc. XVI, que redescobriu, à luz da Escritura, o fundamento de
uma cosmovisão cristã integral: a idéia de que não há duas realidades nem relativa e
nem tampouco absolutamente autônomas, mas sim uma realidade integralmente criada
por Deus, no entanto, caída, mas em processo de redenção graças à obra de Cristo Jesus.
Entretanto, não foi a cosmovisão biblicamente orientada, resgatada por alguns
reformadores, que prevaleceu. Já no início da modernidade (séculos XIV, XV e XVI),
esta divisão entre os domínios da natureza e da graça havia se tornado incontornável,
impulsionando o processo de secularização do ocidente.
O processo de secularização continuou até os nossos dia, levando à supremacia
do domínio da natureza nos negócios públicos e culturais e, consequentemente,
reduzindo o alcance do domínio da graça à esfera da vida privada do indivíduo (Igreja,
família e espiritualidade pessoal). Não é de admirar que em nossos dias, tenha se
tornado tão comum aquela visão de mundo socialmente compartilhada, segundo a qual,
questões referentes ao domínio da “religião” ou da “fé” (no nosso caso, os pressupostos
bíblicos) não devem ser consideradas na esfera pública, por se tratarem de matéria de
fórum íntimo e pessoal e, portanto, restritas ao domínio privado. Até mesmo as
instituições confessionais de ensino têm sido tolhidas no seu direito de, pelo menos,
ensinar aos seus alunos a pensarem criticamente a partir de um viés biblicamente
orientado.
Ainda hoje, no meio evangélico, percebemos o predomínio da cosmovisão
católico romana (natureza-graça) na maneira de pensar e de viver dos cristãos. Por
exemplo: Quando um cristão se envolve com a esfera da música, quase sempre ele
descamba para o extremo da alienação ou para o extremo da secularização. É possível
que ele só veja utilidade para a música quando a mesma é utilizada no serviço cúltico,
sendo o exercício de sua arte extra muros eclesiae, interpretado como algo profano a ser
evitado a todo custo. Por outro lado, em virtude de viverem também debaixo desta
cosmovisão dualista, existem músicos cristãos que se tornam totalmente secularizados,
porque não conseguem entender como a sua arte pode estar a serviço de Deus fora dos
muros da Igreja.
6

Johann Sebastian Bach, cristão e um dos maiores compositores do mundo, não


compunha só peças sacras. Seu repertório era vasto, sua participação na cultura musical
do seu tempo era intensa. E no final de cada partitura que ele compunha (não só das
sacras) ele assinava com a seguinte sigla: SDG, que quer dizer, Soli Deo Glória (Glória
somente a Deus). Bach agia assim porque tinha uma cosmovisão cristã integral e não
segmentada, e por isso, no seu engajamento cultural, ele não se alienava e nem se
secularizava, mas participava ativamente do cumprimento deste mandato, glorificando a
Deus através de seus talentos musicais. Tudo isso que falei a respeito da música se
aplica a boa parte das manifestações culturais nas quais Deus nos vocacionou para
servi-lo.
É óbvio, que existem produções culturais tão afetadas pelo pecado que as tornam
inviáveis como forma de participação do cristão nelas. Algumas, por causa da sua
natureza intrinsecamente pecaminosa (p. ex. pornografia), outras, por causa de sua
profunda e explícita associação com as práticas ou ideologias pecaminosas, pois não há
possibilidade de redenção de algo que essencialmente nasceu e está profundamente
associado a uma proposta anticristã, ainda que se utilize de muitos aspectos que, em
algum nível, expressem o caráter verdadeiro da estrutura criada. Um exemplo disso,
bastante relacionado à nossa realidade brasileira, é a cultura carnavalesca.
É verdade que há uma gama enorme de aspectos artísticos envolvidos na cultura
carnavalesca e que expressam o potencial estético do homem. Refiro-me, por exemplo,
à criatividade artística presente nos adornos, em algumas das alegorias e esculturas, e
até em algumas performances e enredos (aqueles que não veiculam ideologias religiosas
de qualquer ordem ou temas obscenos e pecaminosos). No entanto, como tudo isso está
a serviço de um projeto ideológico-religioso mais amplo, que é expresso pela própria
essência e finalidade do carnaval, não é possível serem vistos e apreciados em abstração
ao conjunto total no qual estão inseridos. A cultura carnavalesca é uma daquelas
expressões culturais que estão completamente associadas a uma atitude profana, uma
celebração religiosamente pagã e caracteristicamente motivada pela primazia dos
sentimentos e da satisfação dos prazeres em emancipação a Deus e sua Palavra. Estou
falando da essência do carnaval, sem a qual a cultura carnavalesca deixa de existir. O
que quero dizer é que a essência do carnaval, a quem a cultura carnavalesca serve, é a
experimentação ilimitada e completa das sensações corporais e psicológicas, sem
qualquer tipo de restrições. Isso por si só deveria ser suficiente para inviabilizar tal
aproximação dos cristãos com esta manifestação cultural, que claramente reflete uma
postura completamente secularizada e potencialmente pecaminosa.
Apesar de já ter me posicionado contrariamente à aproximação entre fé cristã e
cultura carnavalesca, por se tratar de uma aproximação secularizada e pecaminosa,
repleta de implicações espirituais, morais e doutrinais, gostaria de aproveitar a
oportunidade para refletir um pouco sobre a seguinte questão: Como fica, então, a
situação de um cristão que ocupa um cargo público proeminente, como por exemplo o
de prefeito de uma cidade brasileira como Olinda ou Rio de Janeiro, nos períodos de
carnaval?
Penso que uma boa maneira de refletirmos sobre a questão, de maneira
biblicamente orientada, sem extremismos ou atitudes simplistas, é fazermos uma
diferenciação entre as esferas sociais e a nossa adequada participação nelas como
cristãos teorreferentes.

3. Esferas de Soberania e a Participação Cristã na Cultura


7

Há uma distinção de competências entre as esferas familiar, eclesiástica,


governamental, comercial, acadêmica, etc., e cada esfera ou instituição social, como
estas citadas, possuem leis estruturais que as diferenciam umas das outras, estabelecem
seus limites competenciais e regem o seu funcionamento.
Segundo o modelo teórico que estamos adotando neste curso, para cada aspecto
da diversidade criada, Deus concedeu leis próprias que determinam a sua identidade e o
seu funcionamento; a isso temos chamado de Estrutura. Por exemplo, uma planta está
circunscrita a determinadas leis físicas e bioquímicas imodificáveis, que a fazem ser e
funcionar da forma que Deus quis que ela funcionasse. Com as instituições sociais se dá
a mesma coisa. Conseqüentemente, se cada aspecto da criação possui uma lei particular
que lhe estrutura, lhe faz funcionar e ser aquilo que é, é natural que cada uma dessas
esferas da realidade criada tenha também os seus próprios limites de competência, ou
aquilo que o teólogo Reformado Abraham Kuyper denominava de “esferas de
soberania”. Kuyper aplicará esta teoria das “esferas de soberania”, primordialmente, em
relação às instituições sociais, para estabelecer, à luz da Escritura, os papéis e limites
competenciais de cada instituição (Igreja, Estado, Universidade, Família, etc.),
sobretudo no seu tratamento dado a interrelação entre a Igreja e o Estado.8
Tomemos como exemplo a família; ela também foi criada por Deus dentro de
um contexto de leis cosmonômicas e preceituais que a distingue do Estado ou da Igreja,
e que a faz ser e funcionar dentro daquilo para o qual Deus a criou. A família como uma
instituição criada por Deus, com um determinado significado ou propósito a ser atingido
no mundo, recebeu, quando da sua instituição cosmonômica, na criação, normas
estruturais que delimitam o seu funcionamento dentro daquilo para o qual Deus a
designou. A fim de atingir, de maneira bem-sucedida, o propósito para o qual a família
foi instituída, o marido deve amar sua mulher; deve deixar pai e mãe se unindo à sua
esposa para que sejam os dois uma só carne; esta união deve ser monogâmica; ao
marido cabe o exercício da autoridade no lar e à mulher compete auxiliá-lo; ambos
devem educar os filhos estabelecendo limites morais, ensinando-os a apreciarem o que é
bom e reto e a repudiarem o que é mal e injusto. Dentro da esfera de soberania de um
lar, não compete a um pai obrigar seu filho a não se batizar na igreja, nem tampouco
impedi-lo de cumprir seus deveres cívicos, como por exemplo, votar. Isso seria
ultrapassar os limites estruturais da esfera familiar e invadir a esfera de soberania de
outras instituições. O batismo está relacionado à esfera de soberania da Igreja, enquanto
que no caso do voto, tal proibição só poderia partir do Estado. Da mesma forma, o
Estado não pode impedir os crentes de cultuarem a Deus, e a Igreja não pode proibir os
crentes de cumprirem seus deveres cívicos, a não ser que as leis do Estado estejam em
franco desacordo com a vontade de Deus revelada na Escritura, o que já seria uma
evidência inconfundível de que o Estado ultrapassou sua esfera de soberania. Neste
caso, “mais vale obedecer a Deus que os homens”.
Na visão de Kuyper, cada instituição social (Estado, Família, Escola ou
Universidade, Igreja, etc.) ou cada setor da vida cultural humana (arte, ciência,
academia, comércio, política) “teria sua jurisdição limitada e definida pela natureza
especifica da sua própria esfera”.9 Por isso, deve prevalecer o respeito aos limites
estruturais estabelecidos por Deus a cada uma delas, a fim de que não haja ingerência de
uma instituição nos negócios que dizem respeito à outra: “Nenhuma esfera pode
transgredir os limites de outra esfera. Sendo assim, o estado não está em posição de

8
KUYPER, Calvinismo, p. 86-115.
9
WOLTERS, The Intellectual Milieu of Herman Dooyeweerd, p. 6.
8

regular os afazeres estruturais da família. Assim como a igreja não deriva seus direitos
de existência do estado”.10
Isto quer dizer que estas instituições sociais não são meros produtos de uma
evolução contingente e aleatória da sociedade, resultante do desenvolvimento histórico-
cultural, mas são o que são, porque Deus determinou de modo estrutural e inalterado, no
momento da criação, o seu significado e seu funcionamento. Portanto, em cada
instituição social ou setor cultural, existem limites competenciais que devem ser
respeitados pelos demais, assim como estes também não podem extrapolar os seus
próprios limites. Isso não quer dizer que tais instituições devam viver de forma estanque
e completamente independentes. Pelo contrário, elas devem promover o
desenvolvimento histórico-cultural através de seu interrelacionamento, sempre
respeitando cada qual a sua própria esfera de soberania.
Todo este arrazoado, só para dizer que ainda que sejamos cristãos convictos no
desempenho de nossa fé e de nossa conduta cristã, ao atender ao chamado de Deus para
servirmos em esferas distintas da cultura, nós temos que fazê-lo obedecendo aos limites
estruturais da esfera onde estamos atuando, pois tais estruturas divinamente
estabelecidas estão em plena conformidade com as exigências preceituais da Palavra de
Deus.
Voltemos, então, ao exemplo do cristão que serve a Deus como prefeito de uma
cidade. Acerca daquilo que crê e da conduta moral praticada, este homem é o mesmo,
no contexto da Igreja e da vida política. Ele professa a sua fé em Cristo em ambas às
esferas, dando exemplo de uma conduta cristã irrepreensível. Apesar do caráter
ideológico e corruptor do contexto político atual, este cristão representa a sua fé de
maneira destemida. Embora se comporte como cristão autêntico em ambas as esferas, a
maneira como desempenha a sua vocação cultural (prefeito) é relativa à estrutura da
esfera na qual ele serve a Deus. Por exemplo, é parte da estrutura da esfera político-
governamental promover o bem público, executando as leis e aplicando os recursos
financeiros com justiça, visando sempre à manutenção da ordem e bem estar sociais.
Em Rm 13, Paulo aponta para estes aspectos estruturais da esfera governamental
quando diz que “a autoridade é ministro de Deus para o nosso bem”, por isso “é
necessário que estejamos sujeitos a elas, não somente por causa do temor da punição,
mas também por dever de consciência. Por esse motivo, também pagamos tributos,
porque são ministros de Deus, atendendo, constantemente, a este serviço” (Rm 13.4-6).
Acontece que vivemos em um mundo caído, onde as leis estruturais,
divinamente estabelecidas, são, o tempo todo, direcionadas por intenções
emancipatórias e rebeliosas, ocasionando um desenvolvimento cultural distorcido, com
inúmeros momentos de apostasia, inclusive na esfera político-governamental. É por isso
que surgem inúmeros dilemas e desafios à fé de um cristão que executa seu chamado na
esfera pública (como aquele do nosso exemplo), pois ele não governa só pessoas, que
como ele, professam a fé cristã, mas governa a todos (crentes e ímpios). E, além disso,
governa num “estado de direito” cujas leis que tem que executar, nem sempre
representam inteiramente os valores chancelados por Deus em sua Palavra. Mas isso
não é novo e nem exclusivo de nossa época secularizada. Pensem por exemplo na lei do
divórcio outorgada por Moisés. Jesus mesmo disse que, apesar de não ser esta a vontade
de Deus, revelada na estrutura do matrimônio e nem na Palavra, este expediente foi
legalizado em Israel por causa “da dureza do coração das pessoas” (Mc 10.2-12). Isso
não quer dizer, que o que seja legalizável, do ponto de vista humano, deixe,
automaticamente, de ser pecado diante de Deus.
10
KNUDSEN, Calvinistic Philosophy, p. 15. Minha tradução.
9

Agora estamos em condições de responder à questão proposta, logo acima, sobre


a participação de um cristão em um cargo público proeminente e de como deve reagir
diante das festividades biblicamente impróprias de sua cidade, para aplicarmos a
reflexão biblicamente orientada do que apresentamos até agora.
Como cristão autêntico, este homem deve se reservar no direito de não participar
de qualquer evento que deponha contra a sua fé, e, pessoalmente creio que a festa de
carnaval é um destes eventos, pelas razões anteriormente citadas. Contudo, na qualidade
de autoridade constituída, chamado por Deus para governar ímpios e crentes e executar
as leis de maneira justa e imparcial, este prefeito cristão não pode se omitir do dever de
propiciar aos cidadãos de sua cidade, todas as condições necessárias para que exerçam
seus direitos cívicos da maneira mais ordeira e satisfatória possível, ainda que como
cristão não aprove e nem participe de determinadas festividades que os não-cristãos
participam. É claro que como autoridade pública, este prefeito cristão, comprometido
com sua fé, não pode, simplesmente, se conformar em executar as leis, mantendo-se
indiferente ao processo de secularização da sociedade. Afinal de contas, ele está ali
atendendo a um chamado de Deus. Por isso, em seu mandato, ele deve usar de todos os
expedientes legais disponíveis para implementar políticas culturais que fomentem
formas de celebração alternativas e culturalmente saudáveis, sem que subverta o estado
de direito. Não estou dizendo, com isso, que este político sempre será bem sucedido em
seus esforços de fazer um governo honrado que expresse a vontade de Deus. Pode ser
até que nunca mais seja reeleito. Isso dependerá muito do nível de impiedade e
secularização da sociedade sobre quem exerce governo e da manifestação graciosa de
Deus sobre esta sociedade. No entanto, neste caso, o resultado não é o mais importante,
mas sim a disposição de servir fielmente a Deus onde quer que ele nos coloque.
Ainda sobre este tópico, gostaria de sugerir a vocês a leitura da biografia
inspiradora de William Wilberforce. É a história de um cristão inglês do século XVIII,
membro do parlamento inglês, que conseguiu expressar de forma muito concreta, em
sua trajetória política, os ideais e valores cristãos, tendo sido um dos maiores
idealizadores e responsáveis pela abolição escravagista praticada pela Inglaterra e por
diversas outras leis que pressionaram o mundo da época a abolirem-na também.

4. Conclusão

Como demonstrei, anteriormente, todos têm um chamado para servir a Deus na


sociedade. O mandato cultural tem um caráter muito mais cosmonômico do que
preceitual, tornando a participação humana no desenvolvimento da sociedade e da
cultura, algo natural e inescapável. Isso quer dizer, que tanto o homem culto quanto o
inculto terá sua participação assegurada neste processo. O que se exige do cristão,
portanto, é que ele tome consciência do caráter redentivo de sua participação neste
processo de desenvolvimento da cultura e assuma o seu chamado naquelas áreas onde
Deus o colocou. Muitas das vezes estas áreas se limitam às esferas da família e do nosso
trabalho (comércio, indústria, etc.), onde não se exige treinamento teórico especial, mas
apenas o conhecimento vivo da Palavra para atendê-lo. Mas às vezes o chamado para
que sirvamos a Deus se dá em esferas da cultura mais especializadas e sofisticadas
como as esferas política, científica, filosófica, legal, etc. Neste caso, os servos de Deus,
além do conhecimento integral da Palavra, conhecimento que envolve a apreensão
conceitual do dado revelado e sua prática, deverão dominar também os meandros
teóricos destas mesmas áreas para que cumpram cabalmente seu “sacerdócio universal”.
Em ambos os casos, o fator determinante é que cada um assuma seu sacerdócio diante
Deus onde quer que Ele o tenha colocado.
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Contudo, é muito comum vermos pessoas que viveram por muitos anos em
rebelião contra Deus, e que depois de regeneradas, passaram a experimentar uma
profunda e indiscriminada aversão por todo seu modo de vida anterior, incluindo
aquelas práticas que não eram pecaminosas em si, mas que por estarem associadas
àquele passado indesejável, passaram a ser desprezadas também. O texto de 1 Co 8 é
muito apropriado para entendermos qual deve ser a nossa postura diante de
situações como estas. E à luz deste texto, a conclusão a que chegamos é a de que a nossa
postura em relação àquelas pessoas que ainda mantêm uma visão de mundo dicotômica
e alienada deve ser a paciência, o discipulado, o amor e a tolerância.

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