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AULA 1

CULTURA, COSMOVISÃO E ATITUDE CRÍTICA


Fabiano de Almeida Oliveira

De todos os desafios pelos quais passou e tem passado a Igreja cristã ao longo dos séculos, sem
sombra de dúvidas, um dos maiores tem sido o de como se comportar diante das produções culturais
humanas sem se contaminar. Desafio ainda maior tem sido o de como viver no meio da cultura redimindo-a
das marcas do pecado. A cultura é algo muito vasto, ela envolve todas as produções humanas resultantes de
sua interação com a natureza e com os demais seres humanos. Estas vão desde as produções científicas e
tecnológicas presentes nos nossos eletrodomésticos e nos tratamentos médicos avançados aos quais nos
submetemos, até coisas comuns que fazemos diariamente como nossos hábitos sociais de higiene e boas
maneiras. Ao longo dos séculos, duas têm sido as atitudes mais comuns diante deste desafio: alienação e
secularização.
Estas duas atitudes são igualmente doentias e pecaminosas, pois nos afastam do projeto redentivo de
Deus para o mundo. A alienação parte do princípio de que não existe nada de verdadeiro e bom nas
produções culturais humanas por causa da queda, por isso, o melhor a fazer é nos afastarmos completamente
da cultura e criarmos uma subcultura evangélica própria. O resultado disso é um cristianismo irrelevante,
que não transforma o mundo. A secularização, por sua vez, é a atitude daquele que subestima os efeitos da
queda na cultura humana e, por isso, se envolve com as coisas temporais sem refletir criticamente se elas
estão, ou não, de acordo com os parâmetros estabelecidos por Deus. O resultado é um cristianismo
“mundanizado”. De fato, Cristo, em sua oração sacerdotal e, também, no sermão da montanha, já dizia que,
embora não sejamos do mundo, sua vontade é que permaneçamos no mundo e sejamos agentes de
transformação do mundo (Jo 17.14-18; Mt 5.13-16). Além disso, continuamos vivendo sob a vigência do
mandato cultural (Gn 1.28), que nos torna responsáveis pelo desenvolvimento das potencialidades criadas e
pela direção que damos à cultura. Por isso, nem a alienação e nem tampouco a secularização são atitudes
condizentes com as exigências destes mandatos divinos.
Mas como podemos nos envolver redentivamente com a cultura sem nos contaminarmos com aquilo
de pecaminoso que há nela? Como distinguir o que é justo e bom na cultura daquilo que é injusto e mau?
Como discernir a verdade de Deus no meio das produções culturais humanas? Como saber, por exemplo,
qual é o posicionamento político correto diante de uma questão controversa; quais são as expressões
artísticas ou formas de entretenimento que agradam e glorificam a Deus; como saber se aquilo que os nossos
filhos estão aprendendo na escola ou na universidade está realmente de acordo com a vontade revelada de
Deus?
A única maneira de nos envolvermos redentivamente com a cultura, sem cairmos nos extremos da
alienação e da secularização, é assumirmos uma atitude crítica (criteriosa) diante de todas as produções
culturais, tendo como parâmetro os pressupostos centrais da Palavra de Deus, “avaliando todas as coisas,
retendo o que é bom e nos abstendo de toda forma de mal” (1 Ts 5.21-22). Só assim poderemos,
efetivamente, viver no mundo como agentes de transformação, sem nos conformarmos àquilo de
pecaminoso que há nele (Rm 12.1-2).
Podemos, então, afirmar que uma atitude crítica biblicamente orientada, é pré-requisito necessário
para se discernir os momentos de verdade e os momentos de emancipação pecaminosa presentes nas
diversas manifestações culturais. No Novo Testamento as palavras dokimazo, anakrino e kritikos carregam
consigo a idéia de “atitude crítica” que estamos apresentando aqui, e ambas significam: testar, julgar,
discernir, examinar, inquirir, escrutinar, avaliar, etc., com a finalidade de se encontrar a verdade. Vejamos
alguns exemplos:

Ts 5.21,22 julgai (dokimazo) todas as coisas, retende o que é bom; abstende-vos de toda forma de
mal.
João 4:1 Amados, não deis crédito a qualquer espírito; antes, provai (dokimazo) os espíritos se
procedem de Deus, porque muitos falsos profetas têm saído pelo mundo fora.
2

A ordem está clara. Diante da cultura o cristão não pode ser crédulo demais ou ingênuo, se
apropriando acrítica e irrefletidamente das produções culturais, mas também não pode ser cético, achando
ser impossível encontrar qualquer coisa de proveitoso que reflita a bondade e a verdade de Deus no mundo.
Diante da cultura o cristão não deve se alienar e nem se secularizar. A atitude recomendada é seja crítico.
Interaja com a cultura e a conheça, participe dela como um produtor cultural ativo, mas faça isso com
cautela, com critérios, pois a vontade de Deus não é nem a alienação e nem tampouco a secularização, mas
sim que nos envolvamos criteriosamente com a cultura para sermos “sal da terra e luz do mundo”. Vivendo
num mundo caído, as coisas boas e verdadeiras estão sempre entremeadas ao mal e ao erro. Daí a
necessidade de uma atitude crítica constante.
O parâmetro fundamental para uma atitude crítica biblicamente orientada é um único parâmetro com
dois lados. O primeiro lado do parâmetro para se julgar bem é a presença do Espírito do Senhor em nossos
corações (1 Co 2.14-16), algo que já ocorreu no momento da nossa regeneração.

Ora, o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode
entendê-las, porque elas se discernem (anacrino) espiritualmente. Porém o homem espiritual julga
(anacrino) todas as coisas, mas ele mesmo não é julgado (anacrino) por ninguém. Pois quem
conheceu a mente do Senhor, que o possa instruir? Nós, porém, temos a mente de Cristo.

Mas o Espírito sempre age de conformidade com a Palavra. Por isso, o segundo lado do parâmetro é
a apropriação constante e integral da Palavra de Deus, que sempre resulta em atitudes práticas de santidade e
obediência, fornecendo ao cristão a sabedoria e o senso crítico necessários para viver no mundo de forma
redentiva.

Sl 119.101-105 De todo mau caminho desvio os pés, para observar a tua palavra. Não me aparto
dos teus juízos, pois tu me ensinas. Quão doces são as tuas palavras ao meu paladar! Mais que o
mel à minha boca. Por meio dos teus preceitos, consigo entendimento; por isso, detesto todo
caminho de falsidade. Lâmpada para os meus pés é a tua palavra e, luz para os meus caminhos.
Hebreus 4:12 Porque a palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de
dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para
discernir (criticon) os pensamentos e propósitos do coração.

Portanto, diante de tudo o que foi visto, o que se exige de um cristão genuíno, chamado por Deus
para cumprir o mandato cultural, só que agora, também, como instrumento de redenção, é que ele mantenha
uma atitude crítica diante de todas as produções culturais, uma atitude de constante vigilância e avaliação
enquanto participa ativa e engajadamente do espectro cultural. Já aqueles cristãos que participam de maneira
mais específica das produções culturais humanas (professores, cientistas, advogados, artistas, políticos,
filósofos, etc.), além da atitude crítica, precisam, também, desenvolver um método de análise que lhes
permita discernir adequadamente, em meio às produções culturais, momentos de verdade e momentos de
apostasia. Daí a importância de desenvolvermos um método de análise crítica biblicamente orientada, mas
sobre isso falaremos na aula seguinte.

1. DEFININDO CULTURA E COSMOVISÃO

Temos falado da necessidade de cultivarmos uma atitude crítica diante das produções culturais
humanas, mas ainda não dissemos o que entendemos por “cultura”. Como o nosso curso versa sobre este
tema a partir de uma perspectiva biblicamente orientada, muitas outras coisas ainda serão ditas nas próximas
aulas que ajudarão a compor o nosso quadro geral acerca do significado de “cultura”. Por isso, não
pretendemos apresentar uma definição final nesta aula, mas apenas fazê-lo de maneira preliminar e
introdutória.
Numa acepção filosófica bem básica, a partir da qual se dará o nosso uso teológico em questão, o
conceito de “cultura” deve ser visto sempre na sua relação com o conceito de “natureza”. “Natureza” é tudo
3

aquilo que independe de participação humana para se constituir naquilo que é. Já “cultura” é o produto da
intervenção ou interação do homem com a natureza e com os outros homens. O relato do mandato cultural,
presente em Gn 1.27-28, se enquadra perfeitamente nesta idéia, não sendo estranho o uso do conceito
“cultura” para designar aquele estado de coisas originário de participação humana no desenvolvimento das
potencialidades da criação. Portanto, podemos dizer, de maneira muito geral, que cultura é tudo aquilo que é
produzido e partilhado pelos homens ao longo do tempo, determinando a identidade de um povo (saberes,
técnicas, mitos, costumes, valores, etc.). Todas as produções culturais refletem, em última instância, uma ou
mais cosmovisões. Portanto, para sermos bons discernidores da cultura, precisamos conhecer as
cosmovisões agindo nela. Sendo assim, o que é, então, uma cosmovisão?

1.1 Definição Preliminar de Cosmovisão

Cosmovisão é uma das traduções possíveis para Weltanschauung que é um substantivo feminino
composto de duas palavras alemãs: Welt – mundo, e Anschauung – concepção, percepção, intuição.
Weltanschauungen é sua forma plural. As demais traduções do conceito são biocosmovisão, concepção de
mundo, mundividência, visão de mundo e percepção de mundo, dentre outras possíveis em português, e as já
bem conhecidas worldview e life-worldview, em inglês.
Ao que tudo indica, o primeiro uso se deu com Immanuel Kant, na Crítica do Juízo, como a
capacidade humana de perceber a realidade sensível. No início, o termo “weltanschauung” era muito
associado com grandes sistemas metafísicos ou construções teóricas da cultura (metanarrativas filosóficas,
científicas e religiosas), como por exemplo, se observa na obra de Idealistas e Românticos alemães como
Hegel, Schelling, Goethe, etc.: Weltanschauung era igualada à filosofia da cultura ou do espírito absoluto.
Mais tarde Wilhelm Dilthey (1833-1911) chegou à conclusão que uma weltanschauung era um fenômeno
que não somente precedia o domínio da reflexão teórica como o condicionava. Para ele Weltanschauung era
um fenômeno pré-teórico ou pré-discursivo, um a priori necessário a consecução de todo projeto cultural,
inclusive de todo tipo de atividade teórica. Seguindo Dilthey, Karl Mannheim, um dos pais da sociologia do
conhecimento, dirá:

...a filosofia teórica não é nem a criadora e nem o principal veículo da Weltanschauung de uma
época; na realidade, ela é meramente só um dos canais através dos quais um fator global manifesta-
se. Mais do que isso – se esta totalidade que nós chamamos de Weltanschauung é entendida neste
sentido como algo a-teórico, e ao mesmo tempo ser a fundação de todas as objetivações culturais, tais
como a religião, costumes, arte, filosofia… (Ensaios de sociologia do conhecimento, Mannheim. p.
38)

Para Dilthey e Mannheim toda forma de pensamento teórico, manifestações artísticas, religiosas e
etc., eram manifestações da Weltanschauung de uma determinada época (Ensaios de sociologia do
conhecimento, Mannheim. p. 38). Para Dilthey e depois Mannheim, as cosmovisões são o estofo ou
substância primária do pensamento.
Será justamente esta concepção apriorística de Weltanschauung como fenômeno sócio-cultural
estruturador e condicionador de todos os empreendimentos culturais humanos que os pensadores calvinistas,
pioneiros no tratamento desta questão, James Orr e Abraham Kuyper, se apropriarão na sua análise
biblicamente crítica da realidade. James Orr (1844-1913)1, teólogo presbiteriano escocês, e Abraham

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James Orr (1844-1913), teólogo e apologeta presbiteriano escocês. Seu primeiro tratamento formal sobre o cristianismo como
uma cosmovisão se deu entre os anos 1890 e 1891 nas Kerr Lectures no United Presbyterian College em Edimburgo que
posteriormente foram publicadas com o título The Christian View of God and World. Orr viveu num dos períodos mais
conturbados da modernidade, um período em que os efeitos devastadores da secularização provocada pelos princípios
emancipatórios do Iluminismo estavam dominando a Europa. Orr desenvolveu a sua teoria seminal de cosmovisão cristã sobre
bases estritamente teológicas a partir do significado do termo alemão weltanschauung muito em voga nos círculos acadêmicos do
seu tempo. Para Orr a palavra weltanschauung (cosmovisão) “tem o valor de um termo técnico que denota a visão mais ampla que
a mente pode formar das coisas no esforço por compreendê-las juntas como um todo, a partir do ponto de vista de alguma filosofia
ou teologia particular. Portanto, ao falar de uma idéia cristã do mundo, se está dizendo que o cristianismo tem seu próprio ponto
de vista e sua idéia da vida relacionada com ele, e que esta idéia, quando é desenvolvida, constitui um conjunto ordenado” (Orr p.
7).
4

Kuyper (1837–1920)2 teólogo e estadista reformado holandês, foram os primeiros a aplicar formalmente a
idéia de cosmovisão ao contexto cristão-reformado.3 No entanto, é a teoria do desenvolvimento histórico-
cultural do filósofo de fé reformada e teórico legal, Herman Dooyeweerd (1894-1977)4, a que melhor
articula sobre o conceito de cosmovisão a partir de premissas reveladas, servindo de base para muitas
análises atuais, biblicamente orientadas, sobre o estudo especializado de cosmovisão.5
Vejamos algumas boas definições de “cosmovisão” oriundas de pensadores cristãos contemporâneos:

Cosmovisão é a soma total das nossas crenças sobre o mundo.Cosmovisão é o quadro geral que
dirige as nossas decisões e ações diárias.As nossas escolhas são moldadas pelo que acreditamos ser
real e verdadeiro, certo e errado, bom e bonito. Portanto, o modo como vemos o mundo pode mudar
o mundo (Charles Colson e Nancy Pearcey – E Agora como Viveremos?).

Uma cosmovisão é um compromisso, uma orientação fundamental do coração, que pode ser
expresso como uma narrativa ou como um conjunto de pressuposições (suposições que podem ser
verdadeiras, parcialmente verdadeiras ou inteiramente falsas) que nós sustentamos (consciente ou
subconscientemente, consistente ou inconsistentemente) sobre a constituição básica da realidade, e
que provê o fundamento sobre o qual nós vivemos, nos movemos e existimos (James Sire – Naming
the elephant).

Em termos bem simples, uma cosmovisão é um conjunto de crenças sobre as mais importantes
questões da vida… é um esquema conceitual pelo qual nós conscientemente ou inconscientemente
dispomos ou amoldamos todas as coisas que nós cremos e pelo qual nós interpretamos e julgamos a
realidade (Ronald Nash - Worldviews in Conflict).

Para os nossos propósitos, cosmovisão será definida como a estrutura compreensiva de crenças
básicas de uma pessoa sobre as coisas...Cosmovisão é uma questão de experiência diária da
humanidade, um componente inescapável de todo o saber humano e, como tal, é não-científica, ou
melhor (visto que o saber científico é sempre dependente do saber intuitivo de nossa experiência
diária) pré-científica por natureza. Ela pertence a uma ordem de cognição mais básica do que a
ciência e a teoria. Assim como a estética pressupõe algum sentido inato de beleza e a teoria legal,
uma noção fundamental de justiça, a teologia ea filosofia pressupõem uma perspectiva pré-teórica
2
Abraham Kuyper (1837 – 1920), criador e mentor do movimento neocalvinista holandês. Estudou teologia e foi pastor da Igreja
Reformada da Holanda. Estava convicto que um cristianismo revitalizado exigia não somente uma igreja renovada, mas também
uma presença cristã renovada em todas as áreas da vida. Por isso engajou-se no movimento anti-revolucionário na Holanda, serviu
ao parlamento de 1874 a 1875, fundou o partido anti-revolucionário em 1878, fundou a Universidade Livre de Amsterdã em 1880,
encabeçou o Doleantie em 1886, se tornou Primeiro Ministro da Holanda em 1901. Para ele o cristianismo tal como expresso pelo
Calvinismo transcendia as esferas teológica e eclesiástica, apresentando-se como um sistema de vida.
3
ORR, James. The christian view of god and the world. 3. ed. Grand Rapids: Kregel publications, 1989; e KUYPER, Abraham.
Calvinismo. São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2002.
4
Herman Dooyeweerd (1894-1977), filósofo calvinista e teórico legal, professor emérito da Universidade Livre de Amsterdam,
pai da Filosofia da Idéia Cosmonômica. Bernard Zylstra resume bem a contribuição de Dooyeweerd quando diz: “O significado
de Dooyeweerd repousa em sua contribuição ao desenvolvimento de uma filosofia cristã que fosse biblicamente dirigida e
orientada não somente para suprir as necessidades e exigências das ciências especiais, mas também às questões culturais urgentes
do século vinte.” (ZYLSTRA, Introduction, p.15). A teoria de cosmovisões de Dooyeweerd se encontra no primeiro volume de
sua A New Critique of Theoretical Thought, e em recentes anos tem servido como base de estudos sobre esta questão a muitos
pensadores cristãos.
5
Ver, por exemplo, WALSH, Brian; MIDDLETON, J. Richard. The transforming vision: shaping a Christian worldview.
Downers Grove, Ill.: InterVarsity, 1984. MARSHALL, Paul A.; GRIFFIOEN, Sander; MOUW, Richard (Ed.). Stained glass:
worldviews and social science. Lanham, Maryland: University Press of America, 1989. NAUGLE. Worldview: The history of a
concept. SIRE, James W. Naming the elephant: worldview as a concept. Downers Grove: Inter varsity press, 2004. HOLMES,
Arthur F. Contours of a world view: studies in a christian world view. Grand Rapids: Eerdmans, 1983; e mais as obras de Nancy
Pearcey e Albert Wolters citadas na nota n. 2. Dooyeweerd oferece uma análise do processo de desenvolvimento histórico do
ocidente na sua obra Roots of Western Culture, tratando de maneira específica das normas do processo de abertura cultural no
capítulo três. DOOYEWEERD, Herman. Roots of western culture: pagan, secular, and christian options. Toronto: Wedge
Publishing Foundation, 1979, p. 61-87. Já sua teoria sobre weltanschauung, como percepções pré-teóricas da totalidade de
significado da realidade, se encontra no primeiro volume de sua A New Critique of Theoretical Thought. DOOYEWEERD, 1984,
vol.1, p. 114-165.
5

de mundo. Elas fornecem uma elaboração científica da cosmovisão (Albert Wolters – Criação
Restaurada).

Uma cosmovisão (ou visão de vida) é uma estrutura ou conjunto de crenças fundamentais através
dos quais nós vemos o mundo e nossa vocação e futuro nele. Esta visão não necessita ser totalmente
articulada: ela pode ser tão internalizada que pode permanecer consideravelmente inquestionada;
ela pode não ser explicitamente desenvolvida numa concepção sistemática de vida; ela pode não ser
teoricamente aprofundada em uma filosofia; ela pode não ser mesmo codificada em uma forma
credal; ela pode ser grandemente refinada através de desenvolvimento histórico-cultural. Contudo,
esta visão é um canal para as crenças últimas que dão direção e significado à vida. Ela é a estrutura
de integração e interpretação pela qual a ordem e a desordem são julgadas; ela é o padrão pelo
qual a realidade é conduzida e atingida; ela é o conjunto de articulações por meio do qual todos os
nossos pensamentos e ações de todos os dias transformam-se (James Olthuis - On Worldviews, in:
Stained Glass: Worldviews and Social Sciences).

1.2 Aprofundando o Foco sobre o Conceito de Cosmovisão

Neste curso pretendemos mostrar que uma Cosmovisão não é apenas um conjunto ou sistema de
crenças, um mapa intelectual ou um esquema conceitual geral acerca daquilo que acreditamos a respeito da
realidade, mas sim um conjunto de pressupostos que mantemos inconsciente ou conscientemente,
responsáveis em moldar nosso conhecimento e atitudes frente a vida e o mundo.
Na maior parte do tempo estes pressupostos agem em nós sem que percebamos. Por isso os
chamamos de “Pressupostos Tácitos”. Estes pressupostos tanto podem ter um caráter cognitivo ou pré-
cognitivo e, portanto, podem se apresentar na forma de afetos, motivações, crenças e certezas básicas,
compromissos de fé, valores e idéias básicas. São estes pressupostos tácitos que nos fornecem um
conhecimento abrangente e intuitivo da realidade, a base para pensarmos a realidade e agirmos no mundo.
Os pressupostos que formam uma cosmovisão sempre refletem aquelas crenças primordiais sobre a
vida e a realidade presentes nas seguintes indagações:

– Qual é a origem fundamental de todas as coisas?

– Qual é a natureza ou princípio do mundo ao nosso redor?

– O que é um ser humano?

– Qual é a finalidade principal da existência humana?

– O que acontece quando uma pessoa morre?

– Por que é possível conhecer alguma coisa?

– Como sabemos o que é certo e errado?

– Qual o significado da história humana?

Podemos exemplificar as principais características de uma cosmovisão através de 3 ilustrações:

1) A figura das lentes sobrepostas;


2) A figura dos fundamentos de uma casa;
3) A figura de um Iceberg.
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Cosmovisão como lentes sobrepostas


(pressuposições sobrepostas)

Idéias Certezas
Certezas Motivações
Idéias
Valores Valores
Crenças Crenças
Motivações

Uma cosmovisão é formada por camadas de pressupostos que se sobrepõem (como lentes
sobrepostas), formando uma matriz geral por meio da qual conhecemos o mundo e agimos nele. Como já
vimos, estes pressupostos se apresentam na forma de afetos, motivações, crenças e certezas básicas,
compromissos de fé, valores e idéias básicas.

Os Pressupostos funcionam como a base de


sustentação de toda a casa

Pressupostos tácitos:
crenças, valores,
compromissos de fé,
etc.

Uma cosmovisão também funciona como o fundamento que sustenta todo o nosso edifício de
conhecimentos e experiências, fornecendo a base para o nosso agir. Assim como as fundações de uma casa
ficam ocultas, a maior parte do tempo, dos olhos das pessoas, assim também são os pressupostos tácitos que
formam nossa cosmovisão.
No entanto, para entendermos, em maior profundidade, o que constitui uma cosmovisão pessoal,
gostaria de me utilizar da ilustração de um iceberg. Conforme veremos no exemplo do iceberg, uma
cosmovisão pessoal é constituída, basicamente, de duas camadas ou matrizes principais de experiência: A
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cosmovisão pessoal consiste de uma dimensão espiritual ou religiosa fundamental, e de uma dimensão
psíquico-social.

A figura do Iceberg nos fornece algumas boas sugestões a


respeito das matrizes ou camadas de interpretação que
formam a nossa cosmovisão pessoal
Manifestação social
de nossa Cosmovisão
Palavras, atitudes e cultura
(profissão de fé, moralidade,
ciência, artes, política, etc.)

Dimensão Psíquico-
D
I Social
-Percepções internalizadas ao
M longo da vida:
E • Pressupostos tácitos
N (crenças, valores, certezas,
S sentimentos, etc).
Ã
O
Dimensão Religiosa
T Central ou Espiritual
Á • Senso de Rebelião (amor
C Coração último ao eu) ou
de Amor a Deus na forma de
I impulsos ou motivações
T “Do coração procedem as fontes originários.
A da vida” Pv 4.23

Neste esquema, a dimensão religiosa fundamental é representada por aquilo que a Escritura
Sagrada comumente chama de coração, alma ou espírito e se refere à raiz central da existência humana de
onde procede o impulso religioso em relação à divindade e se definem as disposições ou tendências internas
em relação a Deus e a tudo o que diz respeito a ele. Esta é a matriz inata fundamental da existência humana
que independe de experiência e intercurso social para se formar. Em função de termos sido criados à
imagem de Deus, já nascemos com esta necessidade intrínseca em nossa natureza de intuirmos a divindade e
buscarmos realização nela. Contudo, em função da queda, todos são concebidos em pecado e, por isso,
tendem a ser, desde o nascimento, indispostos e rebeldes em relação ao Deus verdadeiro e sua Palavra. Isso
faz com que os homens busquem nos ídolos construídos por eles mesmos, aquela realização suprema que só
pode ser encontrada no Deus verdadeiro, e são estes ídolos presentes ao coração do homem que imprimirão
a forma como ele interpretará a realidade e se relacionará com ela.
A dimensão psíquico-social é a matriz adquirida ao longo do tempo, resultante da interação entre as
nossas estruturas psíquico-cognitivas e as nossas experiências e relacionamentos sociais variados
acumulados ao longo da vida. Esta matriz é composta das percepções, pressupostos e vivências que
adquirimos ao longo de nossa experiência no mundo.

2. AS CAMADAS OU MATRIZES DE EXPERIÊNCIA QUE CONSTITUEM UMA COSMOVISÃO PESSOAL

2.1 A Camada ou Matriz Religiosa Fundamental: A Dimensão do Coração

Vivemos numa sociedade que valoriza a formação intelectual acima de tudo. Governos tem criado
políticas de educação baseadas no pressuposto de que quanto mais bem preparado intelectualmente for o
cidadão melhor será a vida em sociedade. Isso se deve à cosmovisão adotada, ou, mais especificamente, à
visão acerca da natureza fundamental do homem. Há séculos o homem tem sido definido como Homo
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Sapiens. Isso se deve ao entendimento de que a faculdade definidora do homem, aquela que o distingue das
demais criaturas, é a racionalidade: “Eduque o homem através da razão e ele será um ser humano muito
melhor”. Mas será que a capacidade racional é a principal característica do ser humano, aquela que o define
e o qualifica?
À luz da Escritura o que define e qualifica o homem é, sobretudo, a sua vocação para manter relação
pessoal com Deus: o homem, antes de ser sapiens, é Homo Religiosus. Isso quer dizer que para entendermos
melhor a natureza humana precisamos entender o conceito bíblico de coração.
“Coração”, na Escritura, está primariamente ligado a idéia daquilo que é mais central e profundo em
algo ou alguém. O coração do homem é fundamentalmente religioso, ou seja, tem uma vocação ou impulso
natural para manter relação pessoal com Deus ou com um ídolo. Coração é o elemento definidor e central da
pessoa humana (heb.: Leb, lebab; grego: Kardia), é o núcleo central da existência humana a partir do qual
toda vida procede e é determinada. Tal palavra ocorre aproximadamente 855 vezes no AT e 150 vezes no
NT. Vejamos algumas das principais ocorrências bíblicas do termo “coração”:

Coração como a dimensão mais profunda e central da existência humana:

Coração dos mares (Ex 15.8; Sl 46.2; Jn 2.3); coração dos céus (Dt 4. 11); coração da terra (Mt 12.40);
sinônimo de alma e espírito (Pv 2.10; Rm 2:29); o homem é aquilo que é o seu coração (Pv 27.19; 1Sm
16:7); é do coração que procedem as fontes da vida (Pv 4.23; Mt 5.27,28); centro da vida intelectual (Pv
16.1); centro dos nossos desejos e propósitos mais profundos (Hb 4:12; 2Co 9:7); centro da vida emocional
(Jo 14:27; 2Co 2:4); centro da vida moral (At 8:21).

É no coração que se concentram as disposições verdadeiras que afetam todo o nosso ser, tanto as boas
quanto as más:

É onde se dá o centro da rebelião do pecado contra Deus (Rm 1:21); é onde o Espírito opera a regeneração e
a santificação (2Co 3:3); onde centraliza-se a verdadeira sabedoria (Pv 14.33); alegrar-se de coração é
alegrar-se de maneira profunda e verdadeira (Ex 4.14); entristecer-se de coração é entristecer-se de maneira
profunda e verdadeira (Sl 13.2).

É no coração que se define, em última análise, a quem servimos com a nossa vida, se a Deus ou a um
ídolo (2 Cr 16.7-9; Ez 6.9; Ez 14.1-7).

As nossas atitudes, palavras e vontades revelam as intenções e motivações do coração (Mt 6.19-21; Mc
7. 17-23; Lc 6.43-46).

2.1.1 A Dinâmica Interna do Coração

O coração, esta dimensão espiritual ou religiosa central, se define, basicamente, na sua relação de
alteridade com outros seres humanos (ser-para-o-outro), na sua relação com o meio (ser-para-o-mundo) e,
primordialmente, na sua relação com Deus (ser-para-Deus), isso de maneira religiosamente positiva ou
negativa. Não há eu vazio de conteúdo, isento, neutro e autônomo, o coração humano é essencialmente ser-
para-Deus, ele é fundamentalmente religioso ou pactual, ou seja, ele existe, antes de qualquer outra coisa,
para manter relação pessoal com Deus. A dinâmica do coração se constitui, essencialmente, de uma profusão
de impulsos ou motivações primordiais responsáveis em dinamizar a totalidade da existência humana. Estes
impulsos e motivações primordiais só podem ser vistos quando presentes em atos, pensamentos, cognições,
sentimentos, desejos e volições. Na sua dimensão mais profunda o eu humano permanece inacessível a toda
forma de análise ou procedimento de sondagem empírica. Para ser mais explícito, um processo
psicoterapêutico convencional, ou uma análise social ou antropológica, não importando o paradigma
metodológico do qual se parta, não pode jamais ter acesso a esta instância central e radical da existência
humana (Sl 139.23,24; Jr 17.10).6

6
O tratamento dado à questão da subjetividade humana aqui, tem como referencial teórico principal a filosofia cristã de Herman
Dooyeweerd. O horizonte do coração é chamado por Dooyeweerd de centro religioso e raiz espiritual da existência humana.
9

Até então se analisou a estrutura ontológica do coração humano. Entretanto, isso não é
suficiente. Para se ter uma visão compreensível do quadro é necessário acrescentar outro elemento
que são os efeitos e conseqüências do pecado na dinâmica interna do coração.
Se antes da queda o coração humano era religiosamente qualificado pelo ser-para-Deus em amor e
obediência, após a queda o coração passou a ser religiosamente qualificado pelo ser-para-Deus em
emancipação e apostasia, o que pode ser dito de outra forma: ser-para-um-ídolo. Neste caso, todos os
estados internos, as ações externas e empreendimentos resultantes do coração, em última análise, serão
sempre religiosamente qualificados; serão estados internos, atos externos e empreendimentos-para-Deus
(em amor e adoração) ou para-um-ídolo (apostasia e rebelião).

“Do coração procedem as fontes da vida”

2.2 A Matriz Secundária ou Dimensão Psíquico-Social Resultante das Primeiras Experiências e do


Intercurso Social Variado

As estruturas psíquico-cognitivas, aliadas às vivências religiosamente interpretadas do período


formativo dos primeiros anos de vida, formam o modelo de mundo mais elementar e duradouro do
indivíduo, a base sobre a qual as demais vivências posteriores se acomodarão. Mesmo as experiências mais
básicas do indivíduo, desde seu nascimento, já vêm carregadas de impulsos ou motivações potencialmente
religiosos, ainda que ele não esteja minimamente consciente deles, e são eles que servirão de estofo para
todas as experiências futuras. O Salmo 51.5 diz que o homem já nasce inexoravelmente com a tendência à
emancipação, apostasia e rebelião contra Deus (“nasce em pecado”). Em Efésios 2.1-3 é dito que as
“inclinações” pecaminosas resultantes da “carne” (i.e. “natureza humana decaída”, v. 3) constituem-se na
motivação primordial responsável pela identificação do homem natural com a orientação resultante do
“curso deste mundo” e do “príncipe da potestade do ar” (v.2).

DOOYEWEERD, Herman. Roots of western culture: pagan, secular, and christian options. Toronto: Wedge Publishing
Foundation, 1979, p. 30. Da mesma forma como, geralmente, a raiz de uma planta jaz nas profundezas do solo, oculta aos olhos
de quem está na superfície e dela fluem os nutrientes essenciais à vida vegetal, assim também é o coração humano, ele tem um
caráter profundo, oculto e direcionador de toda a vida. “Central” em oposição ao que é periférico e subsidiário. O coração é o
centro da existência integral do homem, é o ponto de concentração de todas as funções ou “faculdades” humanas. E “religioso”
porque a sua razão de ser é manter relacionamento pessoal com Deus (ser-para-Deus). O homem foi criado para se relacionar com
Deus e este relacionamento direto se dá via coração, sendo este ser-para-Deus a condição que qualifica a sua existência no
mundo.
10

Muito destas primeiras experiências internas e externas do indivíduo resulta numa rede de
pressupostos (crenças, valores ou certezas) fundamentais que operam tacitamente, formando uma das
matrizes interpretativas da realidade mais básicas (remotas) do ser humano.7
Sobre esta base mais elementar e duradoura, ao longo da vida, se acomodarão outras vivências e
percepções de mundo processadas a partir de intercursos sociais mais variados. No decurso dos anos,
algumas destas novas percepções serão cada vez mais fortemente incorporadas, chegando ao ponto até de
transformar ou substituir algumas daquelas percepções mais básicas que haviam sido admitidas nos
primeiros anos de vida, podendo assumir um papel de crenças e pressupostos determinantes na hierarquia de
valores e certezas do indivíduo.8

2.2.1 As camadas ou Matrizes que Constituem a Matriz Psíquico-social

Podemos aprofundar ainda mais a nossa análise das camadas ou matrizes de interpretação que
formam uma cosmovisão pessoal e afirmar que a Matriz Psíquico-Social é formada, por sua vez, por
vivências ou percepções de mundo resultantes da interação do indivíduo com o espectro social mais amplo e
globalizado, e com as instâncias sociais mais regionais e nucleares.
Num sentido mais amplo, todo indivíduo já nasce imerso em uma cosmovisão globalizada (matriz
mais abrangente), que é o espírito do tempo (zeitgeist), uma cosmovisão mais abrangente, socialmente
compartilhada por uma determinada época numa proporção macrocultural (globalização). Um exemplo disso
é o processo de ocidentalização do mundo que tem levado a um predomínio cada vez mais determinante da
cosmovisão ocidental (para não dizer, americana) sobre o resto do mundo. Por exemplo, num sentido geral,
a maior parte do mundo civilizado tem incluído em sua dieta alimentar refrigerantes e fast-foods. Vemos
esta influência acontecendo, também, através da importância, cada vez mais crescente, da democracia e dos
direitos humanos nas políticas governamentais, e da supremacia da economia sobre todo e qualquer assunto
governamental (valores do capitalismo). Valores tais como individualismo, imediatismo, consumismo,
pragmatismo, hedonismo, já foram incorporados à visão de mundo do homem ocidental (izado) dos nossos
dias, do mais simples ao mais culto.
Num sentindo menos amplo, todo indivíduo, além da tendência geral, nasce também imerso em uma
cosmovisão mais restrita (matriz regional ou intermediária). Por “cosmovisão regional” deve se entender a
cosmovisão própria que vai dos pressupostos compartilhados por um povo ou etnia até as percepções ainda
mais básicas comuns a um grupo minoritário específico com o qual se mantém relação como, por exemplo,
o núcleo familiar. Para dar um exemplo do que seria uma matriz regional de interpretação, podemos dizer
que a cosmovisão de uma pessoa que nasceu e viveu na cidade de São Paulo é, em muitos aspectos,
diferente da cosmovisão de uma pessoa que nasceu e viveu no interior do sertão da Bahia, embora tais
diferenças tendam a diminuir à medida que o processo de globalização, viabilizado pelos meios de
comunicação e pelo progresso econômico e tecnológico, vá diminuindo as distâncias entre estas culturas
regionais distintas. Este mesmo fenômeno ocorre, também, entre grupos de pessoas e famílias.
A seguir, vejamos, esquematicamente, como se constitui a cosmovisão de uma pessoa.

7
Muito embora seja correto afirmar que a formação primária tenha a primazia no processo de desenvolvimento das percepções
vitalícias da cosmovisão do ser humano, contudo, não se pode, de maneira alguma, negar, que o desenvolvimento da
personalidade e da visão de mundo do indivíduo se dá durante toda a sua vida através das suas constantes e sucessivas interações
com a sociedade. Num tratamento similar, sobre a interiorização da realidade no processo de socialização, Berger e Luckmann
chamam o processo de formação do indivíduo, nos primeiros anos de vida, de socialização primária, e o desenvolvimento
posterior, produto da interação do indivíduo com a sociedade, de socialização secundária. BERGER, P. T.; LUCKMANN, T. A
construção social da realidade. 12 ed. Petrópolis: Vozes, 1995, p. 173-195.
8
Há uma extensa lista de autores e obras sobre psicologia do desenvolvimento que concordam entre si quanto à afirmação de que
a aceitação, admissão e incorporação de percepções, por um indivíduo, geralmente ocorrem num contexto de confiança
estabelecido, principalmente, por fortes laços de afetividade. Dentre estes autores, um dos mais expressivos sobre a relação entre
desenvolvimento psicológico e afetividade é Henri P. H. Wallon (1879-1962). As percepções de mundo mais duradouras ocorrem,
especialmente, nos primeiros anos de vida, no convívio com os pais ou responsáveis diretos, no interior de uma forte carga afetiva.
Mas isso também acontece em etapas posteriores da vida. Neste caso, quando novas percepções de mundo se chocam com aquelas
mais remotas, substituindo-as ou transformando-as, isso comumente vem acompanhado de crises existenciais pontuais. Sobre a
teoria do desenvolvimento psicológico de Wallon, ler: WALLON, Henri P. H. A evolução psicológica da criança. Rio de Janeiro:
Editorial Andes, [19--]; e do mesmo autor, The psycological development of the child. In: VOYAT, Gilbert (Ed.). The world of
Henri Wallon. New York: Jason Aronson, 1984.
11

Matrizes ou camadas de interpretação que formam a nossa


cosmovisão pessoal
Matriz Psíquico-social
- Esta matriz é composta das
percepções e pressupostos que
adquirimos ao longo de nossa
experiência no mundo (matrizes
global e regional).
.

Dimensão
Religiosa Central
ou Espiritual da
COR = EU Vida Humana
- Afeto último, confiança
última e vontade
religiosamente
determinados

Manifestação
social de nossa
Cosmovisão
Pessoal
- Relacionamentos,
Cultura e História

Do coração
fundamentalmente
religioso das pessoas
procedem os impulsos
Matriz Global
e motivações últimos -Percepções compartilhadas
que irão determinar a num espectro macrocultural
totalidade da vida e do (Zeitgeist)
desenvolvimento
histórico-cultural Dimensão Religiosa
Central ou Espiritual
da Vida Humana
- Afeto último, confiança
COR = EU última e vontade
religiosamente determinados

Matriz Intermediária
-Percepções compartilhadas
num espectro social mais
regional
Manifestação “Do coração procedem as fontes da vida”
social de nossa
Pv 4.23
Cosmovisão
Pessoal
- Relacionamentos,
Cultura e História
12

3. CONCLUSÃO

Da mesma maneira como acontece com as formas dos sons, palavras e imagens com as quais
estamos habituados e que, por isso, nos fornecem uma matriz geral daquilo que nós vemos, escutamos,
falamos, entendemos e escrevemos, assim também ocorre com a nossa cosmovisão. As percepções e os
pressupostos que formam nossa cosmovisão também funcionam como uma matriz de interpretação, nos
habituando a ver a realidade sob sua perspectiva. O que quero dizer é que desde o nosso nascimento temos
acumulado crenças, certezas, valores, idéias que têm moldado a nossa maneira de ver e agir no mundo.
Esse modelo esquemático das camadas ou matrizes de uma cosmovisão pessoal não deve fazer pensar
que a experiência humana se passa de maneira compartimentalizada. Na realidade todas essas camadas são
expressas como um ato integral e indivisível. As motivações do coração estão impressas nos estados internos
e nos atos e palavras exteriores e por meio deles se tem acesso a elas (Mc 7.21-22). O mesmo acontece com
as percepções adquiridas ao longo da vida. Um ato humano é sempre um ato integral, um ato do coração que
se informa e se faz sentir nas formações psíquicas mais básicas das impressões subconscientes e atos
externos.9
Todas estas camadas ou matrizes que constituem a cosmovisão de uma pessoa, formarão o horizonte
de experiência através do qual o indivíduo, durante toda a sua vida, experimentará a realidade, ou o
fundamento que servirá de base para o seu agir no mundo. Isso quer dizer, que a nossa experiência no
mundo sempre será determinada pelas várias perspectivas (espiritual e psíquico-social) que formam a nossa
visão de mundo.
À luz de tudo que vimos, já podemos apresentar uma definição mais precisa de cosmovisão:
Cosmovisão é um conceito que indica um conhecimento pré-discursivo e abrangente da realidade,
baseado em uma rede ou conjunto de pressupostos tácitos, configurando um paradigma por meio do qual
interpretamos intuitivamente a realidade e agimos no mundo, podendo ser expresso discursivamente
através da articulação de conceitos e sistemas teóricos de pensamento.

9
Essa conclusão tem relevantes implicações para um processo psicoterapêutico assentado em bases teo-referentes, da mesma
forma como tem sérias implicações para o método que se pretende utilizar. Pois, tanto o método que valoriza apenas os aspectos
psicodinâmicos (a realidade inconsciente), como a psicanálise, quanto aquele procedimento que só valoriza o extrato visível e
observável, serão insuficientes na sua abordagem em função de sua unilateralidade.

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