Você está na página 1de 6

AULA 5

AS ETAPAS CONSTITUTIVAS DE NOSSA COSMOVISÃO


CRISTÃ
Rev. Fabiano de Almeida Oliveira

Nas aulas anteriores vimos que uma cosmovisão é constituída de camadas da


experiência que vão desde as mais profundas e inconscientes até as conscientes e
articuladas. O objetivo desta aula é mostrar que a cosmovisão cristã deve envolver todos
os horizontes de experiência do indivíduo, a começar pelo horizonte religioso central ou
espiritual, a dimensão fundamental do nosso ser, que por sua vez irradiará sobre os
demais horizontes de experiência, os efeitos redentivos da Palavra e do Espírito Santo.

1. PRIMEIRA ETAPA DE UMA COSMOVISÃO GENUINAMENTE CRISTÃ: CONHECENDO A


DEUS DE MANEIRA PESSOAL E EXISTENCIAL

Como já vimos, o horizonte de experiência mais profundo certamente é o


religioso central, a esfera do “coração” do qual fala a Bíblia, onde se dão os impulsos
religiosos que determinam toda direção da vida, pois é ali que se estabelece o tipo de
relação que se manterá com o Criador, se de amor e serviço ou rebelião e apostasia. A
partir desta constatação é possível, então, afirmar que todos os seres humanos após a
queda, inescapavelmente, permanecem atrelados a uma matriz de existência marcada
por impulsos religiosos centrais apóstatas, configurando, assim, em todas as expressões
internas (pensamentos, afeições, imaginação, fé, vontade) e externas (atitudes, palavras,
e todas as atividades culturais) da existência humana, uma “tendência natural” à
indisposição e inconformidade em relação a Deus e sua Palavra (Rm 8.5-9). Sendo
assim, temos que concluir que, em virtude da queda, todos já nascem presos a esta
cosmovisão primária (camada religiosa central) que é a da apostasia. Esta, por sua vez,
condicionará as demais matrizes de experiência (as percepções secundárias),
determinando-lhes a direção religiosa que moldará toda a existência humana e, por
conseguinte, a vida social.
Uma cosmovisão genuinamente cristã começa na dimensão religiosa
fundamental da nossa existência, quando o nosso coração é regenerado por Deus através
do ministério da Palavra e do Espírito Santo. Todos os pressupostos moldadores de uma
cosmovisão cristã estão contidos no tema central da Escritura Criação-Queda-
Redenção. Essa é a cosmovisão por excelência, a matriz de interpretação mais
consistente da realidade. Os pressupostos moldadores desta cosmovisão são
originariamente experimentados pessoal e existencialmente na forma de um
compromisso de vida. O que quero dizer é que, num primeiro momento, quando alguém
é regenerado pelo poder de Deus, ele já começa a experimentar, ainda que de maneira
tácita e inconsciente, os efeitos saneadores da redenção em sua visão de mundo e,
consequentemente, em seus pensamentos, palavras e atitudes.
Uma pessoa verdadeiramente convertida é alguém em cujo coração foi
implantada a Palavra da Verdade (Ef 1.13; Tg 1.18,21), ou em cujo coração foram
impressas as leis de Deus (Jr 31.33; Rm 2.15; Hb 8.10; 10.16). Temos, portanto, uma
nova criatura (Jo 14.17; Rm 8.9-11; 1 Co 3.16; 2 Co 5.17; 2 Tm 1.14; 1 Jo 2.14), pois
nele, a partir de agora, habitam o Espírito e a Palavra permanentemente, a divina
semente (Lc 8.11; Ef 1.13; 1 Pe 1.23; 1 Jo 3.9). Neste primeiro momento, à luz da
Escritura, é possível afirmar que este indivíduo já possui, num nível existencial, o
verdadeiro conhecimento de Deus e, conseqüentemente, de si mesmo (Jr 31.33-34; Jo
17.3; 1 Jo 4.6-8), a base para uma cosmovisão cristã verdadeira. Os fenômenos próprios
desta nova condição são, imediatamente, manifestados por meio da fé. Subjetivamente o
crente sente uma série de afeições que jamais experimentou: ele sente paz, alegria,
amor; tais sentimentos são, obviamente, resultantes da sua reconciliação com Deus. Sua
conduta começa a mudar, ele passa a ser paciente, manso e humilde. Aliado a estes
fenômenos podemos mencionar o fato de que seu desejo maior consiste agora em fazer
tudo por amor a Deus e para a sua glória. Ele sabe que tudo deve a Deus o Pai, a Deus o
Filho e a Deus o Espírito Santo. Este crente já conhece a Deus e, por conseguinte, passa
a se conhecer, passando a se ver como realmente é: criatura de Deus, caída, mas
redimida, e em processo de restauração constante através da santificação. É por isso que
esta pessoa reconhece o seus pecados diante de Deus, pois não vive mais sob a égide do
orgulho próprio e da mentira que ele produz. Ele se humilha diante de seu Deus, pois
agora pode se ver como realmente é, reconhecendo seu estado de dependência em
relação ao seu Criador-Redentor. Este crente já foi justificado e nele já ocorre a
santificação operada pelo Espírito e pela Palavra (Jo 17.17), ele já experimenta a vida
eterna que é a comunhão com Deus (Jo 17.3). No entanto, se perguntado se ele sabe
definir, teologicamente, o tipo de experiência pela qual vem passando em decorrência
da sua conversão, isto é, se ele sabe definir ou conceituar regeneração, justificação ou
santificação, pelo menos naquele primeiro momento ele não saberá fazê-lo. Num
primeiro momento ele não saberá definir o conceito de criação, de queda e de redenção;
não saberá definir com precisão analítica a doutrina da Trindade ou da unipersonalidade
do Redentor em duas naturezas. Contudo, ninguém poderá negar que no seu coração, o
significado central e redentor da Escritura, que produz este conhecimento, já foi
implantado. Tanto é que, embora ainda não saiba definir, teologicamente, aquilo que a
Escritura revela, ou seja, ainda que não saiba definir a doutrina da Trindade, o crente
verdadeiro já conhece o Deus Triúno de maneira pessoal e verdadeira, e com ele
mantém uma comunhão de vida. Da mesma forma, mesmo que ainda não conheça
teologicamente as implicações da doutrina cristológica, ele conhece o seu Redentor, a
quem ele ama acima de todas as coisas e a quem está espiritualmente unido. Embora
não saiba definir teologicamente o tema básico da Escritura – criação, queda no pecado
e redenção por meio de Jesus Cristo em comunhão com o Espírito Santo – ele já o
conhece de maneira pessoal e existencial, pois o significado central deste tema já
domina a sua existência. É óbvio que, mais tarde, este neófito aprenderá, de maneira
confessional e teológica, tudo aquilo que ele já conhece de maneira pessoal, ou como
diria Herman Dooyeweerd, tudo aquilo que ele já conhece no coração de maneira
“absolutamente central e religiosa”.1 É preciso notar ainda, que em virtude da presença
vitalícia do pecado no coração do crente, este deverá estar sempre se abastecendo da
Palavra para que continue crescendo no “pleno conhecimento de Deus” (Pv 2.1-5; Cl
1.9-11), a fim de que haja progresso espiritual e a comunhão com Deus não seja
prejudicada (Jo 8.32; 1 Jo 2.24-25).

2. SEGUNDA ETAPA DE UMA COSMOVISÃO GENUINAMENTE CRISTÃ: TOMANDO


CONSCIÊNCIA DOS PRESSUPOSTOS RELIGIOSOS CENTRAIS DA ESCRITURA JÁ
PRESENTES NO CORAÇÃO, COM A FINALIDADE DE DAR A RAZÃO DA ESPERANÇA QUE
HÁ EM NÓS

Como já vimos, toda pessoa regenerada pelo poder da Palavra e do Espírito já


experimenta, de maneira religiosa central, o verdadeiro conhecimento de Deus, pois as
inclinações emancipatórias de sua matriz religiosa fundamental (coração) foram
transformadas. Vimos também que, no coração, este conhecimento se dá, originalmente,
na forma de um “poder motivador central” de Deus, ou um “conhecimento pessoal”, um
impulso existencial fundamental na direção da obediência e do amor a Deus. No
entanto, este compromisso de vida, ou experiência pessoal íntima com Deus, resultante
da condição redimida do novo homem, deve ser expresso discursivamente para que
possamos dar a razão da esperança que há em nós a quem nos for perguntado (1 Pe
3.13), e para que se evite o máximo possível toda forma de síntese espiritual com o
pecado. Na experiência diária, a externalização deste conhecimento “religioso central”
(pessoal) é possível através de um procedimento santo de obediência e da profissão de
fé no conteúdo revelado da Escritura por meio de uma exposição básica e simples
daquilo que implica o tema Criação, Queda e Redenção. Ou seja, não é só desejável,
mas também necessário que todo cristão verdadeiramente convertido seja capaz de
articular, minimamente, o conteúdo da fé bíblica já presente em seu coração, pois uma
cosmovisão cristã sólida requer do indivíduo a tomada de consciência das razões
profundas responsáveis pela sua nova condição, daí a importância do ministério docente
da Igreja. Comumente, tal exposição básica nos é apresentada pelos credos e confissões
da Igreja, acessíveis à compreensão de todos os crentes em Cristo. Abaixo, discrimino, a
partir de uma discursividade básica, alguns dos pressupostos centrais da Escritura
implicados no tema Criação-Queda-Redenção.

2.1 Pressupostos Discursivos Centrais do Tema Básico “Criação”

• O mundo é criação de um Deus triúno eterno, absolutamente soberano,


transcendente, mas pessoal;
• Deus criou todas as coisas por meio de sua Palavra e de seu Espírito;

1
DOOYEWEERD, Herman. In the Twilight of Western Thought: Studies in the Pretended Autonomy of
Philosophical Thought. Nutley, New Jersey: The Craig Press, 1980, p. 146.
– Deus estabeleceu, por meio de sua Palavra, o significado de todas as
coisas criadas, inclusive das leis ordenadoras da realidade física, natural,
moral, social e histórica;
• Deus mantém todas as coisas por meio de sua Palavra e de seu Espírito;
• Este Deus criador e mantenedor de todas as coisas, se revela por meio de sua
Palavra e de seu Espírito;
• De todas as criaturas de Deus o homem é a que mais se distingue, pois é o único
que pode se relacionar de maneira pessoal (pactual) com Deus à semelhança da
maneira como Deus se relaciona consigo mesmo (criado à imagem e
semelhança);
• Há uma distinção quantitativa, e não somente qualitativa, entre Deus (o Criador)
e sua criação;
• Toda forma de conhecimento ou comunhão pessoal entre Deus e o homem só é
possível por meio de Revelação especial. O ponto de contato pessoal entre o
Criador e a criatura se dá sempre por meio da Palavra e do Espírito;
– No seu aspecto objetivo, toda revelação de Deus na história se deu
através de acomodação lingüística (antropopatismos e
antropomorfismos), acomodação imagética (teofanias) e acomodação
pessoal (encarnação);
– No seu aspecto subjetivo, Deus se revela direta e pessoalmente no
coração do homem redimido, mas sempre por meio de sua Palavra e de
seu Espírito;
– Daí porque toda tentativa de se conhecer a Deus e manter comunhão com
ele que não seja por meio de sua Palavra resultará em mera especulação e
religiosidade vazia.
• Apesar da insuficiência da revelação geral em nos dar um conhecimento
redentivo, ela nos mostra claramente algumas das principais perfeições de Deus
o Criador;
• Deus criou todas as coisas para a sua glória, por isso a criação com todo o seu
potencial é, por natureza, boa e santa;
– Logo, a finalidade e a realização de todas as coisas é convergir para este
propósito (glória de Deus);
– O homem só pode se realizar vivendo de conformidade com este
propósito;
• A fim de revelar as suas perfeições, Deus dotou a criação de potencialidades que
devem ser conhecidas e desenvolvidas no processo de abertura cultural.

2.2 Pressupostos Discursivos Centrais do Tema Básico “Queda”

• Embora fosse criado originalmente bom, o mundo foi amaldiçoado por Deus por
causa do pecado do homem;
• A queda causou efeitos catastróficos à raça humana e à criação;
– Com a Queda a direção do coração do homem e, por conseguinte, da
sociedade e do desenvolvimento histórico-cultural, passaram a seguir um
itinerário marcado pela apostasia e pela idolatria;
• Apesar da maldição imposta por Deus à criação, a sua graça não permite que a
existência do mal destrua a estrutura criada (graça comum);
• A queda do homem foi radical, afetando todo o seu ser, não restando nele nada
de espiritualmente neutro ou isento; tudo nele tende à rebelião contra Deus e sua
Palavra;
• Todos as manifestações punitivas de Deus sobre o homem e a criação caídos
resultam de sua justiça santa;

2.3 Pressupostos Discursivos Centrais do Tema Básico “Redenção”

• Sendo os efeitos da queda, universais e radicais, sobre a criação de Deus, a


redenção também deve ser encarada como um ato da misericórdia de Deus de
proporções cósmicas;
• A Palavra que antes da queda tinha um caráter exclusivamente regulador e
revelacional, agora passa a ter também um caráter redentivo;
• Deus, no decurso da história, tem revelado a sua Palavra com a finalidade
primordial de restaurar os seus eleitos à plena comunhão com ele;
• Em Cristo e pelo Espírito, Deus redime o homem do cativeiro do pecado e
paulatinamente o restaura à sua condição primeva;
• Em virtude da radicalidade da redenção, a própria criação inanimada será
redimida da condição amaldiçoada na qual se encontra, o que certamente
ocorrerá na consumação do século e na manifestação plena do Reino;
• A despeito do estado de miséria no mundo, cabe a cada crente a manutenção do
mandato cultural, na tentativa de “redimir” tudo aquilo que, por natureza,
pertence à boa criação, mas que por causa da queda, foi maculado pelos efeitos
do pecado. Isso envolve todas as manifestações culturais que refletem, em algum
nível, a glória dos atributos de Deus;
• Todo processo redentivo é resultado total e incondicional da graça de Deus.

Embora limitada em seu escopo, esta exposição discursiva básica dos


pressupostos centrais da nossa fé, exemplifica uma das etapas cruciais de uma genuína
cosmovisão cristã. É justamente pela ausência desta atitude que muitos cristãos, mesmo
a despeito de serem regenerados e terem experimentado os efeitos da redenção de Cristo
em seus corações, às vezes mantêm uma cosmovisão cristã deficiente. Por não tomarem
consciência discursiva do alcance e implicação daquilo que crêem, estes cristãos
acabam se tornando alvo fácil dos pressupostos apóstatas presentes na cosmovisão da
sociedade.

3. TERCEIRA ETAPA DE UMA COSMOVISÃO GENUINAMENTE CRISTÃ: FORMULAÇÃO


TEÓRICA E SISTEMATIZAÇÃO
O conteúdo revelado que o crente professa discursivamente, na sua experiência
diária (atitude pré-teórica), deve servir de fundamento para todas as suas ações e
empreendimentos no mundo. Ou seja, são estes pressupostos conscientemente
reconhecidos que servirão de base para uma participação responsável, biblicamente
orientada, no mundo e na cultura. Isso quer dizer que um cristão consciente dos
pressupostos redentivos que atuam em todo o seu ser, terá uma probabilidade muito
maior de expressar as marcas de Cristo e de sua Palavra nos mais diversos seguimentos
da sociedade e nas mais variadas manifestações culturais: O filósofo cristão se esforçará
para expressar estes pressupostos na sua análise filosófica da realidade, o biólogo
cristão fará o mesmo na sua análise das evidências captadas no seu trabalho de campo, o
artista cristão refletirá estes pressupostos em suas obras de arte, o político, no exercício
de seu mandato, e assim por diante. Além disso, o conteúdo doutrinário representado
pelos pressupostos centrais da Escritura, também pode ser estudado num nível mais
especializado de investigação através da teologia (atitude teórica), fornecendo-nos um
tratamento teórico-sistemático daquilo que cremos.

Você também pode gostar