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[unctistica] i 8 iE MOLTIPLAgSy HETEROGENEA A sociolinglifstica explica por que a diversidade e a variagio fazem parte das linguas, que nao podem ser descritas nem limitadas por gramaticas normativas Marcos Bagno © Ilustracées : César Landucci/aeroestidio TOSCO UNG PRTC iN pessoas que vive em so- .ciedades com uma longa tra digo escrita, com uma histéria Iiterdria de muitos séculos e um. sistema educacional organizado se acostumaram a ter uma idéia de lingua muito influenciada por todas essas instituigdes. Para elas, s6 merece o nome de {gua um conjunto muito particu lar de prontincias, de palavras de regras gramaticais que foram cuidadosamente selecionadas para compor 0 que vamos cha- mar aqui de norma-padrao, isto 6,0 modelo de lingua "certa”, de “bem falar”, que, nessas socie- dades, vem codificado, descrito ¢ prescrito em obras chamadas ‘gramaticas normativas. Ora, a escrita, a literatura ea escola sao instituigdes eminente- mente sociais, s30 invengdes cul- turais, criacdes artificais e muito ee ea __ ———_——— — — ———— recentes na histéria da humani: dade ~ as formas mais antigas de cescrita tm menos de 6 mil anos, ou seja, durante 99% da hist6. ria da nossa espécie ninguém es- creveu nem leu nada, e até hoje ‘uma grande parcela dos seres hu- ‘manos permanece assim, exclul- dda da eserita e da leitural Portanto, o que se convencio: ‘nou chamar de “lingua” nas so- ciedades letradas €, na verdade, ‘um produto social, artificial, que nao corresponde aquilo que a lin- qua realmente 6. Entao, se o que nds chamamos de “lingua” é s6 uma aparéncia, uma ilusao nas- ida dos nossos habitos culturais @ das nossas relagdes sociais, co ‘mo é a lingua na realldade? ‘Trabalho coletive Ao contrério da norma-pa- drdo ~ que é tradicionalmente concebida como um produto ho mogeneo, invaridvel, compacto =, lingua, na concepeao da so- ciolingiistica, ¢ itrinsecamente heterogenea, mUltipla, varidvel, mutante, instével ¢ esté sempre em desconstrugdo e em recons- trugio. Ao contrario de um pro- duto pronto e acabado, de um ‘monumento histbrco feito de pe- dra e cimento, a lingua é um pro- cesso, um fazer-se permanente & ‘munca concluido. A lingua é uma atividade social, um trabalho co- letivo, empreendida por todos os seus falantes, cada vez. que eles se poem a interagir por meio da fala ou da escrita Assim, ao contrério do que muita gente acredita,alingua ndo est registrada por Inteto nos conérios, nem suas regras de fun- cionamento so exatamente (nem somenie) aquelas que aparecem a —— — ee” nos livros chamados gramaticas. E mais uma ilusao social acredt tar que é po: tinico livro a verdade definitiva e ‘eterna sobre uma lingua. Com tudo isso, queremos dizer que, na contramao das crengas mais difundidas, a va- rlagao e a mudanca lingiiisticas € que sao o “estado natural” das linguas, 0 seu jeito proprio de ser, Se a lingua ¢ falada por seres humanos que vivem em sociedades, se esses seres hu. manos € essas sociedades sao sempre, em qualquer lugar e em qualquer época, heterogéneas, diversificados, instaveis, sujei tos a conflitos e a transforma. Ges, 0 estranho, 0 paradoxal. © impensavel seria justamente que as linguas permanecessem estveis e hamogéneas! fel encerrar num SCUVaD LINGu aRruESA Por isso, nao tem sentido fa- lar da variagdo lingiiistica como um “problema”, Freqientemen- te as pessoas perguntam aos lin- gilistas como tratar em sala de aula do “problema da variagao” Podemos comecar respondendo que o problema esté em achar que a variacao lingiiistica 6 um problema” qué pode ser “solu- cionado”. 0 verdadeiro problema é considerar que existe uma lin- gua perfeita, correta, bem-aca- bada e fixada em bases sélidas, e que todas as inimeras mani. festagbes orais e escritas que se distanciem dessa lingua ideal si0 como ervas daninhas, que preci sam ser arrancadas. Barragem de culturas Assim, ndo sao as varieda des lingiifsticas que constituem “desvios” ou “distorgoes” de uma lingua homogénea e esta: vel. Ao contrério: a construgio de uma norma-padrao, de um modelo idealizado de lingua, é gue representa um controle nos processos inerentes de variacao © mudanca, um refreamento ar- tificial das forgas que levam a lingua a variar e a mudar ~ exa- tamente como a construcdo de uma barragem, de uma represa, que impede que as aguas de um rio prossigam no caminho que vinham seguindo naturalmente nos tiltimos milhdes de anos, Toda padronizagao lingiisti ca tende ao enrijecimento e, jus: tamente por isso, torna-se obso- leta muito rapidamente, Basta comparat, por exemplo, as mui las regras e sub-regras da colo cacao pronominal que aparecem ——————_ Pre Ce ean nas gramaticas normativas com nar a heterogeneidade lingiiisti Tea eileresesen ise tle 1 ‘ regra tinica que de fato presi- ca com a heterogeneidade social eae de 0 uso dos pronomes abliquos Lingua e sociedade estao indis- no portugués brasileiro: “o pro- _soluvelmente entrelacadas, en- * variacio morfolégica: as formas “pegajoso” Bee eee cnet nome obliquo se coloca sempre tremeadas, uma influenciando a ioe eh sgl Seema ninguém prevé o fina, “uma hist antes do verbo principal", Nao outta, uma constituindo a outra, admira que a esmagadora maio- Para a sociolingiifstica, ¢ impos: ms ria dos brasileitos, até mesmo os _sivel estudar a lingua sem estu- [ai ice altamente letrados, tena dificul- dar, ao mesmo tempo, a socieda- SGU ETE aie at dade na hora de usar, na escrita, de em que essa lingua ¢ falada, oe rT ee ‘05 seus pronomes obliquos: a8 assim como socidlogos, antrop6- regras padronizadas contradizem logos, psicélogos sociais, entre Sree rere ee re eee frontalmente 0 saber lingifstico outros, também ja se convence- see Uul ieee LS es es que todo falante de uma lingua ram de que nao se pode estudar 2 aM aise igked ts tem do funcionamento dela. Nao sociedade sem levar em conta 2s AG tau admira também que tantos bra- _relagdes que os individuos e os ony UME Se sista esd sileiros achem que “nao sabem grupos estabelecem entre si por = Bree arid portugués", jé queo nome da lin- meio da linguagem. gua acabou se aplicando exclusi-____O coneeito de variagao lingiis vamente a esse modelo fossiliza- _tica & a espinha dorsal da socio- do de “lingua certa” lingilstica. Dizer que a Ifngua objetivo central da sociolin- presenta variacao significa di gilistica é precisamente relacio- _zet, entdo, que ela € heterogénea. eee ntre 0s interlocutores, ¢ podem até ser Poe een nee te a an A palavra “regra” esta sendo usada neste texto com um sentido muito diferente daquele que aparece nas gramaticas Ouray ree te ee rt eee ers Ce ae OTC eet Ce eee eee eee Quando conseguimos detectar e descrever alguma coisa que acontece na lingua com regularidade, com previsibilidade, segundo uma logica tinguistica coerente, fazemos essa descricio na forma de uma regra (como a enunciada no texto sobre 2 oer ee eee ee en discurso do senso comum, se diz que determinado uso vai “contra Cn eee oe ae ae) que se esté querendo dizer € que tal uso desrespeita as regras Cote ee eee! Coe ee eee eee er menina bonitinha’, ou “vocé sabe que eu te amo", ou “chegou Cee rece ee ees Soe ee eee ‘na lingua! Com isso, fica claro que € simplesmente impossivel Cee eee eee) bedecer regras linguisticas! A grande mudangaintroduzida pe- la sociolingiistica foi a concepe30 de lingua como um tivo coletivo": debaixo do guarda-chu: ‘va chamado lingua, no singular, se abrigam diversos conjuntos de realizagdes possiveis dos recursos expressivos que estdo a disposi- Cada modo particular de usar a lingua recebe o nome de varie- dade lingiifstica, Existem tantas variedades lingtifsticas quantos pos sociais que compéem uma comunidad de fala. E-essa varia- ¢40 pode acontecer de formas di ferentes, até mesmo dentro de um ‘inico grupo social (veja o quadro ‘De varias formas”). Essa variagao, porém, nio € aleatoria, fortuita, caét muito pelo contrério truturada, organizada, condi- cionada por diferentes fatores. A sociolingiifstica trabalha com © conceito de heterogeneidade ordenada. Observe as trés fra~ ses abaixo) (1) aguelas menina bonitinha (2)*aquela meninas bonitinha (3)*aquela menina bonitinhas Somente a frase 1 ocorre no ortugués brasileira, enquanta 2 3 nao ocorrem (por isso, esto assinaladas com um asterisco, simbolo usado pelos lingilistas Para identificar uma construcao improvavel ou impossivel). A ira- se 1 usada por praticamente to- dos os brasileitos, até os altamen- te escolarizados em situagaes de fala espontanea, distensa, Dai se deduz claramente que existe uma regra de concordin- cia nessa consirucao, uma regra que diz: “marque 0 plural so- ‘mente no primeiro elemento do sintagma”, regra que é perfeita- ‘mente obedecida por todos os que se servem dela. Na verdade. as regras varidveis de concor- dancia sao bem mais comple- xas, mas aqui nao € 0 propésito discuti-las (veia 0 quadro “Aten: (do sobre as regras”). Aneterogeneidade ordenada tem aver, entdo, com essa carac- teristica fascinante da lingua: 0 fato de ela ser aliamente estru- turada, de ser um sistema orga nizado e, sobretudo, um sistema que possibilita a expressio de um mesmo contetido informa- cional por meio de regras dife rentes, todas igualmente logicas com coeréncia funcional, E mais fascinante ainda: um siste- ‘ma que nunca esta pronto, que o tempo todo se renova, se recom- poe, se reestrutura, sem todavia nunca deixar de proporcionar 0s falantes todos os elementos necessérios para sua plena inte- ragao social e cultural. # lamentavel que uma coisa to admiravel, tao complexa e 130 apaixonante tenha sido re duzida, tanto na tradigao esco- lar como no discurso da midia conservadora, a uma divisao ta- canha entre “certo” e “errado” ~ ainda mais tacanha porque se baseia em preconceitos sociais e culturais antiquissimos, que ia devfamos ter abandonado ha muito tempos

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