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ANATRELLA, Tony, Non à la société dépressive, Paris, Flammarion, 1995
quais se tenta renunciar aos desejos impossíveis embora mantendo-se na
nostalgia das decepções.
2. Constatamos a promoção inquietante de um imaginário primário
que se reduz constantemente ao conformismo da mídia e não deixa lugar para
o desenvolvimento da interioridade individual.
3. Existe uma dificuldade manifestamente contemporânea de
enfrentar os acontecimentos.
Na depressão contemporânea, os indivíduos tentam de sobreviver
ou excitando (émoustiller) se subjetivamente ou implodindo porque não
conseguem operar uma ligação entre suas pulsões nem com as solicitações
externas. A relação com o ambiente social torna-se difícil, quase impossível, e
cada um constitui-se numa ilha para evitar o outro, não sabendo como
encontrá-lo num sentido comum. Quando os conflitos explodem, são duros e
cruéis.
Essa depressão é a tradução de um conflito entre o Eu e o Ideal do
Eu, ou, mais exatamente o reflexo de uma ausência de ideal que deixa o Eu
entregue a si mesmo na auto-suficiência de um sentimento de onipotência. Não
conseguindo recorrer a um ideal transcendente, cada um é para si mesmo o
próprio ideal porque a sociedade, depois de ter se dado o papel de Ideal, não
sabe mais representar, nem nas suas leis, um Ideal universal que deveria
também transcende-la. O drama da sociedade depressiva começa aí, na sua
incapacidade de aceder a um humanismo comum quando são eliminadas as
questões de sentido. O psiquismo não é, em si, nem moral nem religioso, mas
é necessariamente vivenciado através dos objetos simbólicos que permitem
que o sujeito humano coloque para si mesmo as questões de sentido. A
estrutura do Ideal é cada vez mais falha quando ela se torna cada vez mais
impermeável para receber do mundo exterior o “alimento” que lhe é
indispensável para poder desenvolver-se2. O medo do julgamento de valor
provem de uma culpabilidade psíquica que não consegue ser trabalhada:
acaba sendo reprimida numa cumplicidade social que inibe o sentido do ideal e
2
No verbete Ideal do ego ou ideal do eu, Laplanche e Pontalis mostram o quanto a função do
ideal do ego está importante na formação diferenciada do ego e na base da constituição do
grupo humano. LAPLANCHE E PONTALIS, Vocabulário da psicanálise, São Paulo, Martins
Fontes, 1995, p. 222
neutraliza o gosto para a busca da verdade. Procura-se o que conforta as
próprias posições em vez de interrogar-se sobre o sentido do que está sendo
vivido.
3
A expressão “neurose da escolha de vida” é do próprio Anatrella, ibid. p. 17
por que esse último deve viver, amar, trabalhar, procriar e morrer; estamos
num impasse porque não temos mais projetos sociais e altruístas a não ser
buscar a realização pessoal, essa noção sucedendo à de felicidade. Isso
expressa uma concepção mais individual do que coletiva do progresso ou da
salvação. Perda e falta de confiança são o reverso de um mesmo problema: o
da idealidade. Perder o sentido do Ideal, é perder o sentido do outro. De fato, a
desconfiança frente à vida e aos outros – quando não é frente a si mesmo – é
atualmente a atitude mais compartilhada.
Isso não significa que não existam ideais: significa muitos se
recusam a utilizá-los como se não podia ter outro ideal a não ser si mesmo
para responder à dupla questão de saber em quem e em quais valores confiar.
Cada um encontra-se sozinho frente a essa degradação do sentimento de
confiança que atinge todos os aspectos, sozinho também frente às dificuldades
da existência. Essa dúvida em relação à vida e ao futuro é fonte de inibições e
de derrisões: a depressão pode ser manifesta e traduzir-se por uma maior
lentidão vital ou expressar-se em atitudes de desafio ou de desespero.
A falha atual é antes de tudo a expressão de uma crise da
interioridade onde cada um só pensa em cuidar de si e encontra-se num
angustiante face a face de espelho, o que acaba gerando pessoas
relativamente inconsistentes e impulsivas. Isso pode levar o próprio indivíduo a
ser o alvo da própria agressividade. O individuo que não está mais em diálogo
interno com referências ou ideais, embora possa questioná-los, retorna essa
violência contra si mesmo e torna-se o objeto da própria agressividade,
correndo o risco de perder-se. Outro lugar de crise é a sexualidade revista pelo
que se chama de “liberação sexual”.
A CRISE DA INTERIORIDADE
O dinamismo e a força de uma personalidade dependem de sua
riqueza e de seu diálogo interno.4 Longe de ser uma simples sucessão de
acontecimentos, as diferentes experiências de vida são integradas e
contribuem assim a desenvolver as capacidades do indivíduo. Esse trabalho
psíquico realiza-se a partir da função do Ideal que favorece o nascimento e o
4
ANATRELLA, ibid. capítulo primeiro.
crescimento da subjetividade. Uma das tarefas da interioridade é favorecer a
associação entre a subjetividade e “verdades” reconhecidas. Esse trabalho
interior que permite elaborar as próprias pulsões por meio de pensamentos, de
relações, de uma moral, de uma lei, de uma espiritualidade, de uma cultura,
encoraja a expansão e o desenvolvimento de uma interioridade a partir da qual
a relação com o mundo exterior será possível e benéfica para o indivíduo e a
sociedade.
Seria perigoso desprezar a idéia que se possa, pelo menos em
parte, definir a verdade do real. Um dogma é, de fato, um ponto de doutrina
estabelecido ou olhado como uma verdade fundamental incontestável. A lei da
proibição do incesto, por exemplo tem valor de dogma: é uma verdade que
permite que a vida psíquica se torne autônoma e tenha acesso à existência
social porque ela obriga a criança e os pais a desengajar-se de uma relação
exclusiva de possessão. Essa verdade está presente na história de todas as
sociedades, e sua transgressão manifesta ou latente, coloca em perigo o
sentido da alteridade e o destino de uma sociedade. Se a inteligência humana
conseguiu fazer nascer, não sem dificuldades, filosofias que trabalham para a
organização e a sobrevivência das sociedades, não é para ir cada vez mais
longe na busca da verdade? A sociedade perde em coerência e a lei em
credibilidade quando não é conseqüência de uma filosofia justa, honesta,
respeitando a vida humana e seu progresso espiritual. Ter aceito um certo
número de verdades torna a existência mais viável e não significa
obrigatoriamente que se aceite um integrismo estúpido, seja ele psicológico,
político ou religioso.
A rejeição maciça dos ideais provocou o desemprego da função
psíquica do Ideal do Eu social em nome da realização pessoal. Somos
parecidos à experiência da Torre de Babel na confusão dos pensamentos
encorajada por um processo de identificação que muitos aceitam, mesmo sem
aderência interior, simplesmente para não sentir se culpados e rejeitados pelos
outros. A personalidade abandonada ao seu inconsciente não pode viver no
mundo. O Eu precisa receber do exterior o material a partir do qual ele vai
elaborar sua vida e encontrar os outros. O senso do Ideal se forma no
psiquismo quando a criança tem consciência que ele não pode bastar a si
mesmo, que ele precisa de uma outra dimensão para elaborar a própria vida ao
redor de ideais e de projetos. Essa construção psíquica (que diz respeito ao
individuo e não ao ambiente) vai depender de sua capacidade de antecipação
no tempo e de sua capacidade de inscrever sua existência no futuro, portanto
dos seus engajamentos de vida: se isto não acontecer, o risco é grande que ele
se mantenha no nomadismo juvenil dos ensaios e erros, como se dispusesse
eternamente do seu tempo.
A função primária do Ideal é de estabelecer um debate interior: é
assim que, a partir da defasagem entre o ideal e o fato de nem sempre poder
corresponder a ele, nasce uma reflexão que leva o indivíduo a agir no sentido
do ideal que ele se fixou, ou a desviar se dele com plena consciência. Mas para
alguns, essa defasagem pode gerar uma depressão de tipo paranóico:
recrimina-se os outros de não serem perfeitos. Assim, o Ideal, em vez de ser
vivido como uma instância de avaliação é o agente de uma culpabilidade
constante. Frequentemente, sonha-se que ele se realize enquanto tal,
principalmente nos outros. Em outros casos, depressão de tipo obsessivo, a
pessoa acha-se como ideal ou, depressão de tipo perversa, supõe se que não
precisa busca Ideal e se nega o que existe. Nas práticas sociais
contemporâneas, acha-se por bem não ter ideal a não ser as próprias
representações narcisistas.
Em vez de suceder aos “pais” e de continuar a transmissão, a
geração atual preferiu fazer de conta que a lei não devia existir. Contudo,
recusando a identificação com o pai, pelo menos nas representações sociais,
essa geração não conseguiu virar seu igual. Ainda submetida ao complexo de
castração, como ela podia aceder ao sentido da lei e da diferença, quer dizer
ao sentido do outro? A lei do pai propõe um ideal a partir do qual é possível
refletir enquanto a lei dos irmãos é mais afetiva e mais sujeita aos caprichos
dos interesses do momento, submetida à manipulação de um pequeno grupo
que se dá o poder.
A partir do momento em que alguém se mantém numa posição
narcisista, não existe mais debate interior porque não existe lugar para a
alteridade e o ideal. Ora a subjetividade se estrutura quando a criança aceita,
considerando a realidade exterior, de não ser ele mesmo a medida de tudo. O
narcisismo inicial se transforma em Ideal do Eu, projeto a partir do qual a
criança pode crescer: uma distancia se instaura entre ele e o que ele não é
ainda e, nesse espaço, pode surgir com o mundo exterior um dialogo subjetivo
que será fonte de interioridade.
Ocupar o próprio espaço interior significa criar “objetos internos” que
facilitam o desenvolvimento da subjetividade. A subjetividade humana só pode
desenvolver-se na medida em que um material rico e variado lhe é proposto
para despertá-la, estimulá-la, ocupá-la. A interiorização corresponde à
capacidade que possui o sujeito de manter um debate dentro de si mesmo, de
refletir acerca da própria vida levando em consideração os aportes externos e
de estabelecer um sistema simbólico a partir do qual ele vai dar sentido à
própria vida pulsional. A formação da inteligência e a da consciência são os
dois campos que devem trabalhar para que o processo de interiorização possa
afirmar-se.