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Espero que vocês já tenham conseguido o livro ou uma cópia dos capítulos,

1, 4 e 6 que vamos estudar na nossa Ativ. Programada. Como falei no nosso


primeiro encontro, o objetivo da AP é apenas introduzir vocês à teoria
girardiana da religião, mais especificamente de como ele interpretação a íntima
relação entre o sagrado e a violência.
Para aqueles/as que não puderem estar no primeiro encontro, aqui vão
algumas idéias introdutórias que ajudam a compreender melhor a tese de
Girard

1. O ser humano, como todos outros animais, possui um instinto de


agressividade/violência, mas diferentemente de outros, não possui um freio
biológico à sua violência. Isto pode ser constatados em casos em que um pai,
por ex., chega a matar um filho seu no momento de ira. Nós usamos
expressões como "estar possesso" (possuído por um outro ser. "diabo"?).
2. O ser humano é um ser de desejo, só que não sabe o que concretamente
desejar. Por isso, nós tendemos a desejar o que uma outra pessoa (que
funciona aqui como modelo de desejo) deseja. É o "desejo mimético". Só que
quando duas ou mais pessoas desejam um único objeto/pessoa, este objeto de
desejo se torna escasso e é exatamente por ser escasso que é mais desejado.
Essa situação gera conflito entre os seres desejantes, que pode desembocar
em situação de violência extrema que pode atrair toda a comunidade para a
violência.
3. Ora, como os seres humanos não possuem um freio biológico para esse
circulo de violência (vingança que deve ser vingada), surge então uma
pergunta: como as comunidades humanas sobreviveram a esse processo:
desejo mimético, conflito, violência generalizada, vingança....? A hipótese de
Girard é que, na medida em que as comunidades humanas sobreviveram, deve
ter sido criado um freio cultural para a violência. E este freio cultural é a religião,
com seus interditos, mitos e ritos.
4. Só antecipando o final da história, a religião não é só violência (como
dizem os que criticam a religião como sendo necessariamente geradora de
fundamentalismo e de violência), nem é só uma propositora da paz (como
dizem os defensores mais "românticos" da religião". A religião, o sagrado, é
uma forma de controlar a violência humana se utilizando de uma violência
especial, que não é vista pela comunidade como violência, a violência do
sagrado.

Bem, após essa recapitulação rápida do que discutimos no primeiro


encontro, vamos para o tema do nosso próximo encontro: cap. 1 do livro A
violência e o sagrado.
Como diz o título do capítulo, O Sacrifício, o tema central gira em torno da
função social do sacrifício. Há uma ambivalência presente no conceito de
sagrado (atrai e amedronta) e no de sacrifício (sangue/violência que apazigua e
purifica) que poucos percebem. Geralmente as pessoas ou são contra a
religião – e a negam em sua totalidade – ou são a favor e a aceitam na sua
totalidade (pelo menos a sua religião).
Para facilitar a leitura e nos prepararmos para o nosso debate em torno
da função social do sacrifício/religião e a sua ambivalência, abaixo segue
algumas idéias/citações para chamar a atenção de vocês. É claro que vocês
não devem se prender somente a estas indicações e devem levantar outras
questões no nosso encontro.

Obs: o meu livro é da primeira edição, e houve uma revisão da tradução na


segunda edição. Assim, pode haver diferenças entre a minha citação e o texto
de vocês, além do número das páginas..

1. Hipótese apresentado pelo autor: “A sociedade procura desviar para uma


vítima relativamente indiferente, uma vítima 'sacrificável', uma violência que
talvez golpeasse seus próprios membros, que ela pretende proteger a
qualquer custo.” Aprofunde esta questão central. Por que nós falamos e
estudamos tão pouco sobre a violência? Hoje o que fazemos é
reclamarmos da violência e procurarmos os “responsáveis”/culpados pela
violência, mas mesmo nas academias pouco estudamos sobre a violência.

2. A substituição sacrificial pressupõe um certo desconhecimento. E este


desconhecimento é reforçado pela teologia do sacrifício que propõe um
deus que reclama as vítimas. Neste caso, teologia/mito explica ou esconde?
Se a teologia/mito esconde, ao invés de explicar, como devemos ler e
interpretar os mitos/teologias?

3. Autor diz: “Entre uma sociedade como a nossa e as sociedades


religiosas, talvez exista uma diferença, cujo caráter decisivo bem poderia
estar mascarado pelos ritos e em particular, pelo sacrifício caso estes
desempenhassem um papel compensador a seu respeito. Explicar-se-ia
porque a função do sacrifício sempre nos escapou.” Esta diferença se
explicaria, em parte, pelas formas diferentes com que estas sociedades se
“preservam” do ciclo da violência-vingança: através do sistema judiciário ou
de sacrifícios.

4. É comum ouvirmos hoje a pregação da não-violência por parte de grupos


religiosos. Como diz Girard, as condutas religiosas e morais visam à não-
violência de uma forma imediata na vida cotidiana. O que não é usual é a
idéia de que a religião e a violência são inseparáveis. A religião pode
“domesticar” a violência intestina na medida em que faz acreditar numa
diferença entre o sacrifício e a vingança. Assim como o sistema judiciário,
com a sua teologia, precisa fazer o povo acreditar na diferença entre
“justiça” e vingança. E para isso, a transcendência do sagrado ou do
sistema judiciário é fundamental.

5. "O sagrado é tudo o que domina o homem, e com tanta mais certeza
quanto mais o homem considere-se capaz de dominá-lo. (...)
principalmente, ainda que de forma mais oculta, a violência dos próprios
homens, a violência vista como exterior ao homem e confundida, desde
então, com todas as forças que pesam de fora sobre ele. É a violência que
constitui o verdadeiro coração e a alma secreta do sagrado"
No próximo encontro vamos estudar o capítulo 4, “A gênese dos mitos e dos
ritos”. Foi pedido que vocês tentassem ler os capítulos 2 e 3, para que
pudessem entender melhor o cap. 4. Mas, contudo, todavia, sabemos que
essas coisas não são tão fáceis assim. (os capítulos e também a administração
de tempo). Por isso, para ajudar vocês, estou enviando abaixo alguns trechos
dos cap. 2 e 3. Como vocês já sabem, a numeração das páginas do meu livro é
da primeira edição.

"A crise sacrificial, ou seja, a perda do sacrifício [obs: a perda da eficácia


do sacrifício na sociedade] , é a perda da diferença entre a violência impura e a
violência purificadora. Quando se perde esta diferença, não há mais purificação
possível e a violência impura, contagiosa, ou seja, recíproca, alastra-se pela
comunidade.[p.68]
A diferença sacrificial, a diferença entre o puro e o impuro, não pode ser
apagada sem que com ela sejam apagadas todas as outras diferenças. Ocorre
então um único processo invasão pela reciprocidade violenta. A crise sacrificial
deve ser definida como uma crise das diferenças, ou seja, da ordem cultural
em seu conjunto. De fato, esta ordem cultural não é senão um sistema
organizado de diferenças; são os desvios diferenciais que dão aos indivíduos
sua 'identidade', permitindo que eles se situem uns em relação aos outros.
(...) Quando a dimensão religiosa se decompõe não é apenas a
segurança física que se encontra imediatamente ameaçada, mas a própria
ordem cultural. As instituições perdem a vitalidade; a armação da sociedade
desmorona e se dissolve; inicialmente lenta, a erosão de todos os valores
precipita-se; toda a cultura ameaça desabar e um dia inevitavelmente
desmorona como um castelo de cartas." (pp.68-69)

"Não são as diferenças, mas sim o seu desaparecimento que provoca a


rivalidade demente, a luta extrema entre os homens de uma mesma família ou
de uma mesma sociedade. [p.69]
O mundo moderno aspira à igualdade entre os homens, tendendo
instintivamente considerar as diferenças, mesmo que elas não tenham nada a
ver com o status econômico ou social dos indivíuos, como obstáculos à
harmonia entre os homens. (...)
Quando as diferenças perdem sua legitimidade, passam quase que
necessariamente a ser consideradas como causa das rivalidades, às quais
fornecem um pretexto.(...)
Degree, gradus é o princípio de qualquer ordem natural e cultural. É o
que permite que os seres situem-se uns em relação aos outros e que as coisas
tenham um sentido no seio de um todo organizado e hierarquizado. É ele que
constitui os objetos e os valores que os homens transformam, trocam e
manipulam." (pp.69-70)

"Com o fim das diferenças, é a força que domina a fraqueza, é o filho


que golpeia mortalmente o pai; portanto é também o fim de toda justiça
humana, que é também definida, de forma tão lógica quanto inesperada, em
termos de diferença. Se o equilíbrio é a violência, como na tragédia grega, a
não-violência relativa garantida pela justiça será necessariamente definida
como desequilíbrio, como uma diferença entre o 'bem' e o 'mal', paralela à
diferença sacrificial do puro e do impuro. (...) A justiça humana enraíza-se na
ordem diferencial e sucumbe ao mesmo tempo que ela." (p.72)

"Para o pensamento primitivo, ao contrário do que acontece com o


pensamento moderno, a assimilação da violência e da não-diferenciação é uma
evidência imediata, que pode resultar em verdadeiras obsessões. As
diferenças naturais são pensadas em termos de diferenças culturais e vice-
versa. (...) Como não há diferença entre os diversos modos de diferenciação,
ela não existe tão pouco entre os diversos modos de indiferenciação: assim o
desaparecimento de certas diferenças naturais pode evocar a dissolução das
categorias no seio das quais os homens se distribuem, ou seja, a crise
sacrificial." (p.77)

“Se as crises sacrificiais existem realmente, devem comportar um freio: é


preciso que um mecanismo auto-regulador intervenha antes que tudo seja
consumado. Na conclusão da crise sacrificial, é a possibilidade das sociedades
humanas que está em jogo. É necessário descobrir no que consiste esta
conclusão e o que a torna possível. É provável que esta conclusão constitua
uma verdadeiro ponto de partida para o mito e o ritual.” (p. 90)

"Na crise sacrificial, todos os antagonistas acreditam estar separados


por uma diferença enorme. Na realidade, as diferenças desaparecem pouco a
pouco. Em toda parte há o mesmo desejo, o mesmo ódio, a mesma estratégia,
a mesma ilusão de diferença enorme na uniformidade sempre mais concreta. À
medida que a crise se exacerba, todos os membros da comunidades tornam-se
gêmeos da violência. (...) eles são os duplos uns dos outros." (p.103)

"Se a violência uniformiza realmente os homens, (...) então qualquer um


deles pode se transformar, em qualquer momento, no duplo de todos os outros,
ou seja, no objeto de fascinação e de um ódio universais. Uma única vítima
pode substituir todas as vítimas potenciais, todos os irmãos inimigos que cada
um tenta expulsar, ou seja, todos os homens sem exceção, no seio da
comunidade.(...)
Ali onde, alguns instantes, havia mil conflitos particulares, mil pares de
irmãos inimigos isolados uns dos outros, novamente existe uma comunidade,
completamente una no ódio que lhes é inspirado por um só de seus membros.
(...) para um indivíduo único, a vítima expiatória. (...)
(...) Os homens querem se convencer de que todos os seus males
provêm de um único responsável, do qual será fácil livrar-se." (p.104)

"A operação exige uma crença inabalável na responsabilidade da vítima


expiatória. E os primeiros resultados -a paz subitamente restabelecida-
confirmam a identificação do culpado." (p.108)

-x-x-x-

No capítulo 1, Girard começou com o aspecto mais visível da religião: o


sacrifício. No capítulo 4, ao discutir a origem do mito e do rito (que se remetem
um ao outro), ele se pergunta pela origem do próprio sacrifício que é contado
pelo mito e dramatizado pelo rito. Ele faz uma pergunta fundamental: “Em que
estariam pensando os sacrificadores quando eles ainda não tinha deuses com
que se ‘comunicar’? (p. 116) Responder adequadamente ou não a essa
pergunta define toda a postura frente à religião. Como os modernos não
acreditam que Deus apareceu do nada, de repente e sem motivo, para pedir
sacrifícios aos seres humanos, eles pensam que a religião não tem sentido e
função real. Os defensores das religiões retrucam com a tese de que na origem
há uma experiência do sagrado que brotou do “nada”. Mas, se não havia nada
antes que indicasse a existência dos deuses, como pode se ter uma
experiência do sagrado que está intimamente ligado ao sacrifício que torna
algo sagrado?

O nosso próximo capítulo, o 6: Do desejo mimético ao duplo monstruoso, é o


central do livro e, por isso, o mais denso. Ao lê-lo ou relê-lo, prestem atenção
nesses temas:

a) a relação entre a violência e o desejo;


b) o papel do rival-modelo no desejo;
c) o caráter mimético do desejo;
d) o desejo de ser e o desejo por um objeto. (Este é um tema central
para entendermos a cultura de consumo – consumismo – de hoje)
e) duplo monstruoso.

Ao final da próxima aula, vou tentar fazer uma síntese esquemática do


pensamento de Girard.

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