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Menina Mulher

por Pôncio Arrupe


(Ficção curtíssima)
Menina Mulher

Logo que o ensaio acabou, saiu para o exterior e pegou no


telemóvel. Ligou-me.
- Está? – perguntou, num tom ligeiramente alterado, algo
tenso e agitado, assim que atendi.
- Sim, estou. Diz.
- Olha, acho que não vale a pena vires. Acho que vai correr
tudo mal. Não sei, mas acho que não vale a pena vires… - e
fez um silêncio suspensivo, aguardando, certamente, uma
reação minha.
Logo suspeitei do que se passava. Devido ao tom, intuí
também que aguardava de mim uma decisão que teria de vir
a ser por si entendida como a adequada, e por si desejada,
mas que ela própria ainda não sabia qual era.
Inconscientemente, esperava que eu tomasse a boa decisão,
independentemente de qual das alternativas ela viesse a
considerar preferível. Decidir ir ou decidir não ir assistir ao
espetáculo, este era o dilema que sub-repticiamente me
colocava e do qual ela não tinha consciência nítida.
Naquele instante decidi não arriscar. Optei antes por tentar
tranquilizá-la e ganhar tempo para conseguir entrever o que
viria a desejar que eu fizesse. Quis assegurar-me de que o
percebia quanto antes e, não menos importante, de que a
decisão seria, a seus olhos, de minha inteira
responsabilidade.
- Então, porquê? O que aconteceu? – perguntei, embora
suspeitasse já que, do seu ponto de vista, a sua atuação e
de seus colegas estava condenada a um fracasso
vergonhoso. Algo de mau augúrio se tinha passado no último
ensaio, terminado há poucos minutos, apenas duas horas
antes do início do espetáculo.
- Olha, está tudo uma porcaria, uma trapalhada. Os
técnicos não conseguem ligar os microfones de cada um de
nós no momento das falas… Eu não sei, tu é que sabes, vê
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lá se queres vir… - insistiu em passar-me a responsabilidade
da decisão, ainda sem me dizer o que verdadeiramente
desejava que eu fizesse.
A minha filha de doze anos estava a revelar-se-me, pela
primeira vez, como mulher… Senti um pequeno aperto na
boca do estômago.
Dei-me alguns segundos para racionalizar o que me
parecia que se estava a passar. O que estaria a querer dizer-
me, sem querer parecer? Quereria que eu fosse ao
espetáculo da festa de natal da sua escola e estava apenas
a prevenir-me de que a atuação poderia correr muito mal e
de que ela não seria responsável, aliviando assim um pouco,
por antecipação, algum possível sentimento seu de
vergonha? Ou desejava, de facto, que eu não fosse para que
essa sua, no seu entendimento, muito provável humilhação,
viesse a ser-lhe menos penosa?
Eu estava na absoluta disposição de fazer o que ela
desejasse. Assim que percebesse… Isto se a minha filha
soubesse o que queria…
Resolvi desmontar a sua estratégia implícita empurrando-a
para uma decisão, sujeitando-me a eventuais efeitos
adversos. Uma ligeira ansiedade apoderou-se de mim, como
em outras ocasiões em diálogos de natureza idêntica com
outras mulheres.
- Diz-me, menina, – o termo “menina” surgiu-me
espontâneo, exatamente como surge com as outras
mulheres em circunstâncias de indefinição semelhantes – o
que preferes que eu faça?
- Acho que é melhor… não vires…
- Ok, não vou. Vou só buscar-te no final, certo? – deste
modo, quis ainda certificar-me de que ela assumia
claramente a inteira responsabilidade pela sua decisão.
- Sim, por volta das seis e meia.
Despedi-me e desliguei o telemóvel.

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Logo sorri para mim porque a sensação de ansiedade, no
entanto, não tinha desaparecido. Tal como igualmente
acontecia muitas vezes com as outras mulheres, não fiquei
absolutamente certo de que a decisão encontrada era aquela
que a minha filha teria querido que eu tivesse tomado, e
supostamente por minha inteira e autónoma iniciativa e
responsabilidade. Sabia também que, muito provavelmente,
nunca ficaria a saber.
A minha filha de doze anos estava, de facto, a transformar-
se em mulher muito rapidamente. De novo sorri, a um tempo
apreensivo e gratificado.

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