Logo que o ensaio acabou, saiu para o exterior e pegou no
telemóvel. Ligou-me. - Está? – perguntou, num tom ligeiramente alterado, algo tenso e agitado, assim que atendi. - Sim, estou. Diz. - Olha, acho que não vale a pena vires. Acho que vai correr tudo mal. Não sei, mas acho que não vale a pena vires… - e fez um silêncio suspensivo, aguardando, certamente, uma reação minha. Logo suspeitei do que se passava. Devido ao tom, intuí também que aguardava de mim uma decisão que teria de vir a ser por si entendida como a adequada, e por si desejada, mas que ela própria ainda não sabia qual era. Inconscientemente, esperava que eu tomasse a boa decisão, independentemente de qual das alternativas ela viesse a considerar preferível. Decidir ir ou decidir não ir assistir ao espetáculo, este era o dilema que sub-repticiamente me colocava e do qual ela não tinha consciência nítida. Naquele instante decidi não arriscar. Optei antes por tentar tranquilizá-la e ganhar tempo para conseguir entrever o que viria a desejar que eu fizesse. Quis assegurar-me de que o percebia quanto antes e, não menos importante, de que a decisão seria, a seus olhos, de minha inteira responsabilidade. - Então, porquê? O que aconteceu? – perguntei, embora suspeitasse já que, do seu ponto de vista, a sua atuação e de seus colegas estava condenada a um fracasso vergonhoso. Algo de mau augúrio se tinha passado no último ensaio, terminado há poucos minutos, apenas duas horas antes do início do espetáculo. - Olha, está tudo uma porcaria, uma trapalhada. Os técnicos não conseguem ligar os microfones de cada um de nós no momento das falas… Eu não sei, tu é que sabes, vê Menina Mulher, por Pôncio Arrupe 2 lá se queres vir… - insistiu em passar-me a responsabilidade da decisão, ainda sem me dizer o que verdadeiramente desejava que eu fizesse. A minha filha de doze anos estava a revelar-se-me, pela primeira vez, como mulher… Senti um pequeno aperto na boca do estômago. Dei-me alguns segundos para racionalizar o que me parecia que se estava a passar. O que estaria a querer dizer- me, sem querer parecer? Quereria que eu fosse ao espetáculo da festa de natal da sua escola e estava apenas a prevenir-me de que a atuação poderia correr muito mal e de que ela não seria responsável, aliviando assim um pouco, por antecipação, algum possível sentimento seu de vergonha? Ou desejava, de facto, que eu não fosse para que essa sua, no seu entendimento, muito provável humilhação, viesse a ser-lhe menos penosa? Eu estava na absoluta disposição de fazer o que ela desejasse. Assim que percebesse… Isto se a minha filha soubesse o que queria… Resolvi desmontar a sua estratégia implícita empurrando-a para uma decisão, sujeitando-me a eventuais efeitos adversos. Uma ligeira ansiedade apoderou-se de mim, como em outras ocasiões em diálogos de natureza idêntica com outras mulheres. - Diz-me, menina, – o termo “menina” surgiu-me espontâneo, exatamente como surge com as outras mulheres em circunstâncias de indefinição semelhantes – o que preferes que eu faça? - Acho que é melhor… não vires… - Ok, não vou. Vou só buscar-te no final, certo? – deste modo, quis ainda certificar-me de que ela assumia claramente a inteira responsabilidade pela sua decisão. - Sim, por volta das seis e meia. Despedi-me e desliguei o telemóvel.
Menina Mulher, por Pôncio Arrupe 3
Logo sorri para mim porque a sensação de ansiedade, no entanto, não tinha desaparecido. Tal como igualmente acontecia muitas vezes com as outras mulheres, não fiquei absolutamente certo de que a decisão encontrada era aquela que a minha filha teria querido que eu tivesse tomado, e supostamente por minha inteira e autónoma iniciativa e responsabilidade. Sabia também que, muito provavelmente, nunca ficaria a saber. A minha filha de doze anos estava, de facto, a transformar- se em mulher muito rapidamente. De novo sorri, a um tempo apreensivo e gratificado.