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Norberto Bobbio Elogio da serenidade e outros escritos morais 22 edigdo Tradugéio Marco Aurélio Nogueira g editora unesp 3 A natureza do preconceito O que € preconceito Entende-se por “preconceito” uma opiniao ou um conjunto de opinides, as vezes até mesmo uma doutrina completa, que é acolhida acritica e passivamente pela tradicao, pelo costume ou por uma autoridade de quem aceitamos as ordlens sem discussao: “acriticamente” e “passivamente”, na medida em quea aceitamos sem verificé-la, por inércia, respeito ou temor, e a aceitamos com tanta forga que resiste a qualquer refutagao racional, vale dizer, a qualquer refutagaio feita com base em argumentos racionais. Por isso se diz corretamente que © preconceito pertence a esfera do nao racional, ao conjunto das crengas que nao nascem do racio cinio e escapam de qualquer refutagao fundada num raciocinio, O pertencimento a esfera da s ideias que nao aceitam se submeter ao controle da razdo serve para distinguir © precon ceito de qualquer outra forma de opiniao errénea, O preconceit 6 uma opiniio erronea tomada fortemente por verdadeira, mas em toda opiniae crronea pode ser considerada um preconceite 1o3 Norberto Bobbio Para dar um exemplo banal, qualquer um de nds, ao estudar uma lingua estrangeira, comete erros: sao erros que nao derivam de um preconceito, mas pura e simplesmente da ignordncia de algumas regras daquela lingua. Qual a diferenga entre um erro deste genero € 0 erro do preconceito? A diferenga consiste pre- cisamente no fato de que 0 erro que cometemos ao escrever numa lingua que conhecemos mal pode ser corrigido mediante um melhor conhecimento, isto é mediante argumentos que apelam a nossa faculdade de raciocinar e de aprender com a experiéncia, (Outra espécie de erro que nao deve ser confundido com o pre- conceito é aquele em que incorremos quando somos enganados por alguém que nos faz acreditar ser verdadeira uma coisa que verdadeira nao é: podemos cair no erro de boa-fé, mas também neste caso, uma vez desvelado o engano, estamos em condigdes de reconhecer o erro ¢ restabelecer a verdade. Em geral, pode-se izer que se distinguem daquela opiniao erronea em que consiste © preconceito todas as formas que podem ser cortigidas mediante 0s recursos da razo e da experiéncia. Precisamente por nao ser corrigivel ou por ser menos facilmente corrigivel, o preconceito € um erro mais tenaz e socialmente mais perigos Podemos agora perguntar de onde o preconceito extrai tanta forca para resistir, mais que qualquer outro erro, 8 refutacao racional. Creio ser possivel dar a seguinte resposta: a forga do preconceito depende geralmente do fato de que a crenga na veracidade de uma opiniao falsa corresponde aos meus desejos, mobiliza minhas paixdes, serve aos meus interesses. Por trés la forca de conviccao com que acreditamos naquilo que 0 pre~ conceito nos faz acreditar esta uma razio pritica e, portanto, justamente em consequéncia desta raz4o pratica, uma predis- posigao a acreditar na opiniao que o preconceito transmite, Esta predisposigao a acreditar também pode ser chamada de prevengao, Preconceito e prevengao esto habitualmente liga- dos entre si. © preconceito enraiza-se mais facilmente naqueles 104 Hlogio da serenidade que ja estao fayoravelmente predispostos a aceité-lo. Também por isso, 0 preconceito como opiniao errénea aceita fortemente como verdadeira distingue-se das outras formas de erro porque nestas geralmente nao ha prevengao: & justamente porque no ha prevengio, elas sd0 mais facilmente corrigiveis. Diversas formas de preconceito Existem varias formas de preconceito. Uma primeira distin- ¢4o titil é aquela entre preconceitos individuais € preconceitos coletivos. Neste momento, nao estou particularmente interes- sado nos preconceitos individuais, tal como as superstigdes, as crengas mais ou menos idiotas no azar, na maldigao, no mau-olhado, que nos induzem a cruzar os dedos e a carregar folhas de arruda, ou a fazer certos gestos de esconjuro, ou a no realizar certas ages, como viajar as sextas-feiras ou sentar-se a mesa em treze pessoas, a buscar apoio em amuletos para afastar © azar ou em talismas para trazer sorte, Nao me interesso por isso porque sao crengas mais ou menos indcuas, que nao tém a periculosidade social dos preconceitos coletives. Chamo de preconceitos coletivos aqueles que sio compar- tilhados por um grupo social inteiro e estao dirigidos a outro: grupo social. A periculosidade dos preconceitos coletivos de- pende do fato de que muitos conflitos entre grupos, que podem até mesmo degenerar na violencia, derivam do modo distorcido com que um grupo social julga o outro, gerando incompreensao, rivalidade, inimizade, desprezo ou escatnio. Geralmente, este juizo distorcido é reciproco, e em ambas as partes é tio mais forte quanto mais intensa ¢ a identificagao entre os membros in- dividuais e o proprio grupo. A identificagao com o proprio grupo faz que se perceba 0 outro como diverso, ou mesmo como hostil Para esta identificagdo-contraposicao contribui precisamente © Preconceito, ou seja, 0 juizo negative que os membros de um grupo fazem das caracteristicas do grupo rival 105 Norberto Bobbio Os preconceitos de grupo sao inumeraveis, mas os dois historicamente mais relevantes e influentes so 0 preconceito hacional e © preconceito de classe. Nao ¢ por outro motivo que os grandes conflitos que marcaram a historia da humanidade sio os derivados das guerras entre nagdes ou povos (ou tam. bem ragas) e da luta de classes. Nao ha nagio que nao traga nas Costas uma ideia persistente, tenaz e dificilmente modificavel da propria identidade, que se apoiaria em sua pretensa e presumida diversidade em relacao a todas as outras nagées. H4 uma grande diferenga, &s vezes uma oposigao, entre o modo como um povo ve a si mesmo ¢ o modo como ¢ visto pelos outros povos; mas, geralmente, ambos os modos sao constituidos por ideias fixas, Por generalizacSes superficiais (todos os alemies s4o prepoten. tes, todos os italianos sao espertalhdes etc.), que precisamente Por isso so chamadas de “esterestipos”. Para dar um exemplo que nos é bem familiar, pensemos na ideia que os piemonteses fazem de si mesmos (que é uma ideia positiva) e na ideia que deles fazem normalmente as outras regides italianas (que é uma ideia negativa, o contrario perfeito da ideia positiva que fazem de si mesmos): tanto uma quanto a outra sio estereotipos, Tanto € um esteredtipo dizer que o piemontés é um bom trabalhador, correto € de poucas palavras, quanto dizer 0 contratio, que & um esforcado de inteligéncia curta, fraco da cabeca e frio nas relagdes interpessoais, Sobre existéncia do preconceito de classe, no preciso actes- Centar nada, pois se trata de um dado da experiéncia comum Nao preciso esclarecer que o conflito de classe nasce também do Preconceito, Nao digo que nasca apenas do preconceito. Nasce da contraposicao real entre aqueles que tém e aqueles que nao tém, entre proprietérios exclusivos dos meios de producdo aqueles que no possuem outro bem sendo a forca de trabalho Mas nao hé diivida de que o conflito € reforcado pelo precon- ceito, mediante o qual as duas classes contrapostas se atribuem reciprocamente apenas caracteristicas negativas 106

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