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DOUTRINA A AGONIA DO CODIGO CIVIL ORLANDO GOMES SUMARIO: 1. © problema. 2. A tese. 3. O polissistema. 4. Sentido e alcance das leis avulsas. 5. O perigo da colisio. 6. Inviabilidade do monossistema. 7. Cédigo e Constituigio. 8. A maré estatizante. 9. O reflexo. 10. © direito promocional. 11. Ontem e hoje. 1. O Problema A passagem do monossistema ao polissistema dos institutos do direito civil 6 um dos fenémenos caracteristicos da evolucio contemporanea do Direito. Até o desencadeamento da primeira guerra mundial, em 1914, 0 Cédigo Civil era um texto unico no qual estavam reunidas e sistematizadas as regras gerais do direito comum na érbita privada. O BGB — Codigo Civil aleméo — condensara em estilo alta- mente técnico os principios aplicdveis as relagdes entre parti- culares na sociedade civil e estimulara as codificagdes em outros paises com o mesmo espirito sistematico, mas sem o mesmo rigor dogmatico. A partir do terceiro decénio do século em curso, normas especiais, editadas para disciplinar certas categorias de relagdes, passaram a “ocupar espacos de aplicacéo cada dia maiores”, ao ponto de terem um consumo superior ao dos preceitos do Cédigo Civil. - Ocorreu, em sintese, como salienta um escritor, a revolta contra a norma standard, a ruptura da unidade, da generalidade e da simplificacao. A proliferacao das leis especiais foi tao copiosa que, a partir dos anos 50, o legislador deparou-se com uma alternativa: a) ou a fixagéo do movimento de especializacio em textos organicos, que deixem sobreviver 0 Cédigo Civil, introduzindo o particularismo juridico; b) ou um novo Codigo Civil! mediante recodificagao. A preferéncia, nos paises de maior tradicio codificante, foi e continua sendo pela primeira solugdo, alguns deles, como a Franca, pelo método da Novela, isto é, revogando normas do Cédigo Civil e ditando, nele proprio, com a mesma seqiiéncia numérica das anteriores, as novas regras. Justifica-se essa opeéo? 2. A Tese Para entendé-la e aceita-la, é preciso recordar que a codi- ficagao € um produto da histéria das instituigées ocidentais, elaborado no curso de um processo cultural que esta se esgotando na sua peculiaridade cronolégica. Segundo TarELLo, a idéia da codificagéo, fermentada na _se- gunda metade do século XVIII e nos primeiros anos do século XTX, quando se espraiou, deve ser colocada na perspectiva ideo- légica liberal. O esforco técnico para sistematizar as leis teve © objetivo politico de proteger o proprietario, de assegurar-lhe a livre disponibilidade dos seus bens, e de institucionalizar a ini- ciativa privada. Na perspectiva socialista, os cédigos burgueses- -iluministas “eram uma superestrutura ideolégica para mistifi- car a realidade das relacdes de producdo”, e representaram uma técnica pedagdgico-repressiva. Na Optica técnica, a codificacio foi, por sua vez, uma tentativa para abranger todas as relacdes pertencentes ao direito civil, das quais participasse o homem privado. Essas relacdes, reduzidas 4 sua expressio mais simples e abstrata em virtude da unificacéio dos seus titulares, puderam ser reguladas numa estrutura simples. A evidente mudancga da organizagéo s6écio-econédmica dos tempos presentes determinou © desmoronamento desse edificio de linhas classicas (Cédigo Civil) e desaconselha a recodificacio, como me proponho a demonstrar. 1 NATALINO IRTI, L’eté delle decodificazione, Milano, Giuffré, 1979, p. 63. 3. O Polissistema Prevalece, desde entao, o sistema de edicao das leis especiais com sua légica prépria e auténoma, formando as mais impor- tantes, como a legislagéo do trabalho e o estatuto da terra, au- ténticos e expressivos ramos novos do Direito. Outras leis, sem terem atingido a dignidade da independéncia, néo deixam. de constituir importantes setores do ordenamento juridico, tais como o estatuto da mulher casada, a lei do inquilinato, o, direi- to imobiliério constituido pela lei sobre a propriedade horizontal ea lei do parcelamento do solo urbano. Essas e tantas outras leis especiais distinguem-se do Cédigo Civil e o enfrentam, constituindo microssistemas que introdu- zem novos principios de disciplina das relagdes juridicas a que se dirigem. Sua proliferacéo ocasionou “a emersdo de novas légicas se- toriais”. Caracterizam-se, com efeito, pela especialidade e pela dijerenciagdo ou concretude. Promulgados para a regéncia pe- culiar de determinadas classes de relagdes juridicas ou para a protecéo particular de uma categoria de pessoas, alguns desses diplomas legais apanham institutos dantes integrantes do Cédigo Civil, enquanto outros atendem a novas necessidades, sem regu- lamentagaéo anterior. 4. Sentido e Alcance das Leis Avulsas Os institutos e as disposigdes legais que foram destacados do Codigo Civil, deixando o seu territério para se tornarem auto- nomos, néo permaneceram subordinados aos critérios do sistema do qual se separaram, mas, ao contrario, libertaram-se insuflados por outro espirito e porque exigiram um novo método de pensa- mento juridico. Afastam-se dos principios acolhidos no Cédigo, rompem a sua unidade e traduzem uma originalidade, afasta- mento, ruptura e traducdo, que constituem um dado importante para a sua interpretacdo. Caem, assim, em perigoso equivoco os aplicadores do Direito que interpretam as leis especiais utilizando critérios e diretrizes da exegese do Codigo Civil. Outro engano generalizado é a suposicdo de que o particula- rismo legislativo do polissistema € constituido por microssiste- 3 mas florescentes 4 margem do Cédigo Civil, numa convivéncia como a que sobreviveu, no plano internacional, 4 descolonizagaéo entre o colonizador e os colonizados. Ao se proliferarem, as leis especiais esvaziam o territério do Codigo Civil, mutilam-no, esta- belecendo uma verdadeira confrontacéo e usando, até mesmo, linguagem propria — descodificam, numa palavra. Passam a ser, de fato, novos centros da experiéncia juridica. Em conseqiiéncia desse impeto de libertagao dos velhos prin- cipios codificados, a excecdo que representavam vai se tornando regra. Acabam por adquirir o significado de principios novos, tao firmes e estaveis como os outros, dotados, porém, de uma forca de seducdo que alimenta a sua tendéncia expansionista e gene- ralizadora. Dao mesmo a impressio de que querem substitui-ios, como atestam — para dar um exemplo — os principios gerais do direito do trabalho. 5. O Perigo da Colisdo No relacionamento entre as leis especiais e a lei geral, outro problema surge em decorréncia da possibilidade de colisao entre uma e outra. Nessa hipétese, cumpre saber qual das duas deve prevalecer. As leis especiais sio, via de regra, posteriores ao Cédigo Civil e, em principio, deve-se aplicar, em caso de incom- patibilidade, a regra lex posterior priori derogat, valendo, desse modo, o critério cronolégico. Sucede, porém, que o art. 2.°, § 2.°, da Lei de Introdu¢do ao Cédigo Civil preceitua: ‘a lei nova que estabelega disposicdes gerais ou especiais a par das ja existentes ndo revoga nem modifica a lei anterior”. Contudo, as leis espe- ciais que “limitam a extenséo da eficacia da norma geral” sub- traem desta a disciplina dos casos que especificam, hipdtese na qual se aplica a regra lex specialis derogat generali. Devem ser observados, em sintese, os seguintes critérios: a) havendo incompatibilidade entre duas normas especiais, prevalece a posterior; b) se uma norma especial sobrevém a uma norma geral e com esta é incompativel, tem primazia sobre esta. Em resumo: a diferenca entre a logica geral do Cédigo Civil e a logica setorial das leis especiais autoriza a rejeicao dos mesmos critérios interpretativos e, do mesmo passo, atribui prio- ridade aos microssistemas no choque com a norma geral. 4 6. Inviabilidade do Monossistema A multiplicagéo das leis especiais esta causando a agonia do Cédigo Civil. Quebrada a unidade do sistema, deixou este de condensar e exprimir os principios gerais do ordenamento. Em razio dessa ruptura, duvida-se hoje de que na sociedade con- temporanea seja viavel um cdédigo de direito privado que retina tendencialmente toda a disciplina e ordenacgdo das relagdes entre os particulares, ou que simplesmente possa ser elaborado.* Ja no tempo em que a norma geral prescrevia que o juiz nao pode excusar-se de julgar porque a lei seja omissa, admitia-se que a completude do Cédigo Civil era uma idéia irrealizavel. O que se tinha como impraticavel em cédigos que constituiam um sistema fechado, como o Cédigo Napoledo, tornou-se uma impossibilidade na sociedade industrial, complexa e diferenciada. Perdendo im- portancia, apesar de continuar a ser o ponto de referéncia das reflexdes habituais dos juristas, 0 Codigo Civil entra em agonia. Até mesmo suas categorias tradicionais e sua l6gica unitaria vém se desgastando tao rapidamente, que hoje se levantam duvidas sobre se deve converter-se num corpo de principios que deixe a outras fontes normativas diversas a fungdéo de integr4-los.* 7. Cddigo e Constituicdo Essa condensacdéo dos valores essenciais do direito privado passou a ser cristalizada no direito publico. Ocorreu nos ultimos tempos o fendmeno da emigracéo desses principios para o Direito Constitucional. A propriedade, a familia, 0 contrato, ingressaram nas Constituicdes. & nas Constituigdes que se encontram, hoje definidas, as proposicdes diretoras dos mais importantes insti- tutos do direito privado. Tal foi, segundo NatTaLIno IrTI, a resposta politica e norma- tiva ao desmoronamento do Cédigo Civil: a colocagéo dos pre- ceitos constitucionais no vértice da hierarquia das fontes e a enunciagéo de principios gerais destinados a serem observados na interpretacéo e na aplicacéo de todas as normas do sistema, passando a Constituigéo a ser o centro do universo juridico, Em 2 PRINCIGALLI, Las vicisitudes de la codificacién, in Derecho Privado, un ensayo para la ensefianza, trad. cast., p. 91. 3 Idem, ensaio cit., p. 92. conseqiiéncia da constitucionalizacéo dos referidos principios gerais, as leis especiais passaram a derivar-se de um preceito enunciado na Constituigéo, penetrando, com maior forga e im- postacdo, “no tecido da sociedade”. 8. A Maré Estatizante A emigracéo dos principios gerais do direito civil para a area do direito publico foi considerada por alguns civilistas uma intruséo intoleravel. Correspondia a um encurtamento da di- mensao individualista em favor de uma socializacéo dos com- portamentos, levada ao extremo nos anos 70, a partir de 1968. Durante algum tempo, no decénio que se seguiu aos aconte- cimentos de maio, na Franca — para tomar um ponto de refe- réncia —, empinou-se uma onda de maré estatizante que se espraiou sobre “o espago reservado para o destino individual”. Na observacéo aguda de um jurista italiano, tudo era politica, nada era privado, ou intimo. A vida dos particulares estava absorvida e era resolvida pela politica e toda esperanga e toda confianga se depositavam “no social e no coletivo”. Instaurava- -se ‘a crise do direito privado, com as agressdes a propriedade privada, malquista e vituperada, o cerco & autonomia do empre- saério, 0 maior controle social sobre a liberdade dos individuos e até mesmo a contestacéo a figura do negécio juridico como expressio de autonomia privada. + 9. O Reflexo A partir de 1978, comegou a refluir a vaga do social e do coletivo. Assinalam-se como seus fatores: a crise das ideologias, a desconfianca em relagéo aos partidos politicos e ao regime par- lamentar, 0 desengano quanto as novas formulas de governo, o terrorismo e a gravidade da situacgéo econémica.® Declina, numa palavra, a tendéncia politiqueira, segundo a qual tudo é politica, e comega a manifestar-se o refluxo, o “retorno ao privado”, “a sua redescoberta”. Em sintese paradoxal, o direito civil repriva- tiza-se na medida em que mudam as relagées entre o Estado 4 NATTALINO IRTI, Introduzione alle incognite del Diritto Privato, in Revista di Diritto Civile, fasc. janeiro-fevereiro de 1980, p. 2. 5 Idem, p. 3. “e a sociedade civil. Como que se restaura o culto aquele direito negativo a que se referiu HEGEL. : Essa nova tendéncia nao visa tao-somente a facilitar a capa- cidade de expanséo do individuo no universo econémico, mas, sobretudo, tende a assegurar-Ihe o desenvolvimento da persona- lidade, tanto assim que ha grande preocupacéo em definir e garantir, por disposigdes de direito privado, os chamados direitos personalissimos, o direito & vida, 4 liberdade, a intimidade, a satide, e tantos outros. Os povos cultos vdo se conscientizando de que esta morto o sociologismo exagerado que quis excluir o homem de toda existéncia que nao fosse coletiva e que o slogan “tudo € politica” contém o embriéo de uma tirania espiritual. Voltou-se, nos paises adiantados do Ocidente, a compreender, como disse, com elegancia, REVEL, que “a realidade primeira e ultima, o ponto de partida e o ponto de chegada de todas as coisas, nas sociedades humanas, é 0 individuo”.* E que o indi- viduo n&o pode ser mero joguete das estruturas sociais. A idéia de que o homem sé existe embalado no pacote coletivo traduz uma falsa imagem do Estado moderno.? ~ de muito lamentar que os intelectuais ativistas do Brasil estejam téo desinformados e téo atrasados ao pensar na sobre- vivéncia ou no prolongamento daquele periodo de regressio, que exaltava o social e o coletivo. Nem ao menos eles percebem que no plano s6cio-politico dos paises industrializados e dos que estado a se desenvolver economicamente tais sio tendéncias regressivas que traduzem atitude mental retrégrada, como é a subordinacdo integral do privado ao publico e assim a subordinagdo da socie- dade civil ao sistema politico, isto 6, a subordinacéo a buro- cracias partidarias ou sindicais, bem como a transformacaéo de ptblico em totalitario. 8 10. O Direito Promocional Ja Trimarcut, estudando o papel do jurista na sociedade industrial, frisa que a prdtica do direito como engenharia social, necesséria em nossos dias, tem que vencer trés obstAculos, dois tradicionais e um atual. Os dois obstéculos tradicionais sio: a 6 Le Rejet de VEtat, Paris, Grasset, 1984, p. 215. 7 REVEL, ob. cit., p. 217. 8 LOMBARDO, Publico e privato tra sistema politico e societa civile. atitude mental de que o Direito deve assegurar um minimo ético e a vinculacéo da literatura e do ensino juridico 4 pratica fo- rense; 0 obstaculo moderno é a hostilidade 4 ciéncia econdmica. ® Observa, em seguida, que o legislador nfo tem que se preocupar, exclusivamente, como tem feito até agora, com os problemas de distribuicéo da justi¢a. Ndo lhe cumpre téo-s6 reunir, num corpo de principios e normas, as solucdes dos conflitos de interesses. O direito torna-se promocional e essa nova fun¢céo n&o se com- padece com o seu aprisionamento em Cédigos, nem se acomoda & légica do Cédigo Civil geral do monossistema declinante. Tentar, a esta altura do desenvolvimento do pais, simples- mente retocar o velho Cédigo, deixando de fora, como esta, num projeto retrégrado, a chamada legislagéo vinculistica, e conservando 0 mesmo quadro e o mesmo espirito, 6 desconhecer a realidade atual. Pretender, por outro lado, que essa legislagao marginal, abundante e oportunista, derive e se submeta a prin- cipios constitucionais sovados, incompativeis com a economia de mercado e tendencialmente orientados no rumo da hipertrofia do Estado, a mim me parece que é consagrar um anacronismo, que s6 n&o percebem os que nao tém olhos de ver e néo sabem o que vai pelo mundo. 11. Ontem e Hoje Ao ser elaborado e discutido longamente o Cédigo Civil, a vida intelectual do pais elevara-se a um nivel nunca dantes atin- gido, como assinalou Sanriaco Dantas,’ esclarecendo que toda uma geracio, captando os problemas agitados pela cultura euro- péia do seu tempo, langava, entre nds, no espago de um decénio, as bases de um grande movimento de idéias, aberto 4 realidade dos cingiienta anos seguintes. Nos dias de hoje, a vida intelectual do pais, no que toca a sua cultura juridica, distingue-se, entretanto, pelo desconheci- mento da realidade histérica e pelo apego a valores superacios no mundo livre. Néao ha germinacéo de idéias, continuando inte- lectuais, que se consideram progressistas, a revelar uma fascina- ¢&o serédia pelo social e pelo coletivo, na suposigéo ingénua de que estéo na vanguarda do pensamento juridico. 9 In Revista di Diritto Civile, fasc. de janeiro/fevereiro de 1980, p. 2. 10 Rui Barbosa e o Cédio Civil, Rio de Janeiro, Casa de Rul, 1949, p. 8. Entendia Rur Barsosa, aquele tempo, que um Codigo teria que ser um corpo de leis que, por sua natureza, nao devia res- ponder as necessidades de um momento histérico, senao reger uma época; superestimava a sua elaboragéo ao ponto de querer que viesse a ter longevidade secular e que, reclamada pela cultura intelectual do pais para substituir leis e regulamentos acumula- dos sobre o fundo de normas quinhentistas, fosse uma obra pura e duravel, ao nivel da codificagéo alema, entéo recente. 11 Essa generosa expectativa nao se confirmou. Ainda adoles- cente, comecou a ser mutilado e, com o passar dos anos e€ 0 desenvolvimento do pais, foi perdendo substancia e magnitude. Leis avulsas em numero alarmante seguiram-se 4 politica de institucionalizagéo de microssistemas, que, por sua vez, traduziam novas diretrizes do pensamento juridico tragadas nas sucessivas Constituigdes. E, assim, destinado a ter longevidade secular, o Cédigo Civil agoniza ao perder o seu significado de repositério de todo o direito privado e de centro da experiéncia juridica de um povo. Esvaziou-se no seu contetido e perdeu o seu sentido. A passagem do monossistema ao polissistema nfo é um epi- sodio efémero. &, sim, uma injuncéo dos tempos novos, nada obstante o retorno ao privado, 4 sua redescoberta. 11 SANTIAGO DANTAS, conferéncia cit., passim.

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