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23/03/2022 15:40 Candidatos a corrupto

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Candidatos a corrupto
João Carlos Bemerguy Camerini

O envolvimento do servidor em determinados círculos sociais, o comportamento


indiscreto, a manifestação exacerbada de opiniões pessoais e a presença frequente em
ambientes luxuosos incompatíveis com a remuneração do cargo, abalam inevitavelmente
a sua credibilidade perante a sociedade.
terça-feira, 29 de maio de 2018

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Quase todo servidor público corrupto um dia foi um concurseiro dedicado e sonhador.
Como, por que e quando ocorre essa transformação de caráter? Em meio à aflição
gerada pelo clima de geral desconfiança que assola o Brasil, comecei a pensar no
assunto. Rememorei minha própria experiência como estudante e servidor público
concursado, até perceber que o germe da corrupção no serviço público pode estar
presente antes mesmo da tão desejada aprovação, já nas motivações que animam os
milhões de candidatos que se submetem a rigorosos e exaustivos regimes de estudo.
As palestras motivacionais gratuitas ofertadas aos montes pelos infinitos cursinhos
preparatórios para atrair essa clientela costumam girar em torno da venda de algumas
promessas recorrentes: dinheiro, status social, estabilidade e possibilidade de trabalhar
por nobres ideais. Proponho, assim, uma reflexão sobre como tais motivos podem, com
o tempo, degenerar em atos de corrupção.

Na sua maioria e por razões óbvias, os candidatos buscam prioritariamente melhorar


sua situação financeira. Finalidade justa e compreensível, claro. Circulam várias
histórias no universo dos concursos sobre estudantes que usam "técnicas"
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motivacionais bastante peculiares nas quais a ambição econômica funciona como


combustível. Dentre outros métodos muito curiosos, ouvi dizer de um concurseiro que,
no melhor estilo cenoura de burro, havia colado um gordo contracheque no espelho
do banheiro, que depois ficava a contemplar nas horas vagas, para não desanimar da
luta.

A experiência mostra, contudo, que se é certo que aqueles que adentram o serviço
público fecham atrás de si as portas da pobreza, também é verdade que não
demorarão a descobrir que à sua frente não restaram muitas esperanças de riqueza
abundante. Ainda que o servidor alcance a remuneração máxima do setor público,
gozando de uma situação econômica confortável, dificilmente deixará de ser um
cidadão de classe média. Daí fica fácil imaginar como a ambição econômica, quando
colocada como meta principal na vida profissional de um servidor público, pode levá-
lo a praticar atos de peculato, concussão ou corrupção passiva.

Recordo também de ouvir falar nessas palestras de autoajuda para concurseiros sobre
o status e o reconhecimento social deferidos à classe dos servidores públicos,
principalmente aos ocupantes dos cargos de maior responsabilidade. Aos que se fiam
nessa quimera, aviso logo que poderão se decepcionar. As normas éticas sobre
integridade e decoro pessoal no exercício do cargo ou fora dele existem por um
motivo, o que, dito de outro modo, significa que a ressaca da festa pode gerar fortes
dores de cabeça.

O envolvimento do servidor em determinados círculos sociais, o comportamento


indiscreto, a manifestação exacerbada de opiniões pessoais e a presença frequente
em ambientes luxuosos incompatíveis com a remuneração do cargo, abalam
inevitavelmente a sua credibilidade perante a sociedade. Isso na melhor das hipóteses.
Na pior, adentra-se o campo minado do tráfico de influências, da violação de sigilo
funcional, da advocacia administrativa, da falta de impessoalidade, dentre outras
peripécias.

Há ainda aqueles modestos e bondosos concurseiros que só querem a segurança


garantida por um cargo público estável. Formar uma família, educar os filhos, viver em
paz... Ser feliz! O sentimentalismo recomendaria não criticar essas tão nobres
intenções. Afinal, que espécie de espírito de porco poderia dizer algo contra alguém
que nada mais deseja senão comprar uma casa para sua mãezinha idosa?

O problema é que enquanto uns querem demais, outros querem de menos. Se uma
vida de luxos e colunas sociais são objetivos quase inatingíveis para um servidor
público honesto, os objetivos aos quais ora me refiro, de tão módicos, são alcançados
quase instantaneamente após a posse, de sorte que, se não restar nenhuma outra
meta profissional futura para esses candidatos, correm sério risco de se aposentarem
como aspones e parasitas da máquina estatal. Não tenho nenhum crime para acusar
essa turma, embora sem dúvida ela possa flertar com a improbidade administrativa.
Seus delitos morais são a mediocridade, a preguiça e a acomodação, que, embora não
sejam graves a ponto de recomendar cadeia, nem por isso deixam de ser altamente
perniciosos para o erário, a eficiência e a imagem do Estado.

Finalmente, há os perigosíssimos jovens (e velhos) idealistas, que embora não roubem,


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p g q
não bebam e mintam pouco, fogem da lei de abuso de autoridade como o diabo da
cruz. Sobre eles recaem, outrossim, fortes suspeitas de prevaricação, forma de
corrupção muito comum no Brasil, mas extremamente difícil de provar, porque o
capital psicológico ilícito é sempre branqueado por discursos demagógicos
politicamente corretos. Os indícios, todavia, são tão reluzentes que convenceriam
qualquer um se fossem apresentados em power point.

Por exemplo, se um juiz consigna em sua sentença judicial que está decidindo num ou
noutro sentido porque quer construir um país melhor para seus filhos, cuidado! É hora
de acender a luz vermelha, pois todas as atrocidades de proporções humanitárias na
história, sem exceção, foram cometidas por homens que sentiram em seu coração
uma voz divina a convocá-los para a missão de salvar o mundo. Então, se é isso o que
você deseja, jovem concurseiro, aqui está meu conselho: funde uma nova igreja, que o
serviço público não é lugar para exibicionismo moral ou para realização de projetos
pessoais, por mais puros e brilhantes que sejam. Isso porque, como disse o ministro
Marco Aurélio num julgamento recente no Supremo Tribunal Federal: "De bem-
intencionados, o Brasil está cheio".

Ao invés de bancar o virtuoso herói da pátria, um servidor público vocacionado não


deveria desejar nem mais nem menos do que cumprir seus deveres legais com
competência. Essa palavra, no dicionário, tem dois significados cuja relação íntima
poucas pessoas notam prima facie. Por um lado, ter competência é ter atribuição para
fazer alguma coisa, donde se infere que incompetente é alguém que não conhece seu
lugar e faz o que não é da sua conta. Por outro, competência é habilidade e talento;
nesse sentido, ser competente é fazer um trabalho bem feito - como o motorista que
conduz e zela pelo veículo público da melhor maneira possível; o juiz que decide os
casos jurídicos de modo tecnicamente impecável; o advogado público que defende
suas causas com os melhores argumentos disponíveis, e assim por diante.

Quem deseja melhorar o mundo não é confiável, pois em tal desejo se hospeda um
germe autoritário. O perfeccionista antes de tudo pressupõe a própria imperfeição para
daí buscar a superação diária de seus limites. Só pode ser esta a sublime e discreta
ousadia que deveria inflamar a alma de todo concurseiro: o sonho de desempenhar
com perfeição o serviço que lhe couber, ou morrer tentando. O que de bom vier a
reboque é consequência do mérito de reunir em si os dois sentidos da palavra
competência, cuja relação oculta fica agora esclarecida: a humildade é o único
caminho para a perfeição.

___________

*João Carlos Bemerguy Camerini é defensor público do Estado do  AM e mestre em


Direito Ambiental na UEA.

Atualizado em: 29/5/2018 14:36

João Carlos Bemerguy Camerini

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ISSN 1983-392X

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