Você está na página 1de 3

1

14 de novembro, dia de traição


Por incrível que pareça, volta e meia retorna o
projeto malicioso de pisar na história de Cascavel
e impor o 14 de novembro como data oficial do
aniversário do Município. Além de não
comemorar a data da fundação da cidade de
Cascavel (28 de março), por não ter sido
oficializada lá atrás, insistem em pôr fim à data
correta do aniversário – 14 de dezembro – sob a
alegação de que atrapalha os negócios natalinos.

Todos sabemos que o 25 de dezembro não foi o verdadeiro dia do


nascimento (natal, natalício) de Jesus Cristo: um Papa impôs a data
de acordo com alguns sinais astronômicos e assim ficou. Mas essa
data consagrada é falsa por falta de opção. Não foi a cínica
orientação de quem pretenda, por mera ganância, comemorar o
aniversário do Município numa data duvidosa, mesmo havendo uma
data oficial já consagrada.
Existe um pedaço de papel num arquivo em que consta o dia 14
de novembro de 1951. Pronto: está achada a solução para fazer com
que uma data já historicamente descartada, mas conveniente, seja
comemorada sem atrapalhar os pacotes de Noel!
O saudoso primeiro prefeito de Cascavel, José Neves Formighieri,
que no dia 5 de agosto faria 95 anos, era um homem muito sincero.
Sua firmeza por vezes chegava a assustar seus interlocutores.
Ele pôs para correr de Cascavel um delegado de polícia, enfrentou
os torturadores da ditadura – e por isso foi preso mais de uma vez,
sofrendo castigos desumanos –, “roubou” uma máquina do Estado
que estava abandonada em Munhoz da Rocha e a colocou para
trabalhar em Cascavel. Um cidadão e líder como poucos. Essa
avaliação pode soar como uma espécie de nepotismo de minha parte,
2

por ser meu primo. Mas o que importa, aqui, é o fato de esse homem
sincero, sem papas na língua, declarou o 14 de novembro como um
dia de traição a Cascavel.
Nas eleições de 3 de outubro de 1950, Neves, então apenas um
anônimo agropecuarista do interior do Município de Foz do Iguaçu,
votou em Bento Munhoz para governador. Bento disse a Neves:
“Disponha de mim se eu for eleito”. Foi eleito.
Em 14 de novembro de 1951, o governador Bento assinou a lei
790/51, criando uma penca de municípios. Até “bibocas” sem
estrutura nenhuma se tornaram municípios e por isso a lei previa
uma ajuda de cem mil cruzeiros para a instalação.
Neves foi ao governador para receber os recursos e ouviu um não:
“Este ano e o ano que vem, vocês não vão receber esta verba”.
Bento alegou que estava construindo o Centro Cívico: “Eu tenho que
segurar o dinheiro e vocês vão cooperar comigo”.
“Voltei meio desanimado”, disse Neves, “mas pensei: não posso
abandonar essa gente. Então resolvi meter a mão no bolso”.
Trocando em miúdos: no dia 14 de novembro de 1951, Bento
assinou uma lei que prometia ajuda aos novos municípios e essa
ajuda jamais veio, virou pó. A lei 790/51, portanto, no entender do
primeiro prefeito de Cascavel, embutia uma falsa promessa, mentira,
traição.
Cascavel nunca viu a cor dos tais cem mil cruzeiros. Se não por
mais nada, é por isso que não há sentido em impor o 14 de
novembro como data histórica a comemorar.
O prefeito Neves teve que pôr a mão no próprio bolso para iniciar
o Município, que começa em 14 de dezembro de 1952. Em outra
ocasião podemos contar como foram os duríssimos primeiros meses
da administração municipal.
O 14 de novembro foi, desde o início, a “data da traição”,
enquanto o 14 de dezembro se tornou uma data consagrada já no
primeiro aniversário: em 14 de dezembro de 1953, em homenagem à
data, a Lei estadual 1.542 criava a Comarca de Cascavel. A partir de
então, o aniversário seria sempre festejado nessa data.
3

Quando a Prefeitura foi alvo de um incêndio criminoso, em 1960,


a lei pioneira, de 1953, que estabelecia a data oficial de
comemoração do aniversário de Cascavel em 14 de dezembro
também foi consumida pelas chamas.
Por um certo período, depois da reconstrução, comemoraram
erroneamente em 14 de novembro, até que a nova lei, sabiamente
redigida pelo então vereador Aldo Parzianello, repôs a história em
seus verdadeiros termos.
Há muita coisa errada com nomes de ruas e problemas sociais,
mas isso não sensibiliza os donos da cidade. Eles querem é faturar,
mesmo jogando a história na lata de lixo. Mais uma enorme
demonstração de desrespeito a Cascavel, aos seus cidadãos e aos
pioneiros.
Comemorar oficialmente o dia da mentira e da traição, data da
assinatura de um papel cujas determinações jamais foram
cumpridas, obrigando o primeiro prefeito a gastar dinheiro do bolso,
jamais devolvido, seria um suicídio moral para a atual legislatura
municipal.
Serão tão amantes do dinheiro a ponto de gravar em si mesmos
essa pecha negativa em troca do faturamento de algumas horas de
um só dia por, preferindo homenagear o dia da traição? Respeito é
bom e a história merece.
**
Alceu A. Sperança – escritor
alceusperanca@ig.com.br

Você também pode gostar