Se uma nova terapia pode aliviar sofrimento, deve ser
desenvolvida. Mas o temor das fantasias ficcionais existe
Marcelo Gleiser, é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
Em seu romance de ficção científica "A Pedra Filosofal", o inglês
Colin Wilson relata a história de um neurocientista que faz uma descoberta fenomenal: a aliança da eletrônica com as ciências cognitivas pode transformar cérebros normais em supercérebros, com poderes inimagináveis.
O cientista implanta eletrodos em certas regiões da córtex cerebral
frontal, a área da inteligência, estimulando-as com pequenas correntes elétricas. Os resultados são surpreendentes: ele passa a ter uma capacidade racional infinitamente superior à normal, incluindo poderes paranormais e conexões com o passado e o futuro. O supercérebro pode viajar no tempo sem sair do lugar.
Recentemente, o filme "Sob o Domínio do Mal" revisita o tema,
adaptando-o ao clima de intriga política e corrupção corporativa que existe hoje nos EUA. No filme, soldados são usados como cobaias em um experimento, onde eletrodos são implantados nos seus cérebros com o intuito de controlar as suas memórias e desejos.
Não só os soldados se lembram apenas daquilo que os seus
controladores permitem, mas suas memórias podem ser fabricadas por um processo de hipnose induzido pelos eletrodos. Ou seja, a tecnologia pode ser usada maquiavelicamente para criar autômatos humanos. Inclusive o futuro presidente dos EUA.
Passando da ficção à ciência, a tecnologia de implante de eletrodos
no cérebro está sendo desenvolvida em vários países, incluindo Canadá, Alemanha, EUA e Bélgica. O intuito dos neurocirurgiões não é criar autômatos mas aliviar o sofrimento causado por várias doenças psiquiátricas, como a obsessão compulsiva, o mal de Parkinson e a depressão profunda.
A técnica, chamada de Estimulação Cerebral Profunda (ECP), é
surpreendentemente semelhante àquela das obras ficcionais.
Microeletrodos com a espessura de um cabelo humano e seis
milímetros de comprimento são inseridos em regiões profundas do cérebro, que variam com a doença a ser combatida. O processo de inserção é complicado, já que o cirurgião deve evitar a perfuração de artérias e se certificar de que o local certo foi atingido. Os eletrodos estimulam eletricamente o cérebro, interferindo com os canais de comunicação entre os neurônios.
Como vários distúrbios psiquiátricos são associados a bloqueios ou
disfunções neuronais, a idéia é que os impulsos elétricos podem restituir às regiões danificadas um nível razoável de funcionamento. A técnica está em desenvolvimento, mas os testes preliminares são animadores.
Em torno de 30 mil operações desse tipo foram já feitas no mundo,
especialmente no tratamento do mal de Parkinson. Em muitos, o estímulo elétrico alivia imediatamente a paralisia muscular associada com a doença.
Um paciente do doutor Bart Nuttin, da Bélgica, que sofria de
transtorno obsessivo-compulsivo, mudou de comportamento quase instantaneamente. A técnica aponta para uma nova era da psiquiatria e psicologia, onde medicamentos e terapia são apenas parte do tratamento.
Questões éticas são inevitáveis. Para os que sofrem de distúrbios
psiquiátricos potencialmente tratáveis por ECP, não existe dúvida: se uma nova terapia pode aliviar o sofrimento de pacientes, deve ser desenvolvida o mais rapidamente possível. Mas o temor das fantasias ficcionais existe.
Talvez um dia seja possível manipular o núcleo de memórias de
alguém, ou até comportamentos, com intenções criminosas. Mas proibir ou ignorar um avanço capaz de aliviar o sofrimento de milhões é crime muito maior.
Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College,
em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu" Origem do texto: COLUNISTA DA FOLHA Editoria: MAIS! Página: 9 Edição: São Paulo Jul 24, 2005 Seção: + CIÊNCIA; MICRO/MACRO Observações: PÉ BIOGRÁFICO *; Texto corrigid