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PSIQUIATRIA BIOELETRÔNICA

24/07/2005

Se uma nova terapia pode aliviar sofrimento, deve ser


desenvolvida. Mas o temor das fantasias ficcionais existe

Marcelo Gleiser,
é professor de física teórica do Dartmouth College, em Hanover
(EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"

Em seu romance de ficção científica "A Pedra Filosofal", o inglês


Colin Wilson relata a história de um neurocientista que faz uma
descoberta fenomenal: a aliança da eletrônica com as ciências
cognitivas pode transformar cérebros normais em supercérebros,
com poderes inimagináveis.

O cientista implanta eletrodos em certas regiões da córtex cerebral


frontal, a área da inteligência, estimulando-as com pequenas
correntes elétricas. Os resultados são surpreendentes: ele passa a
ter uma capacidade racional infinitamente superior à normal,
incluindo poderes paranormais e conexões com o passado e o
futuro. O supercérebro pode viajar no tempo sem sair do lugar.

Recentemente, o filme "Sob o Domínio do Mal" revisita o tema,


adaptando-o ao clima de intriga política e corrupção corporativa que
existe hoje nos EUA. No filme, soldados são usados como cobaias
em um experimento, onde eletrodos são implantados nos seus
cérebros com o intuito de controlar as suas memórias e desejos.

Não só os soldados se lembram apenas daquilo que os seus


controladores permitem, mas suas memórias podem ser fabricadas
por um processo de hipnose induzido pelos eletrodos. Ou seja, a
tecnologia pode ser usada maquiavelicamente para criar autômatos
humanos. Inclusive o futuro presidente dos EUA.

Passando da ficção à ciência, a tecnologia de implante de eletrodos


no cérebro está sendo desenvolvida em vários países, incluindo
Canadá, Alemanha, EUA e Bélgica. O intuito dos neurocirurgiões
não é criar autômatos mas aliviar o sofrimento causado por várias
doenças psiquiátricas, como a obsessão compulsiva, o mal de
Parkinson e a depressão profunda.

A técnica, chamada de Estimulação Cerebral Profunda (ECP), é


surpreendentemente semelhante àquela das obras ficcionais.

Microeletrodos com a espessura de um cabelo humano e seis


milímetros de comprimento são inseridos em regiões profundas do
cérebro, que variam com a doença a ser combatida. O processo de
inserção é complicado, já que o cirurgião deve evitar a perfuração
de artérias e se certificar de que o local certo foi atingido. Os
eletrodos estimulam eletricamente o cérebro, interferindo com os
canais de comunicação entre os neurônios.

Como vários distúrbios psiquiátricos são associados a bloqueios ou


disfunções neuronais, a idéia é que os impulsos elétricos podem
restituir às regiões danificadas um nível razoável de funcionamento.
A técnica está em desenvolvimento, mas os testes preliminares são
animadores.

Em torno de 30 mil operações desse tipo foram já feitas no mundo,


especialmente no tratamento do mal de Parkinson. Em muitos, o
estímulo elétrico alivia imediatamente a paralisia muscular
associada com a doença.

Um paciente do doutor Bart Nuttin, da Bélgica, que sofria de


transtorno obsessivo-compulsivo, mudou de comportamento quase
instantaneamente. A técnica aponta para uma nova era da
psiquiatria e psicologia, onde medicamentos e terapia são apenas
parte do tratamento.

Questões éticas são inevitáveis. Para os que sofrem de distúrbios


psiquiátricos potencialmente tratáveis por ECP, não existe dúvida:
se uma nova terapia pode aliviar o sofrimento de pacientes, deve
ser desenvolvida o mais rapidamente possível. Mas o temor das
fantasias ficcionais existe.

Talvez um dia seja possível manipular o núcleo de memórias de


alguém, ou até comportamentos, com intenções criminosas. Mas
proibir ou ignorar um avanço capaz de aliviar o sofrimento de
milhões é crime muito maior.

Marcelo Gleiser é professor de física teórica do Dartmouth College,


em Hanover (EUA), e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu"
Origem do texto: COLUNISTA DA FOLHA
Editoria: MAIS! Página: 9
Edição: São Paulo Jul 24, 2005
Seção: + CIÊNCIA; MICRO/MACRO
Observações: PÉ BIOGRÁFICO *; Texto corrigid

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