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Introdugao A recente historiografia tem demonstrado que, por cinco anos, a Guerra do i serviu de pretexto a elite politica e ao poder imperial para a no resolugio o servil no Brasil. Apresentar uma solucao que contentasse a todos os en- no problema, cafeicultores, politicos conservadores, comerciantes, jovens is e pequena burguesia, entre outros, nao era a mais simples das tarefas pelas forcas em conflito. As circunstancias mostravam que a tensio au- na mesma proporcao em que as solugées de pouco efeito nao arrefeciam @imos dos escravocratas pela manuteng’o do escravismo enquanto base da agroexportadora. Para alguns politicos, pequena burguesia industrial e res estrangeiros, o sistema escravista impedia o desenvolvimento das for- produtivas projetadas pelo capitalismo. Todavia, qualquer atitude mais drastica ‘pee acabar com o escravismo resultaria na perda de poder, era, entio, necessario ‘=== com prudéncia para nao desgastar ainda mais a imagem do Império. Nesse sentido, a questo escravidio, em especial, demandava providéncias ‘Peiticas € no apenas ideolégicas; assim, 0 primeiro passo para romper com 0 “=ezismo do modelo de exploragao apoiado no tripé propriedade-extensiva-escra- ‘SS seria dar fim ao trabalho servil. Além disso, outras questées exigiam atengao ‘Special do poder imperial: as reivindicagées dos militares por maior espaco nas ‘Gecisdes politicas e 0 investimento de recursos financeiros nos projetos para a Smigracio e renovacio das forcas produtivas internas da nagio. ‘Na busca por equilibrar essas tendéncias conflituosas que se espraiavam pelo 25 € contornar as tenses decorrentes das oposigées ¢ embates entre os grupos, e Imperador, através do Poder Moderador, passou a substituir os homens na con- Gasi0 dos gabinetes. Esse tipo de ago visava manter a coesao politica para dar =Scaminhamento 4 questio servil. Entretanto, as agdes do Imperador desequili- Sexvam o poder da elite politica, pois, dependendo da necessidade de apresentar selugSes aos problemas politicos, ora o Imperador nomeava para assumir os ga- Sinetes os representantes do partido conservador, ora reconduzia aos cargos nos binetes € ministérios homens do partido liberal. Dessa forma, criava-se 0 equi- ‘Bbrio necessirio a sobrevivéncia das estruturas do Império e do poder que dela ‘éesivava. Embora tentativas tenham sido feitas, logo apés o fim do conflito com ‘© Paraguai em 1870, para acalmar as intengdes dos abolicionistas, o problema ‘sscravidio-aboligao ainda levaria dezoito anos para ser resolvido em definitivo. E nem todo 0 empenho do Imperador em contemporizar os animos e promo- ‘wer a negociacio politica com as elites agrarias sobre a libertagao dos escravos re- sultou no esperado: uma conciliagdo que atendesse abolicionistas ¢ antiabolicionis- tas. A pressio aumentou com a participacao da opiniao publica manifestando-se 11 Marinete Aparecida Zacharias Rudrigaet através dos jornais, panfletos, discursos, apoio as fugas dos escravos; com a criagao das sociedades de emancipagio do escravo; ¢ recusa dos militares em perseguir os escravos fugitivos. No bojo dos acontecimentos, essas atitudes acirraram ainda mais os debates e as polémicas sobre a abolig20, gerando conflitos de cariter ideo- légico e politico entre conservadores, liberais e republicanos, fossem eles intelectu- ais ou profissionais liberais “engajados na causa abolicionista” (Costa, 1998, p. 45). Pode-se dizer que essa foi a época em que os debates acalorados sobre a abo- ligdo deram a tonica a politica nas ‘iltimas décadas que restavam ao Império. Apesar de toda pressao, faltou a0 Imperador ousadia para enfrentar a elite agriria brasileira alojada na politica do pais. Mas nao faltaram propostas politicas visan— do resolver a questa. Estas partiam de trés posigoes distintas: a aboligio total ¢ imediata, a abolicio gradativa ¢ a no aboligao. Os abolicionistas mais convictos como 0s liberais radicais propunham a alforria imediata para todos os escravos; ja 0s moderados ou liberal-conservadores sugeriam um processo gradativo; a0 passo que os antiabolicionistas ou os conservadores mais convictos julgavam o trabalho escravo imprescindivel 4 produgao do café, visto que este era o astro das exportagdes,e sem escravo a industria cafeeira, na opiniao deles, nao sobreviveria’, portanto, cram radicalmente contra, No momento em que a Guerra do Paraguai termina, esse ¢ outros problemas se intensificaram no panorama sociopolitico brasileiro. Enquanto os abolicionis~ tas € no abolicionistas se esgrimavam sobre a questio servil, o poder imperial lutava para manter a coesio interna do Império fortalecendo a imagem de na- fio civilizada por meio da institucionalizagéo de diversas areas do conhecimento cientifico, técnico, artistico, histérico ¢ legal. Era de extrema importancia romper com a imagem de nago atrasada ¢ barbara. Afinal, a manutencao do escravismo enquanto base da produgao gerava barreiras ao desenvolvimento das forgas eco- némicas intrinsecas ao proceso de modernizagdo industrial. Além disso, a escra~ vidio era uma mancha a ser apagada da histéria da nagao. Portanto, buscou-se valorizar as relacdes sociais fundadas nas nodes de ordem, progresso ¢ civilizacao. Essas contradi¢des internas vividas no periodo explicitavam que a escravidio freava o processo de industrializagio, baseado na ideia de progresso cientifico € tecnolégico da produgao econémica. Este era mais um dos motivos, na visio dos abolicionistas, para erradicar definitivamente o escravismo como sistema produ- tivo do territério brasileiro. Embora uma boa parcela da e/ife politica fosse contra *Na obra Formagdo do Brasil Comtempordneo, Caio Prado Jiinior chamou a atengio para a problomatica da inoperincia da justiga c dos vinculos estreitos desta com os poderes locais. Situou, também, a falta de nexo moral que guiava as relagdes entre os homens togados do judicidrio c os membros da classe dirigente, os quais fiziam e refaziam o sentido da coloni- zagdo em conformidade com seus interesses politicos ¢ econdmicos, Ver: Caio Prado Junior. ‘Formagao do Brasil contemporinea. 16. ed. Sic Paulo: Brasilicnse, 1979. 12 Criminalidde Relayces de Poder ems Mato Grosso (1870-1910) a aboligao, sobretudo aqueles do sul do pais, Sio Paulo e Minas Gerais, outros como “os politicos do norte foram muito mais flexiveis nesta questio” (Carvalho, 2006, p. 223). Durante o século XIX, a escravidao fora a base da acumulagao de capitais ©, consequentemente, da riqueza individual. Assim, para o proprietario sural, perder a mio de obra escrava significava perda do capital investido e de hucros futuros. Prescindir da mio de obra escrava, na visio dos fazendeiros, com- prometia as bases de sustentabilidade da economia brasileira, impelindo muitos cafeicultores 4 falénci aumento da criminalidade, ja que na concepgao das elites os “negros africanos” no possuiam inteliggncia suficiente para lidar com a liberdade (Costa, 1998, p. 38), 0 que, por certo, os predispunha a cometerem atos irracionais ¢ violentos. Essa visio cerceava os libertos de todos os direitos individuais, visto que para a grande maioria dos ex-escravos 0 acesso a cidadania estava vetado pelo analfabe- tismo, condi¢&o econdmica e social. . Além disso, a aboligao da massa eserava representava 0 Duas tentativas para minimizar o problema escravista ¢ preparar o terreno para a abolicio foram feitas pelo poder imperial: a aprovagao da Lei do Ventre Livre (1871) ¢ a Lei do Sexagenario (1885). A primeira libertava os filhos de es- ctavos nascidos a partir daquela data, a outra libertava os escravos com mais de sessenta anos. Ambas as medidas apenas relativizaram o problema, pois o mesmo parecia inconciliével logo apés o fim do conflito com o Paraguai. Pode-se afirmar que a palavra de ordem no jogo politico posto em pritica pelo poder imperial, nesse periodo, foi a de dar prolongamento ao processo de conciliagao entre dife- rentes tendéncias politicas ¢ interesses econdmicos. Nesse sentido, a historiografia mostrou que o Imperador buscava contentar ambos os participes no jogo politico: os anticscravistas ¢ os escravistas por meio de medidas conciliatérias que acomodassem os diferentes grupos que lutavam pela questio servil, e também os militares descontentes com as atitudes de des- caso para com 0 exército brasileiro. Alias, esse foi também um dos motives que levaram as forcas militares a se aproximarem dos grupos que lutavam pela aboli- do e daqueles “setores mais radicais do republicanismo” (Ibidem, p. 300). Esses conflitos traduziam 0 panorama sociopolitico vivido entre os parlamentares e os grupos no Império brasileiro. No momento em que a Grande Guerra terminou, os abolicionistas ¢ os milita- res come¢aram a pressionar por efetivas mudangas na estrutura politica e na econo- mia interna ¢ externa da nagio. Como constatou Wilma Peres Costa (1996, p. 302): As raizes da incompatibilidade dos militares com o sistema parlamentarista do Império estao também na Guerra da Triplice Alianga e na forma como a dindmica cla guerra levou 2 coalizdio entre a racionalidade exigida pelas decisis © as priticas politicas partidarias. 13 Marinele Aparccida Zacharias Rodrigues O fato € que além das questitinculas internas vividas no pais, também o pa- dro de comportamento socioeconémico produzido pelo progresso industrial nos paises da Europa e nos Estados Unidos da América influenciava as demandas para a construcao de uma sociedade moderna. E nesse contexto sociopolitico que os representantes de uma burguesia em ascensio almejavam o fim da escravidao e 0 crescimento industrial do pais. Contudo, antes era preciso romper com as amarras criadas pelo sistema escravista ¢ pela centralizagao das decisées politicas legitimadas pela aprovag3o do monarca através do Poder Moderador: prerrogati- va de d. Pedro IL. Fato € que as transformacées politicas, juridicas, econdmicas c culturais que ocorriam no mundo “civilizado”, Europa e EUA, atingiam, directa ou indiretamen- te, com maior ou menor intensidade os homens vinculados ao poder imperial; os recém-formados pelas academias de dircito; os militares; os poctas; os literatos e jornalistas; entre outros, os quais ao assimilarem as novas ideias e ideologias, acreditavam em mudangas sem comprometer a base do antigo sistema agrario assentado na monocultura € nos latifiindios, no poder de mando dos chefes locais ena politica de privilégios. As nogées do liberalismo econdmico ¢ sociolégico, darwinismo social, positi- vismo, formalismo legalista, federalismo e republicanismo influiam sobre os gru- pos de forma diferenciada, impelindo as disputas e os debates na arena politica a respcito da aboligdo ¢ da questao do Poder Moderador, enquanto poder decisério do Imperador, De acordo com José Murilo de Carvalho (2006, p. 412), esse poder funcionava como instrumento de arbitragem nos periodos das eleicdes, sobretudo “nas condicées brasileiras da época”. Mas era também através do Poder modera- dor que d. Pedro II atendia aos pedidos de minimizagao das penas ou extingao de processos-crime: prerrogativa derivada de seu poder de monarca. Esse quadro demonstrava que os diferentes problemas sociais ganhavam no- vos contornos politicos e nao raro eram distorcidos em prol da politica de inte- resses, gerando conflitos entre os grupos da e/ife e aqueles que lutavam para estar préximos ao poder do Estado (Cancelli, 2001, p. 14-15). Tais lutas mostravam as contradiges geradas pelas nogées e conceitos provenientes das diversas correntes doutrinarias c ideolégicas, o que contribuiu para refazer ¢ reforgar a interdepen- déncia individual e intergrupal, ajustando as posturas sociais e as agbes politicas, os procedimentos judiciais ¢ os comportamentos cotidianos de homens ¢ mulhe- res como partes constitutivas nas responsabilidades sociojuridicas e na construgao da nagio brasileira, quest6es presentes nos processos criminais ¢ relatérios oficiais analisados neste estudo. Ressaltamos que para compreender as interag6es sociais no Império do Brasil foi necessirio dimensionar os aspectos politicos e juridicos, como também os eco- nomicos ¢ culturais. Posto que a conjungao dessas dimensdcs no desdobramento 14 Criminatidade ¢ Relagiex de Pader em Mato Grosso (1870-1910} lutas pelo equilibrio e manutengdo de privilégios e cargos ptiblicos alterou erminados costumes ¢ influiu na divisio das forcas produtivas, sobretudo da- les expropriados de poder politico, econdmico ¢ social. O que, por sua vez, terferiu nos comportamentos cotidianos € no pensamento, logo agindo sobre a personalidade, a visio de mundo de individuos e grupos sociais, como no caso dos indigenas, imigrantes paraguaios, portugueses, bolivianos, italianos, etc, que se instalaram em Mato Grosso apés o fim da guerra com o Paraguai. | Assim, as lutas por espagos de sociabilidade © oportunidades reafirmavam © avanco do processo civilizador, o qual desenvolvia de forma continua o entre- fscamento das atividades humanas com as novas formas de poder revelando os conflitos individuais e grupais. Sabe-se que tanto as divergéncias de interesses € as soncorréncias aos cargos ptblicos quanto 0 apossamento de terras e as atividades eomerciais refaziam a dinamica das forgas contraditérias, atuando como alavanca 4 modelagao de condutas e emogées, tanto quanto os instrumentos monopolistas do controle social colocado em pritica pelo Estado moderno (Elias, 1993, p. 272). Esse processo de mudangas e adaptagdes nao foi homogénco ¢ simultinco. Em cada regio do Império, ele teve suas especificidades politicas, juridicas, eco- némicas e culturais. Mesmo nas regides proximas geograficamente, a diversidade cultural, étnica ¢ religiosa e as especificidades politicas, juridicas € intelectuais propiciaram construgdes historicas bastante singulares. As guerras, as revolu- ges e os movimentos sociais, desencadeados na Europa, também contribuiram para modificar as concepgdes que homens ¢ mulheres faziam do mundo social na maior parte das socicdades em processo de desenvolvimento. Nessa fase, na América Latina, os paises jd independentes procuraram no limite de suas forgas militares, politicas ¢ econémicas desenvolver o crescimento interno através de medidas socioeconémicas e de polfticas de insergio ao mercado internacional (Cervo; Bueno, 1992, p. 113), questes que marcaram o proceso de construgio ¢ afirmaao dos Estados nacionais. Esse periodo ficou, portanto, caracterizado pela busca do livre comércio, do monopélio de tributacao alfandegiria, da delimitagao das fronteiras administrativas e da hegemonia politica na bacia Platina, fatores contributivos para a deflagracio da mais longa guerra envolvendo o Império bra- sileiro e a Repiiblica do Paraguai, Argentina ¢ Uruguai. O conflito Guerra do Paraguai, ja registrado aqui, representou a correlacio de forcas envolvendo os Estados latino-americanos no momento de consolidagao de suas fronteiras ¢ so- beranias territoriais. AA historiografia contemporanea tem apresentado novas abordagens sobre a questio da Guerra do Paraguai e suas consequéncias para as regides € as institui- g6es nacionais envolvidas diretamente no conflito, como, por exemplo, a proble- mitica do Exército Brasileiro, que desde a colonizagio foi visto com desconfianca pelos poderes locais. Essa hipstese é vidvel considerando que a permanéncia das i5 Marinets Aparecida Zacharias Rodrigues elites agraxia € politica no poder foi sustentada pela Guarda Nacional, ¢ nio pelas forgas armadas do Exército. Haja vista que a principal fungao da Guarda Na- cional, a partir de 1850, era cleitoreira, assim, paulatinamente, ela se tornou um instrumento de cardter clientelista e coercitivo. Na visio de Costa (1996, p. 61), a Guarda Nacional foi uma milicia civil, cria~ da cm 1831 para exercer com autoridade a ordem publica. Mas, com o tempo, se transformou em mecanismo de mando c poder dos chefes dos potentados locais, os quais interferiam na justiga, na policia e na administragao das provincias, so- bretudo nos periodos de eleigao e nas decisdes judiciais. Composta por “fazendeiros, comerciantes € capitalistas [...],de 1831 2 1873,a Guarda Nacional tinha a seu cargo quase todo 0 policiamento local além de cons- tituir poderoso instrumento de controle da populacao livre ¢ pobre pelos chefes locais” (Carvalho, 2006, p. 158). Constituicao bastante diversa daquela do exército que contava com elementos das camadas inferiores da sociedade, mormente no periodo anterior 4 guerra com o Paraguai. Com a renovacio nas pesquisis, na década de 60 do século XX, a historio- grafia rompeu com a visio maniqueista que até entio se tinha da guerra? ¢ dos problemas politicos, diplomaticos, econémicos, demograficos ¢ culturais gerados pelo conflito. Historiadores, socidlogos, cientistas politicos, antropdlogos, entre outros, a0 renovarem os objetos de pesquisas e inovarem as metodologias, desve- laram o universo encoberto pelas imagens de primeiro plano, ou seja, no somente a historia dos grandes generais, mas também dos soldados, dos indios negros, das mulheres e criancas, das vitimas e dos algozes, enfim, uma historia em que vida e morte entrelacgaram-se as relagdes socioculturais. Além disso, outros estudos contemplando as relagdes politicas* entre as di- ferentes forgas agindo no panorama latino-americano, nesse periodo, demons- traram a “dificuldade de convivio continental de uma monarquia escravista entre republicas de trabalho livre e essa dificuldade seria vivida de forma intensa na regiao de fronteira viva e aberta [...|” (Costa, 1996, p. 84), conforme era 0 caso de Mato Grosso, mais especificamente o sul dessa regitio. “Entre outras publicagdes c trabalhos cientificos ver: Doratioro, Maldita Guerra: nova histéria da Guerra do Paraguai. Dourado, Muteres comuns, senhoras respeitéveis: a presenga feminina na Guerra do Paraguai *Réne Rémond afirmou que a renovagio da histéria politica ocorrida a partir de 1970 trouxe novos procedimentos tedrico-metodolégicos ¢ langou uma nova visio sobre o estudo do palttico como sendo também o estudo das relagdes de poder. Esta mudanea possibilitou voltar o “interesse paris uma plura- lidade de ritmos em que se combinam o instantineo € o extremamente lento”. Rémond constatou que foram dois os farores a in‘luiram na tenovagao da histéria politica: os exdgenos e as conivéncias internas, elementos influenciando de modo direto e indireto nas relagoes sociais. Ver Réne Rémond(ong). Por uma istoria politica Trad. Dora Rocha. Rio de Janciro: Fd. UFRJ, 1996, p. 7. 16 Criminalidade ¢ Relasies de Poder em Mato Grosso (1870-1910) Duas questdes relacionadas ao quadro histérico apresentado até aqui justi- Sxaram o recorte cronoldgico de 1870 a 1910 para esta obra. A primeira esta - @iretamente vinculada a Guerra do Paraguai. Mais do que as explicagées que bbescaram justificar o desenvolvimento econdmico na provincia de Mato Grosso, trminado o conflito, € preciso considerar que as interag6es socioculturais combi- madas as expectativas de crescimento econémico e demografico para Mato Gros- so serviram de lastros aos novos projetos politicos contemplados pela economia bocal. Objetivos que sé foram totalmente atingidos no século XX, mais especifica- mente a partir de 1910, quando, entio, a economia regional alcancou significativo erescimento no comércio interno e externo, via rio Paraguai. Outro indicador das mudangas na década de 1910 foi o aumento progressivo da populagao, o que consequentemente contribuiu para a fundagio de novas vilas, bem como para 0 desenvolvimento de antigos nucleos urbanos, ampliando-se o ntimero de comar- ~ eas, sobretudono sul de Mato Grosso. Os dados demogrificos coletados na documentagao, relatérios oficiais e narra- tivas de memorialistas, apontam que, a partir de 1910, com o surgimento das novas comarcas, aumento nas importagées/exportagées ¢ arrecadagao de imposto, a ten- déncia foi a de intensificar a hierarquizacdo nas fungées sociais em Mato Grosso. Entretanto, essas transformag6es no se sucederam sem intensos conflitos, confor- me constatou Lucia Salsa Correa (1999, p. 205): “a sociedade que se forjou nesse processo de povoamento da fronteira Sul de Mato Grosso adquiriu as marcas da contravencao e da violéncia” ao longo do seu processo sécio-histérico. A segunda questo entrelacada 4 primeira esteve relacionada ao contexto na- sional. O ano de 1870, segundo alguns historiadores, marcou o surgimento de novas forgas politicas no panorama brasileiro. Os novos grupos buscavam por oportunidades de ascensao social e participagao na politica dos governos local e central. Embora divergissem a respeito das questdes politicas os mais liberais objetivavam a federagao ¢ a repiblica. Data desse perfodo 0 surgimento do Partido Republican, que agregava em seus quadros muitos dos bacharéis, poetas, escritores, professores ¢ militares que iutavam pela aboligao c pelo republicanismo (Penna, 2001, p.27), ideais estes pre~ sentes no Manifesto Republicano de 1870, 0 qual também defendia a adogao do federalismo, isto é, a autonomia provincial. Os grupos que dividiam as mesmas intengdes também pleiteavam acesso aos direitos politicos € as liberdades indivi- duais. Entretanto, essas reivindicacdes nao se pautavam pela ideia de um governo representativo ou dircito individual dos cidadaos, mas, antes, num “governo a servico dos seus interesses” (Carvalho, 2006, p. 208). Por isso buscavam fortalecer a autonomia dos governos locais, pois esta, na visio deles, seria a melhor forma de exercer o poder politico ¢ econémico nos governos estaduais. 17 Marinete Aparecda Zacharias Rodrigues ‘Também fazia parte dos projetos imperiais a definigao das fronteiras juridicas com os paises vizinhos, questio ainda nao de toda solucionada com 0 término dos combates entre a Triplice Alianca (Brasil, Argentina e Uruguai) e a Repiblica do Paraguai. O findar do conflito, em 1870, nao eliminou os interesses ambiva- lentes que continuavam a existir entre os dois aliados: Brasil ¢ Argentina. Esta Wtima continuava com a pretensao de anexar o Chaco paraguaio ao seu territério (Cervo; Bueno, 1992, p. 119). Buscando, entio, dar uma resolucao ao impasse, 0 Império brasileiro assumiu as orientacSes da politica interna do Paraguai para salvaguardar as instituigdes daquele Estado ¢ o poder politico dos presidentes que assumiram 0 governo findo o conflito. Tal atitude possibilitou ao poder imperial controlar os acordos necessdrios a manutencio da paz e da ordem no estuario platino, assinando nos anos seguintes tratados ¢ acordos “amigaveis” com os paises vizinhos, Paraguai ¢ Bolivia (Ibidem, p. 121). Duas problemiticas de natureza juridica se resolveram com o'Tratado de Paz assinado em 1872: a delimitag’o das fronteiras administrativas entre o Brasil co Paraguai ea abertura da livre navegagio no rio Paraguai, o que, para Mato Grosso, significou acesso direto ao mercado capitalista nacional e internacional. Assim, 0 comércio dos produtos importados e exportados se realizava através dos rios da bacia Platina, intensificando o processo de imigragio ¢ a ocupacio da regio mato-grossense, no periodo que se seguiu ao fim do conflito bélico com a nacido paraguaia. Convém lembrar que, no aspecto politico, o Império brasileiro, ao fim do conflito, adquiriu a hegemonia politica na bacia Platina, tendo em vista o seu poderio militar. A resolugao dessas questdes fortaleceu a unidade territorial bra~ sileira ¢ contribuiu para legitimar a politica externa imperial frente as nagdes Jatinas (Ibidem, p. 123). A legitimaso, a soberania territorial ¢ a consolidacio dos Estados nacionais foram determinantes nas lutas pelo poder na Bacia do Prata. Assim, resolvidos os impasses politicos ¢ amenizada as tensdes fronteirigas, principalmente com a Argentina, o governo imperial buscou consolidar o poder do Estado imperial, controlando as forgas politicas internas através de negociacées e regulagio das forgas sociais. Visava, sobretudo, naquele momento, equilibrar os interesses da elite agraria com as reivindicagdes postuladas pelos novos grupos que emergiam na vida politica da nagio. Grupos esses que cm diversas oportunidades procura- ram manifestar as intengdes de solucionar o mais antigo dos problemas internos: a aboligo da escravatura. Pode-se dizer que vozes discordantes, desde a década de 1860, chamavam a atencio para o “cancro” que era a manutencio do sistema escravista. Mas, para extingui-lo, era preciso romper com as barreiras politicas dos conservadores radi- cais que se opunham a substituigdo da mao de obra escrava pelo colono estran- 18 Criminalidade ¢ Relagées de Peder em Mato (rosso (1870-1910) geiro. Questao que demandou muitos debates ¢ agées politicas entre os politicos, o Estado e os proprietarios rur: Embora houvesse convergéncia de objetivos entre os grupos comprometidos com a nova ordem social ¢ os membros da elite politica do Império, a questéo também chegava até a opinido publica, que pressionava os conservadores por uma participacio mais efetiva nas decisdes politicas e econémicas da nago (Uricoe- chea, 1978, p. 108). Entretanto, é preciso ponderar que esses grupos lutavam por objetivos especificos aos seus interesses e regides. Apesar de contraditérios, tais gtupos caminhavam juntos ¢ a0 mesmo tempo separados, cada um lutando por oportunidades surgidas dos conflitos inerentes as posigdes privilegiadas. Assim, a contradigao mantinha a interdependéncia entre os grupos e 0 poder central. Quanto mais tensées produzidas por interesses conflitantes, mais os grupos sc esgrimavam para estar proximos ao poder e as oportunidades que dele derivavam, Nesse sentido, podemos auferir dos ideais republicanos: a intensificagio das campanhas abolicionistas; a politica de mao de obra ¢ de terras; a questao mi- litar, passando pela constituigéo do Partido Republicano em diferentes espagos geograficos. Os mais convictos ansiavam pela descentralizagao do poder, o qual dotaria de mais autonomia politica, juridica ¢ cconémica as provincias e munici- pis, mas também reivindicavam maior controle da criminalidade e a ampliagio do direito ao voto. Contudo, nem todos os anos que restavam ao Império deram conta de resolver as complexas questdes que se apresentavam (Ibidem, p. 113) Relacionado a estes fatores havia também quem solicitasse, ha tempos, que os recursos obtidos com os impostos permanecessem nas provincias de origem, deixando de screm remetida 4 Corte, sobretudo naquelas onde a economia de- monstrava estar em “uma nova fase expansiva do ciclo de acumulagio” (Cardoso, 1977, p. 18). A criacao de politicas destinadas a adocao de maquinismos para beneficiamento do café, a promogao da industrializagao, a liberagdo de incentivos aimigracao para substituir a mao de obra escrava e a implementagio de estradas em todo 0 territério nacional complementavam 0 quadro dos intercsses econdmi- cos de investidores, fazendeiros e politicos. Nessa dinamica, por conseguinte, tornava-se urgente sistematizar a legislago ¢ dotar o Estado imperial de um corpo juridico-administrativo encarregado de arrecadar e fiscalizar os tributos, pois, como afirmava d. Pedro T em a Fala do Trono de 3 de maio de 1828: “sem finangas e sem justiga nao pode existir nagio” (apud Picrangelli, 1983, p. 94). Mas para se atingir resultados positivos, foi pre- ciso manter as estruturas de poder mediante a legitimagio do centralismo admi- nistrativo, politico ¢ do judicidrio, mecanismo que possibilitou a distribuigio de poderes e a negociacio de privilégios. Na realidade, a organizagio do sistema governativo do Império tinha por principio legal a Constituigao do Império do Brasil, homologada em 1824 € mo- 19 Marinete Aparecida Zacharias Resrigues dificada pelo Ato Adicional de 1834. Desse primeiro Ato veio para legitimar a Constituicio ¢ ampliar as competéncias das Assembleias Provinciais para legisla- rem sobre a organizacio civil, a juridica ¢ a administrativa, o que, de certa forma, diminuiu o poder imperial e fortaleceu 0 poder local (Wolkmer, 1999, p.85-86). Reagindo & perda do poder aciministrativo sobre as provincias, o governo imperial aprovou, em 1840, a Lei de Interpretacao, reformulando a Constituigdo, a qual restringiu as competéncias ¢ autonomias das provincias, ao mesmo tempo em que institucionalizou as desigualdades socioeconémicas, concentrando ainda mais 0 poder de decisées no Poder Moderador. "Tal providéncia ancorada aos prineipios do liberalismo econdmico produzia um carter ambiguo ao texto constitucional. Desde sua homologagao, a Consti- tuigdo, vista por alguns como liberal e por outros como conservadora, refletia esse carter contraditério entre o formalismo do texto ¢ a realidade social. Antonio Carlos Wolkmer avaliou a questio comentando que: ‘A comprovacio de que o texto assumia teot liberal-conservador, expurgando tracos mais radicais ¢ democraticos, e projetando preccituagdes legais que se transformavam em meras ilusdes discursivas, era revelada quando retoricamen- te se proclamavam ¢ ao mesmo tempo anulavamn-se as liberdades, ainda, quan do asseguravam direitos [...]. (bidem, p. 85) Diante do exposto constatou-se que os trés codigos promulgados até 1870 — o Cédigo Criminal, o de Proceso Criminal de Primeira Instancia ¢ 0 Cédigo Co- mercial — nfo foram suficientes 4 resoluctio dos problemas realgados pelas novas relagdes de produgao que surgiam com a urbanizacio, industrializagio € cresci- mento da lavoura cafeeira. A falta de um Codigo Civil que respondesse as questies no Ambito da justiga civil gerava conflitos na interpretagao das Icis e nas ages per- tinentes aos direitos civis, politicos ¢ sociais dos cidadios.’* Assim, entre cddigos ¢ priticas sociais havia um fosso a ser transposto pela sociedade € aparato juridico, que na visio da populagio poderia servir como mediador dos conflitos pessoais, coletivos e piiblicos. Foi entio necessario sanar as dificuldades que advinham da fragmentagao das Ieis no tocante a distribuigio das responsabilidades ¢ grau de autoridade que competia a cada agente da burocracia juridica e administrativa. SAntonio Carlos Wolkmer analisou numa perspectiva histérica a evolucao do direito no Brasil. Sobre a problematica da criagio de um Cédigo Civil apontou que: “tendo em conta que, para a burguesia, @ orclenagao do comércio ¢ da produgao da riqueza cra mais imperinsa do que a protesto ¢ a gerantia dos direitos civil, nada mais natural do que o Cédigo Comercial preceder em 67 anos © Codigo Civil. Acom- panhando o Estatuto Comercial maior, seguiu-se, no mesmo ano, o Regulamento 737, expedido pela ‘Administragio Real que disciplinava 0 processo comercial (estendido &s causas civis) até 0 advento da Replica, ditando as linhas gerais do processo, da exccugao ¢ dos recursos cabiveis”. Wolkmer, Histéria de direito no Brasil, p. 88. 20 Criminalidade « Relagies de Pader em Mato Grosso (1870-1910) Para tanto, buscou-se regulamentar 0 campo de acio do aparato juridico e policial criando a lei n° 2033, de 20 de setembro de 1871, que entre outras inova- Bes passou para a policia a responsabilidade na condugao do inquérito policial, quando da dentincia de um crime. Se a lei aprovada agradou aos jufzes, desagra- dou aos delegados, pois na visio deles a lei nao discernia com clareza 0 grau de autoridade entre a policia ¢ 0 judiciario. Apesar da relutancia e das confisées na imterpretacao sobre a nova lei, para o Estado tornava-se de extrema importan impor limites de acdo aos agentes que exerciam fungoes juridicas ¢ de policia, pois s6 assim seria possivel controlar as relagdes politicas e o poder de mando dos coronéis no ambito jurisdicional. Embora fosse do interesse do poder imperial promover a organizacao politica, juridica ¢ administrativa no interior das instituicdes do Império, com © fato de preservar as relagdes politicas ¢ econdmicas com 0 mercado mundial, as mudan- 25 propostas 86 ocorreram de forma lenta ¢ cheia de percalgos. Mesmo quan- do aconteceram continuou-se privilegiando os interesses da elite agraria do pats, mesmo apds a mudanga de Monarquia para Repablica essa estrutura continuou a prevalecer. Assim, quando operamos com a nogio de Estado, nio estamos considerando- -o totalmente inoperante ou dotado de todas as prerrogativas no exercicio do poder. Ao contrario, o Estado buscou na luta constante com as forgas antag6nicas enraizadas no poder determinar seu campo de acio e ao fazé-lo reivindicou para si todas as formas de monopélio politico, juridico, econdmico, tributario, cien- tifico, cultural € simbélico. Dessa forma, constituiu-se no lécus privilegiado do chamado a ordem e daquelas representagées estabelecidas pelas relacdes de poder, como, por exemplo, o Poder Moderador. A partir das décadas de 60 e 70 do século XX, a historiografia nacional e internacional chamava a atengfo para a polissemia e a ambiguidade do termo poder. Para alguns, 0 poder se encarnava no Estado, para outros na sociedade Para os primeiros, o Estado decidia, escolhia, mandava e colocava em pratica todas as ages que Ihe aprouvesse, sem que nada obstasse suas decisdes e agdes. Para os segundos, a sociedade direcionava seus interesses prioritérios em fungio da coletividade, sern que 0 individuo, enquanto parte, pudesse opor-se as decisdes ¢ agdes do todo. Desa forma, 0 poder tanto era uma forga pairando acima das relagées entre individuos, grupos, sociedade ¢ Estado, transformagdes socioecondmicas (Rémond, 1996, p. 36). Rompendo com os paradigmas tradicionais centrados nesse tipo de viés ex- plicativo, os historiadores, socidlogos, cientistas politicos, entre outros, trouxeram para o primeiro plano a questio do poder dos individuos e suas relagdes sociais como agentes histéricos transformadores da cultura, da politica, da economia. Enfim, daqueles que consciente ou inconscientemente pressionavam no campo omo 0 préprio agente das 21 Marincte Aparceida Zacharias Rodrigues de lutas as fronteiras sociais em busca de solugées aos problemas cotidianos sur- gidos na interagio com os diferentes grupos politicos de contato, com © aparato da justica, na produgao econémica e encontros culturais, num dado momento, em. sociedades especificas (Lara; Mendonca, 2006, p.18). Dentro do quadro explicativo proposto por essa historiografia que utilize’ em diferentes momentos neste livro, 0 conceito de poder simbélico elaborado por Pierre Bourdieu (2003, p. 15) serviu aos objetivos de se estudar a criminalidade e as relagdes de poder em Mato Grosso, de 1870 a 1910. Bourdieu (1996, p. 12-14) coneebeu 0 poder como uma conjungao de miilti- plos poderes, quer dizcr, uma forga constituida por aces € efeitos, cuja luta pela apropriacao e concentragao de mais capital produz interagdes sociais de conflito, conformagao, concorréncia ¢ interdependéncia entre os grupos ¢ os individuos que o formavam. O poder é entendido, entao, como um campo de lutas entre os agentes, concebido como conhecimento adquirido sobre determinado contetido e acio, voltados 4 concentracao da forga fisica; dos instruments de coer¢ao; da do- minagao e conhecimento do aparato juridico; dos meios de produgio econdmica, da ideologia e da representacao politica, cultural e simbélica de um determinado grupo ou camada social sobre os demais. Desse modo, o Estado, por sua capacidade de concentragdo de forgas, era dotado de um poder especifico, influenciador na construcao de diferentes repre- sentacées do mundo social. Tal predominio sobre as demais formas de poder permitiu ao Estado exercer a violéncia fisica ¢ simbélica, encarnadas “tanto na objetividade, sob a forma de estruturas e de mecanismo especificos, quanto na ‘subjetividade’ ou, se quisermos, nas mentes, sob a forma de estruturas mentais, de esquemas de percepgio ¢ de pensamentos” (Ibidem, p. 97-98). Essas nogées serviram para entender a posi¢o do Estado, a consolidagao do poder € as relagdes do aparato juridico com homens ¢ mulheres envolvidos em crimes e, consequentemente, com a criminalidade, no sentido mais abrangente do fendmeno, em Mato Grosso. Seja enunciado o poder em sua forma simbélica ou institucional, local ou central, as faces desse poder aparecem entrelagadas as relagdes de interdependéncia entre os grupos da elite, camada intermediaria, os homens livres pobres ¢ os representantes oficiais do poder local e central. Refletindo a partir desse contexto compreendi que 0 campo juridico consti- tuiu-se como o mais proficuo na regulaco dos comportamentos ¢ resolugao dos conflitos, justamente por ser dotado de capital especifico, j4 que dominava, en- quanto instituigdio com mais autonomia, os mecanismos funcionais na imposi¢io da ordem através dos princfpios do Direito. Foi, portanto, a partir do exercicio continuo da competéncia juridica que se estabeleceu a adequacio dos compor- tamentos em conformidade com as representagées de mundo civilizado (Idem, 2003, p.211). Condigao que excluia os homens livres pobres, escravos, prostitutas, 22 Criminatidade ¢ Relayies de Poder em Mato Grosso (1870-1910) hhomossexuais, epiléticos, entre outros, enfim, todos aqueles que nao se encaixa~ wam aos padres de comportamento social almejados pelo projeto da ordem. Embora os campos politicos ¢ juridicos se interpenetrassem no dia a dia, as Saengdes politicas se distinguem das juridicas, sobretudo, porque a ordem juridica za constantemente reafirmada por meio dos principios de neutralidade ¢ auto~ momia, presentes no direito ¢ nas atividades judiciais. Nesse sentido, a nogao de poder elaborada por Bourdieu (2003, p. 232) per- mitiu repensar as zonas fronteiricas nas relagdes do campo juridico com 0 politico em face da participago direta ou indireta daqueles homens e mulheres presentes mos processos criminais como vitimas réus/rés ou testemunhas. A partir da andlise dos relatérios oficiais emitidos pelos governantes de Mato Grosso observei que as aces politicas ¢ as atividades econdmicas eram regidas por preceitos liberais © conservadores. ja sobre o judiciario incidiram novas nogées oriundas da antro- pologia, sociologia criminal, medicina Jegal e psiquiatria. Eram ideias influindo ma interpretacio das leis e na investiga¢io dos comportamentos de criminosos ¢ smo criminosos. Complementando esse contexto, convém lembrar que por essa época as dou- trinas filoséficas misturadas 4 antropologia, sociologia criminal, medicina legal, psiquiatria e criminologia, influenciavam as concepcdes de crime € criminoso, fazendo avangar o sentido da individualizacao e criminalizagao do ato delinquen- te. Nesse sentido, os juristas especulavam o lugar do sujeito na divisio social, intensificando os debates sobre os reflexos biopsicolégicos nas atitudes e com- portamento dos criminosos, loucos, alcodlatras, epiléticos ¢ todos os desajustados socialmente (Cancelli, 2001, p. 28-31). Posturas que serviram para classificar os individuos como normais ou anormais. Para alguns jurisconsultos de fin de siécle haveria dois tipos de crimes: os cri- mes cometidos por atavismo e os crimes comctidos por evolucio. O primeiro correspondia aos homicidios, roubos e estupros, sobretudo aqucles com alto grau de violéncia, enquanto que os segundo perfaziam os furtos, as tentativas de homi cidio e as agress6es fisicas, estando relacionados a asticia, ao incidental € ao ato involuntario, portadores de um menor grau de violéncia (Ibidem, p. 41). Numa perspectiva distinta, Enrico Ferri (2003, p. 99) apontava que dentre os varios ramos da ciéncia penal € sociologia criminal algumas ciéncias se in- cumbiam do estudo cientifico do crime como fato individual, outras, no entanto, como fato social. Assim, buscavam, cada um dos campos do conhecimento a seu modo, sistematizar a defesa social preventiva, ao mesmo tempo em que reforga- vam a ideia de aco repressiva ao criminoso. Embora Ferri tenha sido bastante enfatico na defesa do organismo social con- tra a violéncia perpetrada pelos criminosos, sua postura ¢ afirmativas, em alguns momentos, cram chibias e incertas. Essa ambiguidade demonstrava que a questio da violéncia no era um problema exclusivo de juristas, advogados, médicos, ju- 23 Marinete Aparevida Zacharias Rodrigues risconsultos, socidlogos, antropélogos, fildsofos ¢ bidlogos, cla permeava o todo social. A dubiedade da teoria transparecia em situagdes envolvendo a magistratu- ra, advogados ¢ a prépria legislagao, ora se afirmava os preceitos filoséfico-jurtdicas sistematizados pela Escola Classica Criminal, ora admitiam-se as prescrigées co- locadas pela Escola Positiva cujo método cientifico subsidiado pela teoria “poli- tico-social visava restabelecer o equilibrio entre os direitos do individuo ¢ os do Fstado”, os quais interferiam na vida cotidiana de homens e mulheres. Foi, entZo, que 0 campo juridico sistematizou seus procedimentos visando a prevencio social e a repressio ao criminoso ¢ a criminalidade através das penas, execucio das sentengas, na elaboracio, interpretagio € aplicagao das leis mais ade- quadas 4 sociedade brasileira,conforme veremos nas andlises dos processos-crime. No texto do Cédigo Penal de 1890 verifica-se o quanto a Escola Positiva in- fluenciou nos procedimentos judiciais, cujos tragos enunciam as lutas para impor a criminalizacao individual sob a tica das teorias antropolégicas, medicina legal e psiquiatria, “A introducao da Escola Positiva no século XIX, por isso, marca uma ruptura. Além do carater individual do criminoso, ela surgiu com a convicgio de seu cariter sociolégico” (Cancelli, 2001, p. 33). Em Mato Grosso, como no restante do pais, aos problemas da Justiga j4 enu- merados, se somavam também as praticas de mandonismo, coronelismo e clien- telismo, fundados no poder dos proprietdrios rurais ¢ comerciantes. Essas proble- maticas permearam todo o processo das relagées politicas, juridicas ¢ economicas durante as ultimas décadas do século XIX ¢ inicio do XX °, caracteristicas que acentuaram os problemas socioecondmicos no pés-Guesra do Paraguai, em terras mato-grossenses. Convém lembrar que se por um lado, a provincia de Mato Gros- so registrou altas cotas de perdas humanas e danos materiais causados pelo longo periodo de guerra, por outro, a mesma guerra deixou explicita a condigao de regio despovoada e desprotegida, sobretudo, pela amplidio de suas fronteiras abertas. ‘A partir do fim do confiito, em 1870, com as novas perspectivas econémicas, politicas ¢ sociais alterou-se a din’mica nas relacdes socioecondmicas vividas desde © periodo da colonizagao até o inicio de conflite armado. Relagées estas pautadas por lutas entre os grupos que buscavam assegurar 0 monopélio do poder politico ¢ juridico local em estreita relacao ao projeto de consolidacao do Estado moderno. Nessa perspectiva, procurei evidenciar neste estudo que do confronto direto com os poderes do Estado, central ¢ local, o aparato juridico tentou impor sua au- tonomia e neutralidade nos procedimentos ¢ nas decis6es dos processos criminais envolvendo homens ¢ mulheres da carnada mediana, livres pobres e proprietirios Autores como Maria Isaura Percira de Queiroz, Victor Nunes Leal ¢ Caio Prado Junior, entre outros, apresentaram estes conccitos de forma distinta, mas que na pratica social se configuravam como com- plementares, No transcorrer deste estudo e tendo como respaldo a historiografia brasileira assinalamos as distingoes necessérias 4 compreensio das nogties de mandonismo, coronclismo e clientelismo, em conformidade ao recorte espacial e temporal estubelecido para o estudo em questio. 24 Criminalidadte e Relazoes de Poder ems Mato Grassa (1870-1910) de terras, escravos e comércio; além de lutar por maior concentragao de poder nas comarcas ¢ distritos jurisdicionais em Mato Grosso, adequando a distribuicae da justica aos interesses individuais ¢ coletivos, privados ¢ publicos. Busquei ainda caracterizar quais foram os mecanismos empregados pelo ju- diciério para a adequaco das leis no controle dos comportamentos sociais a0 se estabelecerem os conflitos entre individuos, grupos e instituigdes de poder. A partir do exame de trés dimensées presentes na atividade juridico-forense (a caracterizagao do crime, a legislacao especifica e a pratica do tribunal) foi possivel abordar de forma critica como a normalizacZo da ordem se traduz na eficécia da lei através dos procedimentos subjetivos do Judicidrio quando este era con- frontado com as necessidades de determinagao ¢ defesa dos interesscs politicos econémicos dos potentados locais ¢ os costumes c praticas dos setores populares em uma socicdade de fronteira, a qual institucionalizou as hierarquias sociais ¢ promoveu o controle sobre o cotidiano popular, na economicamente “inexpressi- va Provincia de Mato Grosso, mais especificamente na fronteira sul da regiao, no periodo de 1870 a 1910. O recorte regional serviu para verticalizar 0 conhecimento das relacées sociais que 08 grupos intermediarios e os livres pobres mantiveram com os poderes lo- cais e via indireta com o poder central. E a partir dos referencias epistemoldgicos produzidos pela historiografia nacional que discutimos a problematica da cti- minalidade ¢ das relagdes de poder ao sul de Mato Grosso, questio ainda pouco investigada pelos historiadores regionais. A tematica da criminalidade ¢ do crime vinculada as relagdes de poder con- figura-se com mais complexidade ao atentarmos para a especificidade da locali- zagio de Mato Grosso como uma regiio de fronteira. Dada essa caracteristica geografica, torna-se relevante pontuar o entrelacamento de culturas no convivio contidiano6*. Assim, culturas como a indigena, portuguesa, paraguaia, boliviana, _ africana, entre outras, sio contributivas para a mescla da cultura presente nos comportamentos sociais ¢ nas relagdes entre os envolvidos em crimes como réus/ és, vitimas e testemunhas. Buscou-se demonstrar que, como parte constitutiva dessa conjuntura social, a criminalidade ¢ © crime colocavam em xeque 0 papel do judiciétio, o qual foi ~ empregado para legitimar o poder do grupo dominante ¢ 0 controle dos compor- ., SW conceito de cultura ¢ extremamente escorregadio ¢ difuso, Para procisar v que seja uma determinada * eeiuca os historiadores mais concvituados recomendam certus cuidados com as generalizacies no em- fperge deste conceito, Nese sentido,a cultura pode ser vista como sistema de atitudes, valores, costumes © tradigdes, contudo como pontuou E. P. Thompson, “uma cultura é também um conjunto de diferentes em que hé sempre uma troca entre o escrito ¢ 9 oral, o dominante e o cubordinado, a aldeia e ‘amctropole; ¢ uma arena de clementos conflitivos, que somente sob pressio imperiosa — por exemplo, macionalismo, a conscigncia de classe ow a ortodoxia religiosa predominante ~ assume a forma de um ©. Ver Thompson, Costumes ent comum: estudos sobre a cultura popular tradicional, p. 17. 25 Criminalidade ¢ Relagies de Poder em Mate Grosso (1870-1910) de terras, escrayos e comércio; além de lutar por maior concentragio de poder nas comarcas ¢ distritos jurisdicionais em Mato Grosso, adequando a distribuicio da justiga aos interesses individuais e coletivos, privados e publicos. Busquei ainda caracterizar quais foram os mecanismos empregados pelo ju- diciério para a adequagao das leis no controle dos comportamentos sociais a0 se estabelecerem os conflitos entre individuos, grupos e instituigdes de poder. A partir do exame de trés dimens6es presentes na atividade juridico-forense (a caracterizacio do crime, a legisligao especifica e a pritica do tribunal) foi possivel abordar de forma critica como a normalizacio da ordem se traduz na eficdcia da lei através dos procedimentos subjetivos do Judicidrio quando este era con- frontado com as necessidades de determinagao ¢ defesa dos interesses politicos econémicos dos potentados locais e os costumes € praticas dos setores populares em _uma sociedade de fronteira, a qual institucionalizou as hierarquias sociais e Promoveu o controle sobre 0 cotidiano popular, na economicamente “imexpressi- va’ Provincia de Mato Grosso, mais especificamente na fronteira sul da regiao, no perfodo de 1870 a 1910 O recorte regional serviu para verticalizar o conhecimento das rel ages sociais ue 08 grupos intermediatios ¢ os livres pobres mantiveram com os poderes lo- cais € via indireta com o poder central. [5 a partir dos referencias cpistemoldgicos produzidos pela historiografia nacional que discutimos a problemdtica da cri tninalidade e das relagdes de poder ao sul de Mato Grosso, questio ainda pouco investigada pelos historiadores regionais, A tematica da criminalidade ¢ do crime vinculada as relagées de poder con- figura-se com mais complexidade 20 atentarmos para a especificidade da local. zagio de Mato Grosso como uma regido de fronteira. Dada essa caracteristica geognifica, torna-se relevante pontuar o entrelagamento de culturas no convivio contidiano6*, Assim, culturas como a indigena, portuguesa, paraguaia, boliviana, africana, entre outras, sio contributivas para a mescla da cultura presente nos comportamentos sociais ¢ nas relagoes entre os envolvidos em crimes como réus/ rés, vitimas e testemunhas. Buscou-se demonstrar que, como Parte constitutiva dessa conjuntura social, 4 ctiminalidade ¢ crime colocavam em xeque o papel do judiciario, o qual foi empregado para legitimar o poder do grupo dominante € 0 controle dos compor- °O conceito de cultura € extremamente escorregadio ¢ dfuso, Para precisar o que seja uma determinada cultura os histuriadores mais ‘conccituados recomendam certos cuidados com as generalizacSes no em- Prego deste conecito, Nesse sentido, a cultura pode ser vista como sistema de atitudes, valores, costumes « tradig6es, contudo como pontuon F. P. Thompson, “uma cultura ¢ também um conjunto de diferentes Tenses, én que hi sempre uma troca entre o escrito ¢ 0 oral, o dominante e o subordlinado, aldeia e & metropele; é uma arena de elementos conflitivos, que somente sob pressao imperiosa ~ por cxemplo, © nacionalismo, a consciéncia de classe ou a ortodoxia religiosa predominante - assume a forma de um sistema”, Ver Thompson, Costumes em comurs:estudos sobre a cultura popular tradicional, p.i7. 25 Marinete Aparsvida Lachavias Rodrigues tamentos sociais. Mesmo assim, os “excluidos” do poder, os homens livres pobres, acreditavam que © aparclho da justia pudesse resolver seus conflitos ¢ pendéncias. ‘Tal crenga presente nos depoimentos processuais demonstrava que aos poucos esses homens ¢ mulheres incorporavam em sua vistio de mundo o sentido de universa- lidade ¢ igualdade inerente as normas legais, incentivando-os a procurar a justiga. ‘As demandas judiciais também nos revelaram que a presenga mais constante do Estado, através da administragao politica e da burocracia juridica, foi determi- nante para as configuragdes das sociabilidades estabelecidas nas interagSes entre os individuos em suas ocupagées/profissdes, com a familia, nas comunidades de convivio cotidiano ¢ nos ambientes de diversao e cultura. ‘Além disso, a documentagao permitiu evidenciar que houve uma tendéncia em se recorrer 20s mecanismos reguladores das ages ¢ reagSes sociais. Esse ins- trumento gerou esterestipos, os quais foram empregados nos contatos com os indigenas, paraguaios ¢ bolivianos. Mas também nas relagdes dos homens livres pobres, sobretudo, como os libertos, imagens estereotipadas que serviram para acentuar os desequilibrios sociais, ampliando 0 corporativismo entre os proprieté- rios rurais e comerciantes locais. Praticas sociais denegatérias da identidade social dos “despossuidos” de capital politico, econdmico ¢ simbélico. Esse conjunto de fatores no limite das relagdes sociopoliticas intensificou as tensdes individuais intergrupais, resultando no emprego da violéncia, motivado por incompatibilidades ocasionais, rixas, intrigas, cobranga de dividas, disputas amorosas, apossamento de terras ¢ na defesa da honra, 0 que justificou 2 ma- ximizagao presencial do aparato juridico e policial, nas comarcas de Corumba, Miranda e Paranatba, as trés comareas ao sul da provincia que fazem parte do universo pesquisado. O quadro politico-juridico surgido com o federalismo implantado com a Re- plblica contribuiu para a criagzio de novas comarcas em Mato Grosso, fortalecen 0 sistema juridico e policial. Contudo, € preciso lembrar que a mudanga do regime monarquico para Republica, em 1889, em muito pouco modificou a vida dos bra- sileiros, em especial, no campo da justiga, que manteve ainda por algumas décadas 08 preceitos € dispositivos presentes no livro V das Ordenacoes Filipinas. Nao obstante o arcabouco ideolégico centrado no liberalismo-positivismo tenha sido decisivo para a elaboracao do texto da nova Constitui¢io Republicana, ¢ também do Cédigo Penal de 1890, na pritica, a Primeira Republica, “em seus trés decénios iniciais, veio representar a emergéncia da oligarquia cafeeira ¢ de um republica~ nismo legal, subordinado e ajustado as condigées politico-sociais dos empresarios do café” (Wolkmer, 1999, p. 109). Alguns autores afirmaram que tanto a Constitui¢ao de 1890 quanto o Cédigo Penal de 1891 fundamentavam-se em principios positivistas de cunho individu- alista. Embora esses textos tenham sofrido algumas alteragées, em quase nada se 26 Criminalidade ¢ Relagies de Puder em Mats Grosso (1870-1910) alterou a estrutura socioeconémica do pais nos primeiros anos da Republica. No estado de Mato Grosso e apés a Proclamagio da Republica, as lutas pelo poder wornaram-se mais contundentes, intensificando as novas formas de conflitos € crimes como as emboscadas, chacina , crimes encomendados a capangas ¢ as per- seguicdes politicas aos partiddrios daqueles que conduziam a politica nacional no momento. Tais questoes denotam a importancia que o Estado e a concorréncia pelas oportunidades aos cargos publicos adquiriram nos tiltimos anos do século XIX, sobretudo com a ampliagao no nimero de comarcas, ainda sob 0 Império. A divisao jurisdicional em Mato Grosso, estabelecendo as comarcas de Co- rumba, Miranda e Paranafba (Guerra, 1943, p. 107-116), analisadas neste estudo, aconteceu em momentos diferentes ¢ foi decorrente das necessidades impostas pelo aumento da criminalidade, crescimento demografico ¢ as distancias entre os nticleos jurfdicos ¢ politicos com a Capital do Império e da Provincia, Cuia- ba Até 1910, Mato Grosso possuia dez comarcas em toda a regiao. A partir de 1911, 0 ntimero de comarcas aumentou para catorze. Sendo que seis situavam-se ao norte de Mato Grosso ¢ oito ao sul (Guerra, 1943, p.118). As trés comarcas selecionadas destacavam-se pela importancia ccondmica e politica no periodo. ‘Corumba e Miranda sempre foram pontos estratégicos na defesa do territério brasileiro, haja vista que, localizadas proximas as fronteiras juridicas com o Para- guai c a Bolivia, as duas comarcas foram invadidas diversas vezes pelos soldados de Solano Lépez na época da guerra. Ja Paranaiba foi, desde 0 periodo da colonizacio, a referéncia para se chegar a capital Cuiaba c a cidade de Diamantino. No desenvolver deste estudo sera devidamente explicitada a configuracdo que ocupou cada uma das comarcas na eonsolidacio do poder local. Resta observar que atualmente o espaco geogrifico dessas comareas é reconhecido como estado de Mato Grosso do Sul. Os trabalhos que analisaram as relagées do poder politico no Brasil desde a poca colonial diferenciavam-se por seu viés interpretativo e categorias especificas. Maria Isaura Pereira de Queiroz investigou as continuidades hist6ricas no proces- 0 de formagao da sociedade brasileira marcada pelo mandonismo, coronelismo ¢ cliientelismo local na politica brasileira, desde a colonizacao até 1930, Conforme aanalise de Queiroz (1976, p. 172-174) as formas de poder estabelecido no com- plexo sistema politico brasileiro colocou sob 0 mesmo rétulo os politicos conser- vadores radicais ¢ os bacharéis liberais, enquanto grupo pertencente a camada de “profissionais” da politica, os quais agiam mais em fungio dos vinculos com os coronéis municipais do que na resolugao dos graves problemas sociais brasileiros. O mandonismo e 0 coronelismo, nessa perspectiva, podem ser compreendi- dos como formas de influéncias pessoais concentradas em alguns membros da sociedade local, sobretudo dos latifundiarios na condugao da politica, justiga economia no Brasil, tanto na época do Lmpério quanto na Primeira Republica. 27 Marincte Aparccida Zacharias Rodrigues “Mandonismo que provinha da permanéncia de uma estrutura social baseada no latifiindio e no que se poderia chamar de ‘familia grande” (Queiroz, 1976, p.33), inclusive dando sentido ao termo coronelismo enquanto poder de mando na po- itica local, cujo equilibrio com o poder central revelava uma luta de “potencia a ponténcia” (Ibid., p.33).O coronel exercia seu poder através da dominagao politi- a ¢ econdmica sobre os grupos mais fracos na hierarquia social, utilizando como recurso a violéncia fisica, politica, psicolégica e simbolica colocada em andamento através da rede clientelar formada pelos agregados, trabalhadores, “amigos” com menos posses, familiares, jagungos, capangas efavorecidos politicamente. * Jo fendmeno do coronelismo analisado por Isléia Rossler Streit (2003, p. 16) se vinculou ao proceso de ocupagio da colénia Saldanha Marinho, no Rio Grande do Sul. Streit constatou que a pratica coronelista, enquanto capacidade concentrada de mando e poder politico, permeou as relagdes dos imigrantes com a companhia colonizadora e 05 politicos locais, Na luta por mais espago econdmico ¢ social, os colonos imigrantes empreenderam formas de resisténcia a esse poder local mani- festadas pelo predominio politico dos “coronéis” nas mais variadas formas de agit. Victor Nunes Leal (1975, p. 23), em sua obra Coronelisma, enxada e voto, pu- blicada em 1949, afirmou que nem sempre “os chefes politicos locais sio os au- ténticos ‘corondis’, pois os médicos ¢ advogados reuniam devida sua formagio ‘ilustrada’, ‘qualidades de comando’ e ‘dedicagic’ o que os habilitava aos cargos de chefia”. Esses profissionais surgidos no panorama nacional galgaram cargos e ganharam importancia social, enfeixavam com os antigos coronéis “uma ampla jurisdigdo sobre seus dependents, compondo rixas, desavengas € proferindo, as vezes, verdadeiros arbitramentos, que os interessados respeitavam.” Segundo o mesmo autor, a pratica coronelista vinculava-se 4 estrutura rural centrada na monocultura ¢ grandes latifiindios, estrutura profundamente enraiza- da na cultura brasileira. Enquanto conceito, o coronclismo foi definide por Leal (1975, p. 252) como “um sistema politico dominado por uma relagio de com- promisso entre o poder privado decadente ¢ o poder pubblico fortalecido”. Apesar de o fendmeno jé estar presente na época da colonizagao, Leal pontuou que essa pratica foi uma caracteristica marcante da Repiblica, a qual estabeleceu o regi- Maria Isaura Pereira de Queiroz utilizou o conceito de “grande proprietario’ para definir o coronel”. Segundo a autora, “nao raro, no Brasil, o poder decorrente de outros bens de fornia superou © poder travido exclsivamente pela posse de terra’. Observou que nas regides onde predominon o pequeno sitiante o fendmeno do coronclismo se produziu de forma mais dispersa e com pouca expressio politica, No entanto, “nas regides de propriedades pecua istas, que permitiam maior dominio sobre os homens, tenderam a ter maior importincia politica do que simples regides de sitiantes”. Vale lembrar que a regiao de Mato Grosso se configurou como uma regiao pecuarista desde a colonizagio até os dias atuais, dav serem os fenémenos do mandonismo, coronelisme c clientelismo tio presentes nas priticas politicas, juridicas, econdmicas, culturais ¢ religiosas. Ver Queiroz, O mandonismo local na vida politica brasileiva ¢ outros ensaios, p. 191. 28 Criminalidade ¢ Relagies de Poder em Mato Gros (1870-1910) ime representativo, federativo e as politicas partidarias, clementos contributivos a condugao dos processos politicos eleitorais associados ao poder de mando dos eorondis nos municipios ¢ estados brasileiros (Leal, 1975, p. 254). Ao cotejar os processos criminais ¢ os relatérios oficiais, esses fatores ficam vi- sivcis, sobretudo, nos conflitos envelvendo os homens livres pobres e proprietirios turais, também denominados como coronéis ou mandées politicos, concentrados ©m campos opostos ¢ hutando pelo arbitramento de questées que eram do ambito ea Justica. Mas sobrevém também nesta investigacao as motivages que desencade- avam as divergéncias traduzidas em atos violentos que desembocaram em crimes. Por vezes, as aniliscs dos processos criminais permitiram visualizar que os conflitos entre fazendeiros, policiais, oficiais de justiga, comerciantes e homens livres pobres eram a manifestagao resultante das exclusdes, discriminagées ¢ pre- conceitos sociais, fatores agravados por atos de violéncia, os quais podiam ocorrer mas lutas pela posse de terras; dos instrumentos de trabalho; na manutengao de bens materiais e nos processos eleitorais. Neste ‘iltimo caso, em especial, a violén- atingia seu 4pice quando os grupos descobriam que as eleigées eram “condu- xidas” por algum coronel, o que nas palavras de Leal (1975, p. 25) correspondia ao “voto de cabresto.” Essas condigées serviram de pretextos aos réus, além disso, também justifica- vam a recorréncia dos crimes praticados por individuos e grupos. Assim, indepen- dente da representagao social ocupada na hierarquia social, homens e mulheres s¢ transformaram em criminosos ou vitimas dos crimes e coube a Justica aplicar a puni¢ao de acordo com os preceitos legais vigentes. Fato este que nem sempre ocorreu, pois a magistratura nao esteve isenta de ideologias e influéncias politicas. Afinal, “a ideologia dos grandes criou raizes num solo, mesmo que raso, de reali- dade” (Thompson, 1997, p. 355) que nao pode ser ignorada pelo pesquisador cuja ‘iais da justiga remete inevitavelmente aos comportamentos sociais submetidos aos instrumentos de vigilancia ¢ aos padroes de ordem regidos pelos cédigos moral, legal ¢ simbilico. Partindo da hipétese de que o termo de bem viver criado pelo Estado imperial tinha como fim a vigilancia e a punigio dos infratores, Eduardo Martins (2003) constatou que esse mecanismo legal, principalmente aplicado aos homens pobres, criou a partir do sistema juridico-policial a categoria dos “vadios”. Homens s6s, vagando pelo territério brasileiro, em busca de melhores condicées de vida, se viram obrigados a mudar suas condutas até entio toleradas pela lei. A categoria investigada por ele permitiu langar aproximacées explicativas com aqueles indi- viduos que percorriam varias fazendas empregando-se em trabalhos tempordrios até terminarem presos por alguma pratica criminosa. Como mostraremos nos capitulos deste estudo, adequar, modelar ¢ regular os comportamentos sociais dos individuos e dos grupos fazia parte de uma proposta compreensio do exercicio pelos usos soc 29 Marinete Aparevida Zacharias Rodrigues mais ampla de neutralizagao das forcas em luta pelo poder na regido de Mato Grosso. Para tanto, as instituicdes juridicas buscaram, por meio dos atos oficiais, simbolicamente reconhecidos e da negociagio, reconstituir os desvios de padrio e modificar as condutas morais ¢ as praticas sociais assentes nas tradicées € nos costumes populares. A ruptura dos costumes, tradicgdes e padroes de valores sociais ocasionada pelas mudangas socioecondmicas foi contributiva para intensificar os conflitos pessoais ¢ intergrupais, pois, Ihes faltando o conhecimento das prerrogativas res- guardadas pelas leis, os individuos tentaram resolver suas querelas difrias, mas agiram mais em funcio das praticas costumeiras do que sob 0s novos modelos propostos pelas relagdes de producao capitalista. Desse modo, a presenga mais ativa ¢ direta do Estado na vida piblica ¢ privada serviu como mecanismo ao avango da exploracio capitalista e destitui¢ao dos usos do direito costumeiro, o que, por sua ver, permiti expropriar os homens livres pobres dos instrumentos de trabalho, dos espacos de lazer e das tradigdes socioculturais amalgamadas nessa regiao de fronteira (Corréa, 1999, p. 91). ‘Ao optar pela histéria regional, procurei nao perder de vista a dimensio glo- bal, a qual apresentava no perfodo uma multiplicidade de varidveis histéricas in- ter-relacionadas ao particular: a regido de Mato Grosso. O papel da regio vem, nos tiltimes anos, sendo articulado ao conjunto mais amplo da Historia ¢ com as “suas tendéncias predominantes, a partir de informagses e andlises de historiado- res consagrados” (Ibidem, p.36). Nessa perspectiva, as anilises das priticas criminosas ¢ das relagdes de poder permitiram constatar, através da documentagao oficial, os processos criminais e relatorios oficiais, a interacdo da politica, justiga e economia com as construgées histérica brasileira e regional. Nessa perspectiva, procuramos articular o referen- cial politico, juridico, econémico € cultural numa escala mais abrangente no sen- tido global dos acontecimentos, sem desprezar as especificidades da hist6ria local. Esse procedimento permitiu desvelar as contradiges ¢ as permanéncias socio- politicas, 0 que, por sua vez, serviu para verticalizar a comprecnsao € explicagoes sobre a diversidade cultural, as desigualdades sociais ¢ as formas como 0 projeto da ordem produziu e reproduziu a interdependéncia no transcorrer do proceso de formagio social. A historiadora Lucia Salsa Correa (1999, p. 38), em seu estudo sobre a for- macio histérica do sul de Mato Grosso, associou a nogao de regio ao desen- volvimento patrocinado pela penetracao de relagées capitalistas vinculadas @ re- produgdo dos instrumentos de dominagao da classe dominante: a elite local. A autora enfatizou a configuracio das variaveis econémicas nas relagdes de produ- cdo/consume, isto é, “da modernizagao decorrente da exploragio pelo Capital ¢ do processo de acumulagio”. Pode-se dizer que seu viés interpretativo se prende 30 Criminatidiade » Relagces de Poder em Mato Cresso (1870-1910) ao recorte regional vinculado aos problemas e interagées entre meio ambiente ¢ aco humana nos sertées mato-grossenses. Corréa (1999, p. 48) definiu fronteira selacionando a nogao “as bases concretas do desenvolvimento econémico e hist6- rico regional, forjados desde a época da colonizago portuguesa” ao sul de Mato Grosso. Apontou, também, que diversos fatores como as trocas culturais; a lingua; as lutas pela posse das terras ¢ expansio dos latifiindios; a ocupagao e transfor- magiio do meio ambiente, serviram de clementos para sc estabelecer os limites fronteirigos ao sul de Mato Grosso com os paises latino-americanos. Em todo caso, acredito que a questo das noges de regiao ¢ fronteira vincula- va-se aos aspectos geogrificos, cconémicos ¢ ambientais, além dos politicos, admi- nistrativos e juridicos. Assim, utilizei teoricamente as nogdes de regio e fronteira elaboradas por Pierre Bourdieu, associadas aos dados empiricos cotejados nos tes- temunhos dos envolvidos em processos-crime. Segundo Bourdieu (2003, p.117),0 sentido de regido vincula-se ao tempo e a histéria, pois é pensado a partir das lutas pela definigéio das identidades étnicas ou regionais, 0 que, por sua vez, se funda nos atos de imposicao pela classificacao e divisio do mundo social em conformidade as hierarquias estabelecidas por aqueles que detém o poder de realizar 0 consenso “sobre a identidade e unidade” da coletividade, grupo ou sociedade. Para melhor compreender essa afirmagio procure’ demonstrar que os gru- pos sociais, em Mato Grosso, mobilizaram suas acGes para dar sentido de uni- dade real ao delimitar a regido na qual se instalavam. Assim, sépodemos pensar 2 nogio de regio como uma ideia assimilada por todos os que esto inseridos nas lutas pela manutengio do poder simbélico, ou em vias de consegui-lo. A nogito de regiao elaborada por aqueles que conviviam com os problemas na Justica revelou, também, a assi ‘© dos esteredtipos e preconceitos, ou as luta contras os estigmas, impostos pela elite local aos membros das camadas inferiores. Isso se evidenciou desde 0 ato da demincia desqualificando nominalmente os réus € vitirmas até os registros finais dos processos, onde homens e mulheres livres, pobres © escravos, eram tratados como individuos de menor valor social, 0 que impunha frontciras sociais a suas agées na vida cotidiana. Torna-se relevante pontuar que a caracterizagio do sentido de regio per- mitiu considerar que enquanto uma nogao abstrata cla se fundava num ato de imposicao da construgio do mundo social e suas divisGes, ato muitas vezes regido pela arbitrariedade, A regiao, portanto, nao se configurava apenas como espagos fisicos, mas como espagos de lutas pela divisio, aceitagio ¢ conformagao das vi- sées que claboradas do mundo social (Bourdieu, 2003, p. 120-121). Jasobre a nocio de fronteira, Bourdieu (2003, p. 118) afirmou que a mesma é, normalmente, determinada pela diferenga cultural cujo ato juridico de delimitacao do espago social serve para legitimar os limites estabelecidos pelas relagées sociais. Portanto, para o autor, a realidade e as representagoes dessa realidade perfazem o 31 Marinete Aparecida Zacharias Rodrigues mundo social como “uma representag’o e vontade, ¢ existir socialmente é também ser percebido como distinto” do “outro” nas relagdes sociais, as quais sto marcadas por diferencas politicas, juridicas, econdmicas, simbdlicas, culturais ¢ religiosas. Percebi, por meio da andlise dos depoimentos dos envolvidos em crimes, que serao analisados mais adiante, que a ideia de regio e de fronteira esteve condi- cionada a visio de mundo destes participes no universo judicial. Elas se referem 408 espagos sociais nos quais os individuos se conheceram e se reconhecem como agentes ativos nas lutas estabelecidas entre grupos sociopoliticos, em Mato Gros- so. As divisdes que se formaram, portanto, a partir das visdes € divisdes desse mundo foram fundadas em representacGes, classificagdes € assimilagées e repro- duziram as distancias econémicas ¢ sociais entre os individuos ¢ os grupos. Estas eram acdes que traduziam a correlacio de forgas na imposigio de mecanismos necessarios para se estabelecer a divisio das fungGes sociais e hierarquias em con- sonancia com os interesses dos poderes locais. Com relagio aos envolvidos com a problematica da criminalidade, os relato- rios oficiais, os processos-crime ¢ as narrativas de memorialistas demonstravam que as concepgées de regio e fronteira variavam em fungio dos vinculos com os representantes do poder central e poder local, o que permitiu sugerir que estes foram determinantes na construgao dessas nogoes. Assim, entre pratica crimi- nosa € sociedade, crime e criminoso, magistratura ¢ medicina, verificou-se que a fronteira e a regio ganharam contornos simbélicos produzidos por diferengas culturais ¢ representacées mentais, moldando as experiéncias cotidianas dos gru- pos dominantes, da camada mediana, dos homens livres pobres e dos escravos. 32

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