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O quarto pilar da universidade do futuro

Maurício José Laguardia Campomori


Professor da Escola de Arquitetura e diretor de Ação Cultural da UFMG

No final do século 18, a palavra cultura referia-se, de modo geral, à configuração do espírito,
àquilo que informava o modo de vida de determinado grupo social. Nos séculos seguintes a
idéia de cultura reuniu e acumulou formas e pelo menos três sentidos diversos. O primeiro
corresponderia a uma posição idealista, em que a ênfase está no espírito formador de um
modo de vida, presente em todas as atividades sociais, mas evidenciado nas atividades
especificamente eruditas – as expressões artísticas, a linguagem e alguns tipos de trabalho
intelectual.

Em um segundo sentido, a ênfase recai sobre a ordem social global no âmbito da qual uma
cultura específica, material ou simbólica, é considerada seu produto direto ou indireto. Por fim,
desde o século 19, o termo cultura passaria a abrigar uma forma de convergência. Ao mesmo
tempo em que apresentava elementos comuns ao seu entendimento como produto de uma
ordem social global, distanciava-se desse entendimento, ao insistir que tanto a prática quanto
a produção cultural não derivam apenas de uma ordem social constituída, mas são igualmente
elementos dessa mesma constituição.

No século 20, a idéia de cultura passa a ser tratada como sistema de significação, por meio do
qual uma dada ordem social é comunicada, vivida, reproduzida, transformada e estudada. A
partir daí, cultura torna-se vocábulo polissêmico em contínuo processo de transformação,
ampliação e desdobramento de significados. Configura-se a priori em palavra que remete à
nossa relação com o mundo, à civilização, ao conjunto de padrões de comportamento, crenças,
conhecimento e costumes que distingue e permite reconhecer um grupo sociopolítico.

Uma boa forma de sintetizar o esforço de compreensão do conceito de cultura cabe em um


singelo exercício. Pergunte a si mesmo: o que é um ser humano? Tente responder utilizando
apenas evidências científicas.

Provavelmente surgirão definições biológicas, genéticas, químicas, estatísticas, e, a partir


delas, emerge a possibilidade de se caracterizar um ser humano. Mas isso ainda não resolve
nossa busca sobre o entendimento de cultura. Ao aprofundarmos os estudos científicos,
verificamos que são poucos os elementos que diferenciam nossa espécie das demais. Mas, e
se em vez de perguntar o que é um ser humano, simplesmente perguntássemos o que é ser
humano? A resposta provavelmente apontaria para a idéia de cultura. O que nos faz únicos,
diferentes de tudo que existe no universo, é o que podemos realizar sob o nome de cultura: a
criação, o entendimento e o produto do pensamento humano.

Cultura é uma teia de significações que nos permite construir entendimentos, superando a
tentação imediata de uma definição com sentido específico e unidirecional. Uma imagem
possível nos foi oferecida por Gilberto Gil, ao afirmar que, na contemporaneidade, “a cultura
não é isso ou aquilo, mas isso e aquilo”. Sua importância estratégica em um mundo tão
marcado por contraposições e conflitos vem à tona ao compreendermos seus sentidos mais
amplos. São eles que nos permitem conduzir a compreensão do papel da cultura na direção da
inclusão social, da superação da pobreza, da defesa do meio ambiente e das condições para a
justiça e para a paz.

Lançada a base para uma idéia plausível de cultura, precisamos, em um segundo momento,
discutir a idéia de universidade – a de hoje e a queremos no futuro. Desde o seu surgimento, a
universidade sempre teve sua prática fundada no reconhecimento público de sua legitimidade e
de suas atribuições, fato que lhe confere autonomia perante outras instituições sociais. Ela foi
estruturada por ordenamentos, regras, normas e valores internos e fundou-se na idéia de um
conhecimento guiado por sua própria lógica e por necessidades imanentes a ele.

Com as lutas sociais e políticas dos últimos séculos e com a conquista da educação e da
cultura como direitos, a universidade tornou-se uma instituição social inseparável da idéia de
democracia. Seja para realizar essa idéia, seja para opor-se a ela, a instituição universitária não
pode ignorar a referência à democracia como idéia reguladora, assim como não pode furtar-se
a responder, afirmativa ou negativamente, aos ideais socialistas.

Seria ingênuo, entretanto, imaginar que a universidade passará incólume pelo intenso
processo de transformação e realinhamento dos atores sociais, políticos e econômicos que
marca o mundo atual. Vemos a rápida transformação da idéia clássica de universidade como
instituição social em mera organização prestadora de serviços. Nesse processo a universidade
voltada para o conhecimento cede lugar para o que poderíamos chamar de universidade
funcional, que começa a despontar na segunda metade do século 20, buscando
desesperadamente atender ao mercado de trabalho. Sua sucessora, a universidade do século
21, provavelmente não mais uma instituição, mas uma organização transnacional, corre o risco
de não mais se reconhecer.

Tendo por regimento os contratos de gestão, avaliada por rankings de eficiência e


produtividade, programada para ser flexível, essa organização será estruturada por estratégias
de eficácia e, portanto, pela particularidade e instabilidade dos meios e dos fins. Um próximo
passo seria definir-se e estruturar-se por normas e padrões alheios ao conhecimento e à
formação da inteligência e, em seguida, converter-se em federação de escolas, pulverizada em
microrganizações que, muitas vezes, ocupam docentes e submetem discentes a exigências
alienadas do fazer intelectual.

Em oposição à autonomia da universidade clássica, a heteronomia dessa nova universidade


será cada vez mais visível na insensata multiplicação de horas-aula, na compulsória constrição
do tempo para a pós-graduação, na avaliação pela quantidade de publicações, colóquios e
congressos, na multiplicação de relatórios e comissões.

Nessa ideologia, a razão, a verdade e a história logo poderão se tornar mitos totalitários; o
espaço e o tempo não mais que uma sucessão efêmera e volátil de imagens velozes. E o mais
grave: a objetividade não mais será o conhecimento do que é exterior e diverso do sujeito, mas
apenas um conjunto de estratégias montadas sobre jogos de linguagem, enquanto a
subjetividade provavelmente deixará de ser reflexão para se tornar intimidade narcísica.
Desnecessário dizer que é urgente encontrar e encorajar o fortalecimento de elementos de
resistência em nosso modo de conceber a instituição universitária. Cabe-nos entender a cultura
como o quarto pilar na construção de uma universidade capaz de abrigar resistência, liberdade,
cidadania e socialização e na qual coexistam excelência acadêmica e relevância social. Numa
universidade contemporânea e avançada, a cultura é o valor essencial para a constituição da
cidadania e um gênero de primeira necessidade. É geradora e não apenas subproduto de
outras atividades. É comprometida com a transformação da realidade e se oferece como base
de um futuro construído com respeito à memória.

A cultura é a própria identidade nascida na história, que ao mesmo tempo nos singulariza e nos
torna eternos. É índice e reconhecimento da diversidade. É o território privilegiado da criação,
da transgressão, do diálogo, da crítica, do conflito, da diferença e do entendimento. É símbolo e
sinônimo de justiça, cidadania, liberdade e paz.

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