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5. Elementos fundantes de uma concep¢4o materialista da histéria* *Redigidas entre novembro de 1845 e abril de 1846 e s6 publicadas postumamente (1932), as ref xdes marxianas aqui extratadas (sob titulo de responsabilidade do organizador deste volume) tém por objeto imediato a critica da filosofia alema pés-hegeliana — seia Feuerbach, seja a “Critica cr tica”. No entanto, desenvolvidas em colaboracao com F. Engels, importam mais por explicitarem, pela primeira vez, as bases da nova concepcao de hist6ria que haveria de conduzir as pesquisas ¢ as anélises que seus autores realizariam nas quatro décadas seguintes. © texto foi extraido de K, Marx eF. Engels, A ideologia alema (S. Paulo: Boitempo Editorial, 2007, pp. 29-50. Tradugio de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano), Atente-se para a origem/sentido das notas: A. E,— anotagao de Engels & margem do manuscrito ‘A.M. —anotacio de Marx 4 margem do manuscrito N. A.— nota de Marx e Engels N. E. —nota do editor brasileiro (Boitempo Editorial) N.T. —nota dos tradutores S.M. —suprimido pelos autores no manuscrito V. M. —variante dos autores no manuscrito N.E.A/J. — nota da edicio alema (Amsterdam: Akademie Verlag, 2003) N. E. A/W. — nota da edicao alema (Berlim: Dietz Verlag, 1969). (N. do ©.) nec 5. Elementos fundantes de uma concep¢ao materialista da histéria* *Redigidas entre novembro de 1845 e abril de 1846 e s6 publicadas postumamente (1932), as refle- xdes marxianas aqui extratadas (sob titulo de responsabilidade do organizador deste volume) tém por objeto imediato a critica da flosofia alema pds-hegeliana — seja Feuerbach, seja a “Critica erf- rica”. No entanto, desenvolvidas em colaboracao com F. Engels, importam mais por explicitarem, pela primeira vez, as bases da nova concepcio de histéria que haveria de conduzir as pesquisas e as andlises que seus autores realizariam nas quatro décadas seguintes. O texto foi extraido de K. Marx eE. Engels, A ideologia alemd (S. Paulo: Boitempo Editorial, 2007, pp. 29-50. Traducéo de Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano). Atente-se para a origem/sentido das notas: A.E, —anotacéo de Engels 4 margem do manuscrito (A. M.— anotaco de Marx & margem do manuscrito N. A.—nota de Marx e Engels N. E. — nota do editor brasileiro (Boitempo Editorial) N.T. —nota dos tradutores S. M. — suprimido pelos autores no manuscrito V. M. — variante dos autores no manuscrito N.E.A/J. — nota da edicéo alema (Amsterdam: Akademie Verlag, 2003) N.E.A/W. —nota da edigao alema (Berlim: Dietz Verlag, 1969). (N. do 0.) ‘Nao nos daremos, naturalmente, ao trabalho de esclarecer a nossos sébios Idsofos que eles nao fizeram a “libertagao” do “homem”** avancar um ini- passo ao terem reduzido a filosofia, a teologia, a substancia e todo esse ixo A “autoconsciéncia”, € ao terem libertado o “homem”*** da dominac4o jessas fraseologias, dominagao que nunca o manteve escravizado. Nem lhes plicaremos que s6 € possivel conquistar a libertagao real [wirkliche Be- eiung| no mundo real e pelo emprego de meios reais; que a escravidao do pode ser superada® sem a maquina a vapor € a Mule-Jenny,® nem a rrviddo sem a melhora da agricultura, e que, em geral, nao é possivel liber- os homens enquanto estes forem incapazes de obter alimentagao € bebi- habitacéo e vestimenta, em qualidade e quantidade adequadas. A libertagdo” € um ato histrico e ndo um ato de pensamento, e € ocasionada + condig6es histéricas, pelas con[digdes] da industria, do co[mércio], [da ricul}tura, do inter[cambio] [...] e entao, posteriormente, conforme suas iferentes fases de desenvolvimento, o absurdo da substancia, do sujeito, da toconsciéncia e da critica pura, assim como 0 absurdo religioso e teolégi- , 40 novamente eliminados quando se encontram suficientemente desen- ‘olvidos.**** E claro que na Alemanha, um pais onde ocorre apenas um senvolvimento histérico trivial, esses desenvolvimentos intelectuais, essas ivialidades glorificadas e ineficazes, servem naturalmente como um substi- *Feuerbach. (A. M.) **Libertagio filos6fica e libertacao real. O homem. O Unico. O Individuo. (A. M.) ***Condicdes geoléeicas, hidrogréficas ete. corpo humano. A necessidade ¢ 0 trabalho. (A. M.) ****Fraseologia e movimento real. (A. M.) 135 © LEITOR DE MARX tuto para a falta de desenvolvimento hist6rico; enrafzam-se e tem de ser combatidos.* Mas essa luta tem importancia meramente local.**“ [...] na realidade, e para o materialista prdtico, isto é, para 0 comunista, trata-se de revolucionar o mundo, de enfrentar e de transformar praticamen- te o estado de coisas por ele encontrado.*** Se, em certos momentos, encon- tram-se em Feuerbach pontos de vista desse tipo, eles nao vao além de intuigées isoladas e tém sobre sua intuigdo geral muito pouca influéncia para que se possa considerd-los como algo mais do que embrides capazes de de- senvolvimento. A “concepg40”**** feuerbachiana do mundo sensivel***** limita-se, por um lado, & mera contemplagio deste ultimo e, por outro lado, a mera sensac4o; ele diz “o homem” em vez de os “homens histéricos reais”. “O homem” €, na realidade, “o alemao”. No primeiro caso, na con- templacdo do mundo sensfyel, ele se choca necessariamente com coisas que contradizem sua consciéncia e seu sentimento, que perturbam a harmonia, por ele pressuposta, de todas as partes do mundo sensivel e sobretudo do homem com a natureza.****** Para remover essas coisas, ele tem, portanto, que buscar refiigio numa dupla contemplacao: uma contemplac4o profana, que capta somente 0 que é “palp4vel”, e uma contemplacgdo mais elevada, filoséfica, que capta a “verdadeira esséncia” das coisas. Ele nao vé como 0 mundo sensivel que o rodeia nao € uma coisa dada imediatamente por todaa eternidade e sempre igual a si mesma, mas 0 produto da industria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no sentido de que € um produto histérico, o resultado da atividade de toda uma série de geragdes,******* que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram sua *A importincia da fraseologia para a Alemanha. (A. M.) **6 luta que nao tem significado hist6rico geral, mas apenas local, uma luta que nao traz resultados novos para a massa de homens mais do que a luta da civilizagao contra a barbdrie. (V. M.) A linguagem a linguagem da re[alidade]. (A. M.) *** Feuerbach. (A. M.) *"™concepcdo” tebrica. (V. M.) *****O sensivel. (V. M.) PN. B, Oerro de Feuerbach nao esté em subordinar 0 que éimediatamente palpavel, aaparBncia sensivel, & realidade sensivel constatada por um exame mais rigoroso dos fatos sensiveis; esta, a0 contradrio, em que ele, em tiltima instncia, néo consegue lidar com o mundo sensivel sem conside- r4lo com os “olhos”, isto 6, através dos “6culos” do fil6sofo. (A. M.) **+++**aue elaé, emcadaépocahist6rica, oresultado daatividade de todaumasériedegeragées. (V.M.) 136 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPCAO MATERIALISTA.. tistria e seu comércio e modificaram sua ordem social de acordo com as essidades alteradas. Mesmo os objetos da mais simples “certeza sensivel” dados a Feuerbach apenas por meio do desenvolvimento social, da in- tria e do intercambio comercial. Como se sabe, a cerejeira, como quase las as Arvores frutiferas, foi transplantada para nossa regido pelo comér- , hé apenas alguns séculos e, portanto, foi dada 4 “certeza sensivel” de erbach apenas mediante essa agao de uma sociedade determinada numa erminada época.* Alids, nessa concepgao das coisas tal como realmente e tal como se deram, todo profundo problema filosdfico € simplesmente olvido num fato empirico, como ser4 mostrado mais claramente adian- Por exemplo, a importante questdo sobre a relagao do homem com a reza (ou entéo, como afirma Bruno na p. 110, as “oposigdes em natu- e histéria”, como se as duas “coisas” fossem coisas separadas uma da a, como se o homem ndo tivesse sempre diante de si uma natureza his- ica e uma histéria natural), da qual surgiram todas as “obras de insonda- grandeza”®) sobre a “substancia” e a “autoconsciéncia”, desfaz-se em si ma na concep¢ao de que a célebre “unidade do homem com a natureza” pre se deu na indtstria e apresenta-se de modo diferente em cada época acordo com o menor ou maior desenvolvimento da indistria; o mesmo le no que diz respeito a “luta” do homem com a natureza, até o desenvol- ento de suas forcas produtivas sobre uma base correspondente. A indiis- e 0 comércio, a producdo e o intercdmbio das necessidades vitais** dicionam, por seu lado, a distribuigdo, a estrutura das diferentes classes iais e so, por sua vez, condicionadas por elas no modo de seu funciona- nto — e € por isso que Feuerbach, em Manchester por exemplo, vé ape- fabricas e mAquinas onde cem anos atrds se viam apenas roda de fiar e es manuais, ou que ele descobre apenas pastagens ¢ pantanos na Cam- ma di Roma,® onde na época de Augusto néo teria encontrado nada os do que as vinhas e as propriedades rurais dos capitalistas romanos. erbach fala especialmente do ponto de vista da ciéncia natural; ele men- *Feuerbach. (A. M.) **Feuerbach. (A. M.) 137 s € de seu préprio dom contemp! tivo, e até mesmo de sua propria existéncia. Nisso subsiste, sem divida, Prioridade da natureza exterior, € isso tudo nao tem nenhuma aplicacao a homens primitivos, produzidos por generatio aequivoca; mas essa difere Ciagdo s6 tem sentido na medida em que se considerem os homens com distintos da natureza, De resto, essa natureza que precede a histéria hum: nao € a natureza na qual vive Feuerbach; é uma natureza que hoje em salvo talvez em recentes formacées de ilhas de Corais australianas, no exis mais em lugar nenhum €, portanto, também ndo existe para Feuerbach, Ecerto que Feuerbach tem em relagdo aos materialistas “puros” a grani que o homem é também “objeto sen: ipreende o homem apenas como “obj Aunca até os homens ativos, realmente existentes, mas Permanece na al tragao “o homem” e néo vai além de reconhecer no plano sentimental “homem real, individual, corporal”,* isto é, nao conhece quaisquer ou! “relagdes humanas” “do homem com o homem” que n4o sejam as do € da amizade, e ainda assim idealizadas, Nao nos da nenhuma critica condigées de vida atuais. Nao consegue nunca, portanto, conceber 0 do sensivel como a atividade sensivel, viva e conjunta dos individuos q Constituem, e por isso é obrigado, quando vé, por exemplo,** em vez homens sadios um bando de coitados, escrofulosos, depauperados e tisi cea *Fleuerbach]. (A. M) **Feuerbach, (A. M.) 138 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPCAO MATERIALISTA... buscar reftigio numa “concepgdo superior” e na ideal “igualizag4o no gé- 10”; € obrigado, por conseguinte, a recair no idealismo justamente 14 de o materialista comunista vé a necessidade e simultaneamente a condi- de uma transformagdo, tanto da industria como da estrutura social. ‘Na medida em que Feuerbach é materialista, nele nao se encontra a his- ia, e na medida em que toma em consideracdo a historia ele nao é mate- lista. Nele, materialismo e historia divergem completamente, o que alids explica pelo que dissemos até aqui.* Em relagdo aos alemaes, que se con- ram isentos de pressupostos [Voraussetzungslosen], devemos comegar constatar 0 primeiro pressuposto de toda a existéncia humana e tam- , portanto, de toda a historia, a saber, o pressuposto de que os homens de estar em condigées de viver para poder “fazer histéria”.** Mas, para er, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e mas coisas mais. O primeiro ato histérico €, pois, a produgdo dos meios aa satisfagdo dessas necessidades, a produgao da propria vida material, e ¢ €, sem diivida, um ato histérico, uma condig4o fundamental de toda a ‘éria, que ainda hoje, assim como ha milénios, tem de ser cumprida dia- ente, a cada hora, simplesmente para manter os homens vivos. Mesmo o mundo sensfvel, como em Sao Bruno, seja reduzido a um cajado, a um imo, ele pressupée a atividade de produgao desse cajado. A primeira a fazer em qualquer concepgio histérica é, portanto, observar esse fato damental em toda a sua significagao e em todo o seu alcance e a ele fazer ica. Isto, como € sabido, jamais foi feito pelos alemaes, raz4o pela qual nunca tiveram uma base terrena para a hist6ria e, por conseguinte, nun- tiveram um historiador. Os franceses e os ingleses, ao tratarem da cone- desses fatos com a chamada histéria apenas de um modo extremamente ilateral, sobretudo enquanto permaneciam cativos da ideologia® politica, lizaram, ainda assim, as primeiras tentativas de dar a historiografia uma materialista, ao escreverem as primeiras historias da sociedade civil iirgerliche Gesellschaft], do comércio e da indiistria. *Se, aqui, tratamos mais de perto 2 histéria, isto se deve ao fato de os alemaes estarem acostumados a representar, com as palavras “historia” e “histérico”, no s6 0 real, mas sim todo o possivel; um célebre exemplo disto é a “eloquéncia de pilpito” de Sao Bruno. (S. M.) Historia. (A. M.) ** Hegel. Condigdes geol6gicas, hidrogréficas etc. Os corpos humanos. Necessidade, trabalho. (A. M.) 139 © LEITOR DE MARX O segundo ponto € que a satisfagdo dessa primeira necessidade, a acdo de satisfazé-la e o instrumento de satisfagao j4 adquirido conduzem a novas necessidades — e essa produgdo de novas necessidades constitui o primeiro. ato hist6rico. Por aqui se mostra, desde j4, de quem descende espiritual- mente a grande sabedoria histérica dos alemaes, que, quando lhes falta o material positivo e quando nfo se trata de discutir disparates politicos, teo- légicos ou literarios, nada nos oferecem sobre a historia, mas sim sobre os “tempos pré-hist6ricos”, contudo sem nos explicar como se passa desse absurdo da “pré-histéria” 4 histdria propriamente dita — ainda que, por outra parte, sua especulagao histérica se detenha em especial sobre essa “pré-hist6ria”, porque nesse terreno ela se cré a salvo da interferéncia dos “fatos crus” e, ao mesmo tempo, porque ali ela pode dar rédeas soltas aos seus impulsos especulativos e produzir e destruir milhares de hipdteses. A terceira condigao que ja de inicio intervém no desenvolvimento his- térico é que os homens, que renovam diariamente sua propria vida, come- gam a criar outros homens, a procriar — a relagdo entre homem e mulher, entre pais e filhos, a familia. Essa familia, que no inicio constitui a tnica relagao social, torna-se mais tarde, quando as necessidades aumentadas criam novas relagées sociais e 0 crescimento da populacao gera novas ne- cessidades, uma relago secundaria (salvo na Alemanha) e deve, portanto, ser tratada e desenvolvida segundo os dados empiricos existentes e nao segundo 0 “conceito de familia”, como se costuma fazer na Alemanha. Ademais, esses trés aspectos da atividade social nao devem ser considera- dos como trés est4gios distintos, mas sim apenas como trés aspectos ou, @ fim de escrever de modo claro aos alemaes, como trés “momentos” que coexistiram desde os primérdios da historia e desde os primeiros homens, € que ainda hoje se fazem valer na histéria. A produgao da vida, tanto da prépria, no trabalho, quanto da alheia, na procriagao, aparece desde j4 como uma relacdo dupla — de um lado, como relagao natural, de outro como relagao social —, social no sentido de que por ela se entende a cooperacao de varios individuos, sejam quais forem as condigGes, o modo ea finalidade. Segue-se dai que um determi- nado modo de produg4o ou uma determinada fase industrial esto sempre ligados a um determinado modo de cooperagéo ou a uma determinada 140 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPCAO MATERIALISTA... e social — modo de cooperagao que €, ele prdprio, uma “forca produ- va” —, que a soma das forgas produtivas acessiveis ao homem condicio- 0 estado social e que, portanto, a “histéria da humanidade” deve ser udada e elaborada sempre em conexdo com a histéria da industria e das ‘ocas. Mas é claro, também, que na Alemanha é impossivel escrever tal istOria, pois aos alemaes faltam nao apenas a capacidade de concepgao e material, como também a “certeza sensivel”, e do outro lado do Reno o se pode obter experiéncia alguma sobre essas coisas, pois ali j4 nao orre mais nenhuma hist6ria. Mostra-se, portanto, desde o principio, ‘a conexdo materialista dos homens entre si, conexdo que depende das cessidades e do modo de produgao e que € tao antiga quanto os pré- rios homens — uma conex4o que assume sempre novas formas e que resenta, assim, uma “histéria”, sem que precise existir qualquer absur- politico ou religioso que também mantenha os homens unidos. Somente agora, depois de j4 termos examinado quatro momentos, qua- aspectos das relagées histéricas originarias, descobrimos que o homem -m também “consciéncia”.* Mas esta também nao é, desde o infcio, cons- iéncia “pura”. O “espirito” sofre, desde 0 inicio, a maldicdo de estar “con- inado” pela matéria, que, aqui, se manifesta sob a forma de camadas de em movimento, de sons, em suma, sob a forma de linguagem. A lingua- ‘m € tao antiga quanto a consciéncia — a linguagem é a consciéncia real, pratica, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciéncia, do careci- mento, da necessidade de intercambio com outros homens.** Desde o inicio, portanto, a consciéncia j4 € um produto social e continuard sendo enquanto existirem homens. A consciéncia é, naturalmente, antes de tudo a mera consciéncia do meio sensfvel mais imediato e consciéncia do vinculo limita- do com outras pessoas e coisas exteriores ao individuo que se torna cons- *o homem tem também, entre outras coisas, “espirito”, e que esse “espirito” “se exterioriza” como “consciéneia”. (V. M.) Os homens tém historia porque tém de produzir sua vida, e tém de fazé-lo de modo determinado: isto é dado por sua organizacao fisica, tanto quanto sua consciéncia. (A. M.) **Minha relagao com meu ambiente é a minha consciéncia. (S. M.) Onde existe uma relagio, ela existe para mim; o animal nao se “relaciona” com nada e nao se rela- ciona absolutamente. Para 0 animal, sua relagio com outros nao existe como relacio. (A.M.) 141 © LEITOR DE MARX ciente; ela é, a0 mesmo tempo, consciéncia da natureza que, inicialmente, se apresenta aos homens como um poder’totalmente estranho, onipotente e inabalavel, com 0 qual os homens se relacionam de um modo puramente animal e diante do qual se deixam impressionar como 0 gado; é, desse modo, uma consciéncia puramente animal da natureza (religido natural)* —e, por outro lado, a consciéncia da necessidade de firmar relagées com os individuos que 0 cercam constitui 0 comego da consciéncia de que o ho- mem definitivamente vive numa sociedade. Esse comeco € algo tao animal quanto a propria vida social nessa fase; é uma mera consciéncia gregaria, € co homem se diferencia do carneiro, aqui, somente pelo fato de que, no ho- mem, sua consciéncia toma o lugar do instinto ou de que seu instinto € um instinto consciente.** Essa consciéncia de carneiro ou consciéncia tribal ob- tém seu desenvolvimento e seu aperfeigoamento ulteriores por meio da produtividade aumentada, do incremento das necessidades e do aumento da populagao, que é a base dos dois primeiros. Com isso, desenvolve-se a divisdo do trabalho, que originalmente nada mais era do que a diviséo do trabalho no ato sexual e, em seguida, divisio do trabalho que, em conse- quéncia de disposiges naturais (por exemplo, a forca corporal), necessida- des, casualidadesetc. etc.,*** desenvolve-se porsi propria ou “naturalmente”. A divisao do trabalho s6 se torna realmente diviso a partir do momento em que surge uma diviséo entre trabalho material ¢ [trabalho] espiritual.**** A partir desse momento, a consciéncia pode realmente imaginar ser outra coi- sa diferente da consciéncia da praxis existente, representar algo realmente sem representar algo real — a partir de entdo, a consciéncia esta em condi- des de emancipar-se do mundo e langar-se 2 construgao da teoria, da teo- logia, da filosofia, da moral etc. “puras”. Mas mesmo que essa teoria, essa teologia, essa filosofia, essa moral etc. entrem em contradigéo com as rela- Goes existentes, isto 6 pode’se dar porque as relagGes sociais existentes es- =Precisamente porque a natureza ainda se encontra pouco modificada historicamente. (A. M.) **Vé-se logo, aqui: essa religido natural ou essa relaco determinada com a natureza é condicionada pela forma da sociedade e vice-versa. Aqui, como em toda parte, a identidade entre natureza & homem aparece de modo que a relacao limitada dos homens com a natureza condiciona sua relagd0. limitada entre si, e a relacao limitada dos homens entre si condiciona sua relagéo limitada com a) natureza. (A. M.) +**Qs homens desenvolvem a consciéncia no interior do desenvolvimento hist6rico real. (S. M.) +**=Primeira forma dos idedlogos, sacerdotes, coincide. (A. M.) 142 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPGAO MATERIALISTA... 0 em contradigéo com as forcas de producao existentes — 0 que, alias, de se dar também num determinado cfrculo nacional de relagdes,* uma z que a contradigao se instala ndo nesse Ambito nacional, mas entre essa nsciéncia nacional e a praxis de outras nagdes, quer dizer, entre a cons- jéncia nacional e a consciéncia universal de uma nagao (tal como, agora, na lemanha) — ¢ € entdo que essa na¢4o, porque tal contradiga4o aparece ape- s como uma contradi¢ao no interior da consciéncia nacional, parece se stringir A luta contra essa excrescéncia nacional precisamente pelo fato de e ela, a nacao, é a excrescéncia em si € para si. Além do mais, € comple- ente indiferente o que a consciéncia sozinha empreenda, pois de toda 4 imundicie obtemos apenas um tinico resultado: que esses trés momen- , a saber, a forga de producio,** 0 estado social e a consciéncia, podem e vem entrar em contradico entre si, porque com a divisao do trabalho A dada a possibilidade, e até a realidade, de que as atividades*** espiritual aterialt*** — dequeafruicdoeotrabalho,aprodugaoeoconsumo — cai- a individuos diferentes, e a possibilidade de que esses momentos nao trem em contradigdo reside somente em que a divisio do trabalho seja vamente suprassumida [aufgehoben].” Eevidente, além disso, que “espec- s”, “nexos”, “ser superior”, “conceito”, “escriipulo” s4o a mera expres- espiritual, idealista, a representagdo aparente do individuo isolado, a resentacao de cadeias e limites muito empiricos dentro dos quais se mo- o modo de produgao da vida ea forma de intercAmbio a ele ligada.***** Com a divisao do trabalho, na qual todas essas contradigdes estao dadas que, por sua vez, se baseia na divisio natural do trabalho na familia e na aragao da sociedade em diversas familias opostas umas as outras, esto las ao mesmo tempo a distribuicao e, mais precisamente, a distribuigéo igual, tanto quantitativa quanto qualitativamente, do trabalho e de seus dutos; portanto, esta dada a propriedade, que ja tem seu embriao, sua *Religioes. Os alemies com a ideologia enquanto tal. (A. M.) **11, 12, 13, 14, 15, 16. (A. M.) ***trabalho. (V. M.) saesatividade e pensamento, sto é, atividade sem pensamento ¢ pensamento sem atividade. (S. M.) ++" gga expresso idealista dos limites econ6micos existentesnao apenas puramente tebrica, mas também existe na consciéncia prética, quer dizer, a consciéncia que se emancipa e est4 em contra~ digio com o modo de produgio existente no forma apenas religides flosofias, mas também Es- tados. (S. M.) 143 © LEITOR DE MARX primeira forma, na familia, onde a mulher e os filhos sao escravos do ho- mem. A escravidao na familia, ainda latente e rstica, é a primeira proprie- dade, que aqui, diga-se de passagem, corresponde ja a definigao dos economistas modernos, segundo a qual a propriedade € o poder de dispor da forga de trabalho alheia. Além do mais, divisio do trabalho e proprieda- de privada sao expressGes idénticas — numa € dito com relag4o a propria atividade aquilo que, noutra, € dito com relagio ao produto da atividade. *Além disso, com a divisdo do trabalho, dé-se ao mesmo tempo a contra- dicdo entre o interesse dos individuos ou das familias singulares e o interes- se coletivo de todos os individuos que se relacionam mutuamente; e, sem diivida, esse interesse coletivo nao existe meramente na representagao, “in- teresse geral”, mas, antes, na realidade, como dependéncia reciproca dos individuos entre os quais 0 trabalho esta dividido. E, finalmente, a divisio do trabalho nos oferece de pronto o primeiro exemplo de que, enquanto o: homens se encontram na sociedade natural e, Portanto, enquanto ha a se- Paracao entre interesse particular e interesse comum, enquanto a atividade, por consequéncia, esta dividida nao de forma voluntéria, mas de fort natural, a propria agao do homem torna-se um poder que lhe é estranho *é precisamente dessa contradigéo do interesse particular com o interesse coletivo que o intere: coletivo assume, como Estado, uma forma auténoma, separada dos reais interesses singulares gerais e, ao mesmo tempo, como comunidade iluséria, mas sempre fundada sobre a base real [r en dos lagos existentes em cada conglomerado familiar e tribal, tais como os lagos de sangue, linguagem, a diviséo do trabalho em escala ampliada e demais interesses — e em especial, com desenvolveremos mais adiante, fundada sobre as classes ja condicionadas pela divisio do trabalho, gue se isolam em cada um desses aglomerados humanos ¢ em meio aos quais hé uma classe qi domina todas as outras. Dai se segue que todas as lutas no interior do Estado, a luta entre dem cracia, aristocracia ¢ monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc., nao sio mais do que form: ilusorias — em geral, a forma ilus6ria da comunidade — nas quais so travadas as lutas reais ent as diferentes classes (algo de que os tedricos alemaes sequer suspeitam, muito embora lhes ten! sido dada orientagdo suficiente nos Deutsch-Franzisische Jabrbiicher e n’A sagrada familia), e, alé disso, segue-se que toda classe que almeje 8 dominacdo, ainda que sua dominagio, como € 0 « do proletariado, exija a superacao de toda a antiga forma de sociedade e a superacio da dominagao em geral, deve primeiramente conquistar © poder politico, para apresentar seu interesse como interesse geral, o que cla no primeiro instante se vé obrigada a fazer. E justamente porque os indi= viduos buscam apenas seu interesse particular, que para eles néo guarda conexdo com seu interesse coletivo, que este iltimo € imposto a eles como um interesse que Ihes é “estranho” e que deles “independe”, por sua vez, como um interesse “geral” especial, peculiar; ou, eto, os prdprios in= dividuos tém de mover-se em meio a essa discordancia, como na democracia. Por outro lado, a luta pritica desses interesses particulares, que se contrapdem constantemente e de modo real aos inte~ resses coletivos ou ilusoriamente coletivos, também torna necessério a ingeréncia € a contengio. Priticas por meio do ilusério interesse “geral” como Estado. (A. M.) 144 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPCAO MATERIALISTA... aele é contraposto, um poder que subjuga o homem em vez de por este dominado. Logo que o trabalho comega a ser distribuido, cada um passa ter um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e qual n4o pode escapar; o individuo € cagador, pescador, pastor ou critico ico, e assim deve permanecer se nao quiser perder seu meio de vida — ao O que, na sociedade comunista, onde cada um nao tem um campo de idade exclusivo, mas pode aperfeicoar-se em todos os ramos que lhe adam, a sociedade regula a produgao geral e me confere, assim, a possi- idade de hoje fazer isto, amanha aquilo, de cagar pela manha, pescar a de, A noite dedicar-me a criagéo de gado, criticar apés o jantar, exata- nnte de acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caca- sr, pescador, pastor ou critico.* Esse fixar-se da atividade social, essa solidacao de nosso préprio produto num poder objetivo situado acima nds, que foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e ani- ila nossas conjeturas, € um dos principais momentos no desenvolvimento térico até aqui realizado.** O poder social, isto 6, a forga de produgao Itiplicada que nasce da cooperacao dos diversos individuos condiciona- pela divisdo do trabalho, aparece a esses individuos, porque a propria peracdo nao é voluntaria mas natural, nado como seu préprio poder uni- do, mas sim como uma poténcia estranha, situada fora deles, sobre a al nao sabem de onde veio nem para onde vai, uma poténcia, portanto, ¢ nao podem mais controlar e que, pelo contrério, percorre agora uma éncia particular de fases e etapas de desenvolvimento, independente do erer e do agir dos homense que até mesmo dirige esse querer e esse agir.*** *O comunismo ndo € para nds um estado de coisas [Zustand] que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade devera se direcionar. Chamamos de comunismo 0 movimento real que su- pera o estado de coisas atual. As condigdes desse movimento [devem ser julgadas segundo a pr6pria realidade efetiva. (S. M.)] resultam dos pressupostos atualmente existentes. (A. M.) **ena propriedade, que, sendo inicialmente uma instituicao feita pelos préprios homens, nfo tarda a imprimir a sociedade um rumo proprio, de forma alguma pretendido por seus fundadores e visi vel a todo aquele que nao se encontre enredado na “Autoconsciéncia” ou no “Unico”. ($. M.) ***Essa “alienacdo” Entfremdung] para usarmos um termo compreensivel aos fil6sofos, s6 pode ser superada, evidentemente, sob dois pressupostos prdticos. Para que ela se torne um poder “insu- portavel”, quer dizer, um poder contra o qual se faz uma revolucio, € preciso que ela tenha produ- zido a massa da humanidade como absolutamente “sem propriedade” e, a0 mesmo tempo, em contradigao com um mundo de riqueza e de cultura existente, condicdes que pressupdem um grande aumento da forca produtiva, um alto grau de seu desenvolvimento — e, por outro lado, esse desenvolvimento das forgas produtivas (no qual ja esta contida, ao mesmo tempo, a existéncia 145 © LEtTOR DE MARX Sendo, como poderia, por exemplo, ter a propriedade uma histéria, assu- mir diferentes formas, e a propriedade da.terra — de acordo com os diferen- tes pressupostos em questo — ser impelida, na Franga, do parcelamento a centralizagao em poucas maos e, na Inglaterra, da centralizacao em poucas mos ao parcelamento, como hoje é realmente 0 caso? Ou como se explica que 0 comércio, que nao é mais do que a troca de produtos de individuos e paises diferentes, domine o mundo inteiro por meio da relacéo de oferta e Procura — uma relagdo que, como diz um economista inglés, paira sobre a terra igual ao destino dos antigos e distribui com mio invisivel a felicidade e a desgraca entre os homens, funda e destréi impérios, faz povos nascerem e desaparecerem — enquanto com a superacdo da base, da propriedade priva- da, com a regulac4o comunista da produgdo e, ligada a ela, a supressio da relacao alienada dos homens com seus préprios produtos, o poder da rela- Ao de oferta e procura reduz-se a nada e os homens retomam seu poder sobre a troca, a producio e o modo de seu relacionamento recfproco?* A forma de intercambio, condicionada pelas forcas de produg4o existen- tes em todos os estdgios histéricos precedentes e que, por seu turno, as condiciona, é a sociedade civil; esta, como se deduz do que foi dito acima, tem por pressuposto ¢ fundamento a familia simples e a familia composta, empirica humana, dada nao no plano local, mas no plano hist6rico-mundial) & um pressuposto pratico, absolutamente necessario, pois sem ele apenas se generaliza a escassez €, portanto, com a carestia, as lutas pelos géneros necessérios recomecariam e toda a velha imundice acabaria por se restabelecer; além disso, apenas com esse desenvolvimento universal das forcas produtivas € posto tum intercémbio universal dos homens e, com isso, é produzido simultaneamente em todos os po- vos o fenémeno da massa “sem propriedade” (concorréncia universal), tornando cada um deles dependente das revolugées do outros e, finalmente, individuos empiricamente universais, hist6rico- mundiais, s40 postos no lugar dos individuos locais. Sem isso, 1) 0 comunismo poderia existir apenas como fenémeno local; 2) as préprias forcas do intercambio nao teriam podido se desenvol- ver como forgas universais e, portanto, como forgas insuportaveis; elas teriam permanecido como “circunstancias” doméstico-supersticiosas; e 3) toda ampliacao do intercimbio superaria 0 comu- nismo local. © comunismo, empiricamente, é apenas possivel como ago “repentina” e simulténea dos povos dominantes, o que pressupde o desenvolvimento universal da forca produtiva e o inter- cambio mundial associado a esse desenvolvimento. (A. M.) “Além disso, a massa dos simples trabalhadotes — forca de trabalho massiva, excluida do capital ou de qualquer outra satisfacao limitada — pressup6e 0 mercado mundial e também a perda, néo mais temporaria ¢ devida a concorréncia, desse prOprio trabalho enquanto uma fonte segura de vida. O proletariado [pressupée, portanto, a histéria universal como existéncia empirica prética. (S.M.)] s6 pode, portanto, existir hist6rico-mundialmente, assim como o comunismo; sua acdo sé. pode se dar como existéncia “histérico-mundial”; existéncia hist6rico-mundial dos individuos, ou Seja, existéncia dos individuos diretamente vinculada & historia mundial, (A. M.) 146 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPCAO MATERIALISTA... im chamada tribo,"' cujas determinag6es mais precisas foram expostas tiormente. Aqui j4 se mostra que essa sociedade civil é o verdadeiro e cendrio de toda a hist6ria, e quao absurda é a concepgio histérica rior que descuidava das relagées reais, limitando-se 4s pomposas ages principes e dos Estados. *Até o momento consideramos principalmente apenas um aspecto da idade humana, o trabalho dos homens sobre a natureza, O outro aspec- o trabalho dos homens sobre os homens [...]2 EM DO ESTADO E RELACAO DO ESTADO COM A SOCIEDADE CIVIL histéria nada mais é do que o suceder-se de gerag6es distintas, em que uma delas explora os materiais, os capitais e as forcas de produgao a transmitidas pelas geragGes anteriores; portanto, por um lado ela conti- a atividade anterior sob condig6es totalmente alteradas e, por outro, difica com uma atividade completamente diferente as antigas condigdes, ue entdo pode ser especulativamente distorcido, ao converter-se a histé- posterior na finalidade da anterior, por exemplo, quando se atribui a oberta da América a finalidade de facilitar a irrupgao da Revolugao ncesa,'3 com o que a histéria ganha finalidades 4 parte e torna-se uma soa ao lado de outras pessoas” (tais como: “Autoconsciéncia, Critica, fico” etc.), enquanto o que se designa com as palavras “destinagao”, “fi- idade”, “nticleo”, “ideia” da histéria anterior nado é nada além de uma ‘ago da histéria posterior, uma abstragdo da influéncia ativa que a his- ia anterior exerce sobre a posterior. Ora, quanto mais no curso desse desenvolvimento se expandem os cfr- los singulares que atuam uns sobre os outros, quanto mais 0 isolamento ‘imitivo das nacionalidades singulares é destrufdo pelo modo de produ- 0 desenvolvido, pelo intercambio e pela divisdo do trabalho surgida de rma natural entre as diferentes nagdes, tanto mais a histéria torna-se téria mundial, de modo que, por exemplo, se na Inglaterra é inventada *Intercdmbio e forca produtiva. (A. M.) 147 © LEITOR DE MARX uma m4quina que na fndia e na China tira o pao a intimeros trabalhadores e subverte toda a forma de existéncia desses impérios, tal invengdo torna-se um fato histérico-mundial; ou pode-se demonstrar o significado histéri- co-mundial do agucar e do café no século XIX pelo fato de que a falta desse produto, resultado do bloqueio continental napolednico, provo- cou a sublevagao dos alemdes contra Napoledo e foi, portanto, a base real [reale] das gloriosas guerras de libertagio de 1813. Segue-se dai que essa transformagao da histéria em histéria mundial nao é um mero ato abstrato da “autoconsciéncia”, do espfrito mundial ou de outro fantasma metafisico qualquer, mas sim uma ado plenamente material, empiricamente verifica- vel, uma acdo da qual cada individuo fornece a prova, na medida em que anda ¢ para, come, bebe e se veste. Na histéria que se deu até aqui é sem davida um fato empirico que os individuos singulares, com a expansao da atividade numa atividade histé- rico-mundial, tornaram-se cada vez mais submetidos a um poder que lhes: € estranho (cuja opressao eles também representavam como um ardil do assim chamado espirito universal etc.), um poder que se torna cada vez maior e que se revela, em filtima instancia, como mercado mundial. Mas € do mesmo modo empiricamente fundamentado que, com o desmorona- mento do estado de coisas existente da sociedade* por obra da revolugdo comunista (de que trataremos mais a frente) e com a superacao da proprie- dade privada, superacdo esta que é idéntica Aquela revolugao, esse poder, que para os tedricos alemaes € tao misterioso, é dissolvido e entdo a liber- tagao de cada individuo singular € atingida na mesma medida em que a hist6ria transforma-se plenamente em histéria mundial. De acordo com o ja exposto, é claro que a efetiva riqueza espiritual do individuo depende inteiramente da riqueza de suas relagdes reais. Somente assim os individu- os singulares sao libertados das diversas limitagdes nacionais e locais, sto Ppostos em contato pratico com a producao (incluindo a produgio espiritual) do mundo inteiro e em condigées de adquirir a capacidade de fruigdo des sa multifacetada produgao de toda a terra (criagdes dos homens). A depen- déncia multifacetada, essa forma natural da cooperagao hist6rico-mundial “Sobre a produgao da consciéncia. (A. M.) 148 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPGAO MATERIALISTA... los individuos, é transformada, por obra dessa revolugéo comunista, no ntrole e dominio consciente desses poderes, que, criados pela atuagao ciproca dos homens, a eles se impuseram como poderes completamente tranhos e os dominaram. Essa vis4o pode, agora, ser apreendida de modo peculativo-idealista, isto €, de modo fantastico, como “autocriagao do énefo” (a “sociedade como sujeito”) de maneira que a sequéncia sucessiva individuos em conex4o uns com os outros é representada como um ico individuo que realiza o mistério de criar a si mesmo. Mostra-se aqui, rtamente, que os individuos fazem-se uns aos outros, fisica e espiritual- nte, mas nao fazem a si mesmos, seja no sentido de S40 Bruno,* tam- co no sentido do “Unico”, do homem “feito”. Finalmente, da concep¢ao de histéria exposta acima obtemos, ainda, os intes resultados: 1) No desenvolvimento das forcas produtivas advém a fase em que surgem forgas produtivas e meios de intercambio que, no co das relagGes existentes, causam somente maleficios e nao sao mais gas de produgao, mas forcas de destruigéo (maquinaria e dinheiro) — e, da a isso, surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da socie- le sem desfrutar de suas vantagens e que, expulsa da sociedade, é forgada ais decidida oposi¢ao a todas as outras classes; uma classe que configura maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciéncia da ne- idade de uma revolugio radical, a consciéncia comunista, que também le se formar, naturalmente, entre as outras classes, gracas 4 percep¢ao da agdo dessa classe; 2) que as condigGes sob as quais determinadas forgas produgao podem ser utilizadas sao as condigdes da dominagao de uma erminada classe da sociedade,** cujo poder social, derivado de sua rique- tem sua expressdo pr4tico-idealista na forma de Estado existente em *e em razao de que “no conceito (1) de personalidade (2) ocorre (3) em geral (4) que ele mesmo se coloque como limitado” (0 que ele consegue realizar consideravelmente), “e que cle novamente (5) venha a suprimir aufzuheben] (6) essa limitagao que ela instaura (7)” (no por si mesma, nem de maneira geral, também nao por seu conceito, mas) “por sua esséncia (8) universal (2), pois justa~ mente essa esséncia é apenas o resultado de sua autodiferenciacao (10) interna (11), de sua ativida- de”, p. 87-8 [do artigo “Caracterizagio de Ludwig Feuerbach”. Ainda no sentido do “Unico” do homem “feito”. (O senhor Bruno nao chega & diizia). (A. M.) #*2) cada fase de desenvolvimento das forcas de producao serve de base & dominagao de uma deter- minada classe da sociedade. (V. M.) 149 © LEITOR DE MARX cada caso; € essa a raz4o pela qual* toda luta revolucionéria dirige-se contra uma classe que até entao dominou;** 3) que em todas as revolugées anterio- res a forma da atividade permaneceu intocada, e tratava-se apenas de ins- taurar uma outra forma de distribuicéo dessa atividade, uma nova distribuigéo do trabalho entre outras pessoas, enquanto a revolugéo comu- nista volta-se contra a forma da atividade existente até ent4o, suprime trabalho*** e supera (aufhebt] a dominacao de todas as classes ao superar as proprias classes, pois essa revolucio é realizada pela classe que, na socieda- de, nao é mais considerada como uma classe, nao é reconhecida como tal, sendo jA a expressio da dissolugo de todas as classes, nacionalidades etc., no interior da sociedade atual e 4) que tanto para a criagio em massa des consciéncia comunista quanto para o éxito da propria causa faz-se necessé: ria uma transformagao massiva dos homens, o que sé se pode realizar por um movimento pratico, por uma revolugdo; que a revolug4o, portanto, necess4ria nao apenas porque a classe dominante nao pode ser derruba de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revoluca a classe que derruba detém o poder de desembaracar-se de toda a anti imundicie e de se tornar capaz de uma nova fundagdo da sociedade. Essa concep¢ao da hist6ria consiste, portanto, em desenvolver o proce: so real de produgio**** a partir da producao material da vida imediata € e conceber a forma de intercAmbio conectada a esse modo de produgio e po! ele engendrada, quer dizer, a sociedade civil em seus diferentes estdgio: como o fundamento de toda a histéria, tanto a apresentando em sua agai como Estado como explicando a partir dela o conjunto das diferentes cria- Ges te6ricas e formas da consciéncia — religiao, filosofia, moral et etc.***** — e em seguir o seu processo de nascimento a partir dessas criagGe: © que ent4o torna possivel, naturalmente, que a coisa seja apresentada e1 sua totalidade (assim como a ago reciproca entre esses diferentes aspectos). *No dltimo estagio da sociedade burguesa. (S. M.) **Que as pessoas estio interessadas em manter 0 atual estado de produglo. (A. M.) **¥a forma moder{na] da atividade sob a dominagio da [...] (S. M.) **** Feuerbach. (A. M.) ++ *explicando asociedade civil em suas diferentes fases e em seu reflexo prético-idealista, Estado, assim como 0 conjunto dos diversos produtos e formas tedricas da consciéncia, da religiao, da filo- sofia, da moral etc. etc. (V. M.) 150 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPGAO MATERIALISTA.., nao tem necessidade, como na concepgio idealista da histéria, de pro- urar uma categoria em cada perfodo, mas sim de permanecer constante- nte sobre o solo da histéria real; nao de explicar a praxis partindo da deia, mas de explicar as formacées ideais a partir da praxis material e che- com isso, ao resultado de que todas as formas e [todos os] produtos da easciéncia nao podem ser dissolvidos por obra da critica espiritual, por sua olugdo na “autoconsciéncia” ou sua transformacdo em “fantasma”, “es- ‘0”, “visGes” etc., mas apenas pela demoligdo pratica das relag6es so- reais [realen] de onde provém essas enganac6es idealistas; nao é a ritica, mas a revolugao a forga motriz da historia ¢ também da religiao, da osofia e de toda forma de teoria. Essa concep¢ao mostra que a histéria 40 termina por dissolver-se, como “espirito do espfrito”, na “autoconsci- acia”, mas que em cada um dos seus estagios encontra-se um resultado aterial, uma soma de forcas de producao, uma relacao historicamente es- belecida com a natureza ¢ que os individuos estabelecem uns com os ou- 3; Telagdo que cada geracio recebe da geragao passada, uma massa de cas produtivas, capitais e circunstancias que, embora seja, por um lado, odificada pela nova geracao, por outro lado prescreve a esta tiltima suas prias condigées de vida e lhe confere um desenvolvimento determinado, n cardter especial — que, portanto, as circunstancias fazem os homens, sim como os homens fazem as circunstancias. Essa soma de forgas de pro- a¢40, capitais e formas sociais de intercambio, que cada individuo e cada eracdo encontram como algo dado, € o fundamento real [reale] daquilo ue os fildsofos representam como “substancia” e “esséncia do homem”, quilo que eles apoteosaram e combateram; um fundamento real que, em pus efeitos e influéncias sobre o desenvolvimento dos homens, nao é nem = longe atingido pelo fato de esses filésofos contra ele se rebelarem como toconsciéncia” e como o “Unico”. Essas condigGes de vida j4 encontra- pelas diferentes gerag6es decidem, também, se as agitagGes revolucion4- que periodicamente se repetem na historia serao fortes o bastante para abverter as bases de todo o existente, e se os elementos materiais de uma ubversao total, que sao sobretudo, de um lado, as forgas produtivas exis- entes e, de outro, a formagao de uma massa revolucionéria que revolucio- = ndo apenas as condigées particulares da sociedade até entdo existente, 151 © LEITOR DE MARX como também a propria “produgao da vida” que ainda vigora — a “ativida- de total” na qual a sociedade se baseia —, se tais elementos nao existem, entao € bastante indiferente, para o desenvolvimento pratico, se a ideia dessa subversao j4 foi proclamada uma centena de vezes— como o de- monstra a histéria do comunismo. Toda concepg¢ao histérica existente até entao ou tem deixado completa- mente desconsiderada essa base real da histéria, ou a tem considerado ape- nas como algo acessério, fora de toda e qualquer conexdo com o fluxo historico. A hist6ria deve, por isso, ser sempre escrita segundo um padrao situado fora dela; a produgdo real da vida aparece como algo pré-histérico, enquanto 0 elemento histérico aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e supraterreno. Com isso, a relagéo dos homens com a na- tureza € exclufda da hist6ria, o que engendra a oposigdo entre natureza e historia. Daf que tal concepgfo veja na historia apenas acdes politicas dos principes e dos Estados, lutas religiosas e simplesmente teoréticas e, especial- mente, que ela tenha de compartilhar, em cada época histérica, da ilusdéo dessa época. Por exemplo, se uma €poca se imagina determinada por moti- vos puramente “politicos” ou “religiosos”, embora “religido” e “politica” sejam téo somente formas de seus motivos reais, entao o historiador dessa €poca aceita essa opinido. A “imaginagao”, a “representacdo” desses homens determinados sobre a sua praxis real € transformada na tinica forga determi- nante € ativa que domina e determina a prdtica desses homens. Quando a forma rudimentar em que a divisdo do trabalho se apresenta entre os hindus € entre os egipcios provoca nesses povos o surgimento de um sistema de castas proprio de seu Estado e de sua religiao, entdo o historiador cré que o sistema de castas é a forga que criou essa forma social rudimentar. Enquanto os franceses € os ingleses se limitam 4 ilusdo politica, que se encontra por certo mais préxima da realidade, os alemaes se movem no 4mbito do “espi- rito puro” e fazem da ilusao religiosa a forga motriz da histéria. A filosofia hegeliana da histéria é a tiltima consequéncia, levada A sua “mais pura ex- pressio”, de toda essa historiografia alem, para a qual ndo se trata de inte- resses reais, nem mesmo politicos, mas apenas de pensamentos puros, os quais, por conseguinte, devem aparecer a SAo Bruno como uma série de “pensamentos” que deyoram uns aos outros e, por fim, submergem na auto- 152 ELEMENTOS FUNOANTES DE UMA CONCEPCAO MATERIALISTA... sciéncia; e, de modo ainda mais consequente, a Sao Max Stirner, que nao nada da histéria real, o curso da historia tem de aparecer como uma a histéria de “cavaleiros”, salteadores e fantasmas, de cujas visées ele ralmente s6 consegue se salvar pela “profanacao”.* Tal concepgao € dadeiramente religiosa, pressupde 0 homem religioso como o homem imitivo do qual parte toda a historia e, em sua imaginagdo, poe a produgio igiosa de fantasias no lugar da produgdo real dos meios de vida e da pro- fia vida. Toda essa concepgao da histéria, bem como sua dissolugao e os ipulos e diividas que dela derivam, é um assunto meramente nacional alemaes e tem apenas interesse local para a Alemanha, como, por exem- , a importante questao, muito debatida recentemente, de como se passa riamente “do reino de Deus para o reino dos homens”, como se esse ‘0 de Deus” alguma vez tivesse existido a nao ser na imaginagdo e como ‘esses doutos senhores no tivessem vivido sempre, sem noté-lo, no “reino homens”, para o qual eles procuram, agora, 0 caminho; e como se o rtimento cientifico — pois nao vai além disso — que consiste em expli- as curiosidades dessas formagGes teéricas nebulosas nao residisse, ao existente numa outra extravagincia qualquer, isto é, de pressupor que esse absurdo possui um sentido a parte que tem de ser descoberto, en- tO se trata, tao somente, de esclarecer essas fraseologias tedricas a partir telacGes reais existentes. A dissolugao real, pratica, dessas fraseologias, 0 mento dessas representac¢des da consciéncia dos homens, sé ser reali- la, como j dissemos, por circunstancias modificadas e nao por dedugdes ricas. Para a massa dos homens, quer dizer, o proletariado, essas repre- tagdes tedricas nao existem; para eles, portanto, elas nao necessitam, ente, ser dissolvidas, e se essa massa alguma vez teve alguma represen- io tedrica, como, por exemplo, a religido, tais representacGes ja se encon- ha muito tempo dissolvidas pelas circunstancias. *A assim chamada historiografia objetiva consiste precisamente em conceber as condigées histéri- cas independentes da atividade. Cardter reaciondrio. (A. M.) **muito mais do que um divertimento cientifico éeria explicar, inclusive no detalhe, 0 fendmeno curioso dessas formagbes teéricas nebulosas a partir das relacdes terrestres reais, e pd-las a prova. (V. M.) 153 © LEITOR DE MARX O carter puramente nacional dessas questes e de suas solugdes mos- tra-se ainda no fato de que esses tedricos creem seriamente que alucina- g6es tais como “o homem-Deus”, “o homem” etc. tém presidido as diferentes épocas da hist6ria — Sao Bruno chega ao ponto de afirmar que apenas “a critica e os criticos tém feito a histéria” — e, quando eles pré- prios se entregam a fazer construgées hist6ricas, saltam com a maior pres- sa por sobre todos os periodos precedentes, passando de imediato da “civilizagéo mongol” para a histéria propriamente “plena de contetido”, sobretudo a histéria dos Hallische e dos Deutsche Jabrbiicher") e para a dissolucao da escola hegeliana numa discérdia geral. Todas as outras na- ges, todos os acontecimentos reais so esquecidos, 0 teathrum mundi" limita-se a feira de livros de Leipzig e as controvérsias recfprocas da “Cri- tica”, do “Homem” e do “Unico”. E se a teoria se decide, nem que seja por uma Gnica vez, por tratar dos temas verdadeiramente histéri- cos — como, por exemplo, o século XVIII — ela nos fornece apenas a histéria das representagdes, destacada dos fatos e dos desenvolvimentos histéricos que constituem a sua base; e fornece essa histéria, também, somente com a inteng4o de apresentar a Epoca em questéo como uma primeira etapa inacabada, como o prenincio ainda limitado da verdadeira época histdrica, isto é, da época da luta entre fildsofos alemaes de 1840 a 1844. Ao seu objetivo de escrever uma historia do passado para fazer res- plandecer com a maior intensidade a gloria de um personagem nao histé- rico e de suas fantasias, corresponde, pois, que nao seja citado nenhum dos verdadeiros acontecimentos histéricos, nem mesmo as intervengdes verdadeiramente histéricas da politica na histéria, e que, em seu lugar, nos seja oferecida uma narra¢do que n4o se baseia em estudos mas sim em construgées artificiais e em intrigas literarias — como foi 0 caso de Sao Bruno em sua ja esquecida Historia do século XVIII.” Esses pretensiosos e arrogantes merceeiros do pensamento, que creem estar infinitamente acima de todos os preconceitos nacionais, s40, na pratica, muito mais na- cionais do que os filisteus de cervejaria que sonham com a unidade alema. Nao reconhecem como histéricos os atos de outros povos; vivem na Ale- manha, com a Alemanha e para a Alemanha, transformam a cangao do Reno em hino religioso e conquistam a Alsdcia-Lorena, pilhando a filo- 154 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPGAO MATERIALISTA. fia francesa em vez do Estado francés, germanizando os pensamentos ceses em vez das provincias francesas. O senhor Venedey é um cosmo- lita se comparado com Sao Bruno e S40 Max, que, no império mundial teotia, proclamam o império mundial da Alemanha.* L-] *Nessas discussdes também fica claro 0 quanto se engana Feuerbach (na Wigand’s Vierteljahrss- chrift, 1845, tomo Il) quando, qualificando-se como “homem comum”, proclama a si mesmo co- ‘munista e transforma esse nome num predicado “do” homem, com o que ele acredita poder transformar numa mera categoria a palavra comunista, que, no mundo real, designa o membro de um determinado partido revolucionatio. Toda a dedugio de Feuerbach com respeito a relacao dos homens entre si busca apenas provar que os homens tém necessidade uns dos outros ¢ que sempre a tiveram. Ele quer estabelecer a consciéncia desse fato e, portanto, como os demais tedricos, quer apenas instaurar uma consciéncia correta sobre um fato existente, ao passo que, para o verdadeiro comunista, twata-se de derrubar o existente. Reconhecemos plenamente, alids, que Feuerbach, na medida em que se esforga para produzir a consciéncia desse fato, chega tao longe quanto um ted- rico em geral pode chegar sem deixar de ser te6rico e filésofo. E caracterfstico, no entanto, que S40 Bruno e S4o Max ponham a representacao feuerbachiana do comunista no lugar do comunista real, o que acontece em parte porque, desse modo, eles podem, como adyersarios da mesma linhagem, combater 0 comunismo como “espitito do espirito”, como categoria filos6fica — e, no caso de Sao Bruno, além disso, movido por interesses pragmaticos. Como exemplo dos simultancos reconheci- mento e desconhecimento do existente, que Feuerbach continua a compartilhar com nossos adver- sirios, lembremos a passagem da Filosofia do futuro onde ele afirma que o ser de uma coisa ou do homem é, a0 mesmo tempo, sua esséncia, que as determinadas condigées de existéncia, o modo de vida e a atividade de um individuo animal ou humano sao aquilo em que sua “esséncia” se sente satisfeita. Toda excegio €, aqui, expressamente concebida como um infeliz acaso, como uma anor- malidade que nao se pode mudar. Quando, portanto, milhdes de proletarios nao se sentem de forma alguma satisfeitos em suas condigdes de vida, quando seu “ser” nao corresponde em nada & sua “esséncia”, entio, de [acordo] com a passagem citada, trata-se de um infortéinio inevitavel que deve ser suportado tranquilamente. Entretanto, esses milhdes de proletarios e comunistas pensam de modo diferente ¢ provarao isso a seu tempo, quando puserem sua “existéncia” em harmonia ‘com sua “esséncia” de um modo prético, por meio de uma revolugio. Por isso Feuerbach, em tais casos, nunca fala do mundo humano, mas sempre se refugia na natureza externa e, mais ainda, na natureza ainda n3o dominada pelos homens. Mas cada nova invengao, cada avanco feito pela in- diistria, arranca um novo pedaco desse terreno, de modo que o solo que produz os exemplos de tais proposigdes feuerbachianas restringe-se progressivamente. A “esséncia” do peixe € 0 seu “ser”, a 4gua — para tomar apenas uma de suas proposigées. A “esséncia” do peixe de rio é a 4gua de um rio. Mas esta dltima deixa de ser a “esséncia” do peixe quando deixa de ser um meio de existéncia adequado ao peixe, tio logo 0 rio seja usado para servir a indistria, to logo seja poluido por co- rantes e outros detritos e seja navegado por navios a vapor, ou tao logo suas éguas sejam desviadas para canais onde simples drenagens podem privar 0 peixe de seu meio de existéncia. Dizer que contradigdes como essas sdio anormalidades inevitdveis nao difere, essencialmente, do lenitivo que S40 Max Stirner oferece aos descontentes, dizendo que essa contradicao é sua propria contradigao fe que essa situagio dificil é sua propria situagao dificil, com o que eles poderiam, ou acalmar suas mentes, ou guardar sua indignagdo para si mesmos, ou revoltar-se contra isso de algum modo fan- tastico. Isso difere muito pouco da alegacao de S40 Bruno de que essas circunstancias desfavordveis devem-se ao fato de que aqueles insatisfeitos estao presos ao lixo da “substancia”, nao progrediram 4 “autoconsciéncia absoluta” e ndo percebem que essas condigGes adversas s4o espirito do seu es- pirito. (A. M.) 155 © LEITOR DE MARX As ideias da classe dominante s40, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que € a forca material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua forga espiritual dominante. A classe que tem a sua disposigdo os meios da produgao material dispde também dos meios da produgao espiri- tual, de modo que a ela estao submetidos aproximadamente ao mesmo tem- po os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produgaéo espiritual. As ideias dominantes nao s4o nada mais do que a expresso ideal* das relagdes materiais dominantes, séo as relagdes materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, sdo a expressao das relacdes que fazem de uma classe a classe dominante, sao as ideias de sua dominagao. Os indi- viduos que compéem a classe dominante possuem, entre outras coisas, tam- bém consciéncia e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo 0 ambito de uma época histérica, é evidente que eles 0 fazem em toda a sua extensdo, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regu- lam a produgio e a distribuigdo das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias sao as ideias dominantes da época. Por exemplo, numa épo- ca e num pais em que o poder mondrquico, a aristocracia e a burguesia lu- tam entre si pela dominagao, onde portanto a dominagio esta dividida, aparece como ideia dominante a doutrina da separagao dos poderes, enun- ciada entéo como uma “lei eterna”. A divisao do trabalho, que j4 encontramos acima [...] como uma das forgas principais da histéria que se deu até aqui, se expressa também na classe dominante como divisao entre trabalho espiritual e trabalho material, de maneira que, no interior dessa classe, uma parte aparece como os pensa- dores dessa classe, como seus idedlogos ativos, criadores de conceitos, que fazem da atividade de formagao da ilusdo dessa classe sobre si mesma 0 seu meio principal de subsisténcia, enquanto os outros se comportam diante dessas ideias e ilusdes de forma mais passiva e receptiva, pois sao, na reali- dade, os membros ativos dessa classe e tem menos tempo para formar ilt- sdes e ideias sobre si préprios. No interior dessa classe, essa cisio pode evoluir para uma certa oposigao e hostilidade entre as duas partes, a qual, *ideolégica. (V. M.) 156 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPGAO MATERIALISTA... entanto, desaparece por si mesma a cada colisio pratica em que a pré- ia classe se vé ameagada, momento no qual se desfaz também a aparéncia que as ideias dominantes néo seriam as ideias da classe dominante e de elas teriam uma forga distinta da forga dessa classe. A existéncia de jas revolucionarias numa determinada época pressupoe desde j4 a exis- cia de uma classe revoluciondria, sobre cujos pressupostos ja foi dito teriormente o necessirio [...]. Ora, se na concep¢ao do curso da hist6ria separarmos as ideias da classe minante da prépria classe dominante e as tornarmos auténomas, se per- necermos no plano da afirmagao de que numa época dominaram estas aquelas ideias, sem nos preocuparmos com as condigées da produgio m com os produtores dessas ideias,* se, portanto, desconsiderarmos os dividuos e as condigées mundiais que constituem o fundamento dessas as, entao poderemos dizer, por exemplo, que durante 0 tempo em que aristocracia dominou dominaram os conceitos de honra, fidelidade etc., quanto durante o dom{nio da burguesia dominaram os conceitos de liber- de, igualdade etc.** A propria classe dominante geralmente imagina isso. a concep¢ao da historia, comum a todos os historiadores principalmente de o século XVIII, deparar-se-4 necessariamente com 0 fendmeno de e as ideias que dominam sao cada vez mais abstratas, isto €, ideias que uumem cada vez mais a forma da universalidade. Realmente, toda nova se que toma o lugar de outra que dominava anteriormente é obrigada, a atingir seus fins, a apresentar seu interesse como o interesse comum de os os membros da sociedade, quer dizer, expresso de forma ideal: € obri- a a dar as suas ideias a forma da universalidade, a apresent4-las como as icas racionais, universalmente validas. A classe revoluciondria, por j4 se ontar desde o inicio com uma classe, surge nao como classe, mas sim mo representante de toda a sociedade; ela aparece como a massa inteira Tee na concepgao do curso da histériafizermos abstragio e permanecermos no plano da afirmacéo de que numa época dominaram estas © aquelas ideias, sem nos preocuparmos com 0 modo (as formas, as condigdes) de producto dessas ideias. (V. M.) **A propria classe dominante tem, em média, a representacio de que seus conceitos dominaram e os diferencia das representacdes dominantes de épocas precedentes apenas porque os apresenta como verdades eternas. Esses “conceitos dominantes” terdo uma forma tanto mais geral ¢ abran- gente quanto mais a classe dominante precisar apresentar seus interesses como os interesses de to dos os membros da sociedade. (S. M.) 157 © LEITOR DE MARX da sociedade diante da nica classe dominante.* Ela pode fazer isso porq no inicio seu interesse realmente ainda coincide com 0 interesse coletivo todas as demais classes nao dominantes e porque, sob a pressio das con Ges até entdo existentes, seu interesse ainda nao péde se desenvolver co interesse particular de uma classe particular. Por isso, sua vitoria serve, ta bém, a muitos individuos de outras classes que nao alcancaram a domi: ¢4o, mas somente na medida em que essa vitéria coloque agora e: individuos na condigao de se elevar classe dominante. Quando a bur, sia francesa derrubou a dominac&o da aristocracia, ela tornou possivel muitos proletarios elevar-se acima do proletariado, mas isso apenas na dida em que se tornaram burgueses. Cada nova classe instaura sua domii ¢4o somente sobre uma base mais ampla do que a da classe que domina’ até ent&o, enquanto, posteriormente, a oposigao das classes nao domin: tes contra a classe entao dominante torna-se cada vez mais aguda e m profunda. Por meio dessas duas coisas estabelece-se a condigao de que luta a ser travada contra essa nova classe dominante deva propor-se, contrapartida, a uma negacdo mais resoluta e mais radical das condigdes entao existentes do que a que puderam fazer todas as classes anteriores q aspiravam 4 dominagao. Toda essa aparéncia, como se a dominacio de uma classe determin: fosse apenas a dominacao de certas ideias, desaparece por si s6, natur: mente, tao logo a dominagao de classe deixa de ser a forma do ordenam to social, tao logo nao seja mais necessdrio apresentar um intere: particular como geral ou “o geral” como dominante.** Uma vez que as ideias dominantes s4o separadas dos individuos do: nantes e, sobretudo, das relagdes que nascem de um dado est4gio do moi de produgio, e que disso resulta o fato de que na histéria as ideias semp: dominam, é muito facil abstrair dessas diferentes ideias “a ideia” etc. co! o dominante na hist6ria, concebendo com isso todos esses conceitos e idei *(Auniversalidade corresponde 1. 8 classe contra o estamento, 2. concorréncia, ao intercam mundial etc., 3. a grande quantidade de membros da classe dominante, 4. 2 ilusao do inter comum. No comego, essa ilusdo € verdadeira. 5. Ao engano dos idedlogos e & divisio do ta Iho.) (A. M) **de apresentar um interesse particular, na prética, como interesse comum a todos e, na teors como interesse geral. (V. M.) 158 ELEMENTOS FUNDANTES DE UMA CONCEPCAO MATERIALISTA.. gulares como “autodeterminagdes” do conceito que se desenvolve na ist6ria.* Assim o fez a filosofia especulativa. Ao final da Filosofia da Histé- ia, o proprio Hegel assume que “considera somente 0 progresso do concei- ” e que expés na historia a “verdadeira teodiceia” (p. 446). Podemos, ste momento, retornar aos produtores** “do conceito”, aos teéricos, ideé- gos e fildsofos, e entéo chegamos ao resultado de que os filésofos, os nsadores como tais, sempre dominaram na histéria — um resultado que, mo vemos, também j4 foi proclamado por Hegel.” Todo o truque que mnsiste em demonstrar a supremacia do espirito na histéria (hierarquia, em irner) reduz-se aos trés seguintes esforcos. N° 1. Deve-se separar as ideias dos dominantes — que dominam por Ges empiricas, sob condigdes empiricas e como individuos mate- is — desses préprios dominantes e reconhecer, com isso, a dominagao ideias ou das ilusdes na histéria. N° 2. Deve-se colocar uma ordem nessa dominagio das ideias, demonstrar *** entre as ideias sucessivamente dominantes, o que pode levado a efeito concebendo-as como “autodeterminagées do conceito” (o ie € possivel porque essas ideias, por meio de sua base empirica, estao real- nte em conexdo entre si e porque, concebidas como meras ideias, se tor- autodiferenciagGes, diferengas estabelecidas pelo pensamento). N° 3. A fim de eliminar a aparéncia mfstica desse “conceito que se auto- termina”, desenvolve-se-o numa pessoa — “a autoconsciéncia” — ou, ‘a parecer perfeitamente materialista, numa série de pessoas, que repre- tam “o conceito” na histéria, nos “pensadores”, nos “fildsofos”,**** nos -dlogos, concebidos como os fabricantes da histéria, como “o conselho s guar dides”, como os dominantes.***** Comisso, eliminam-se da histéria conexdo mistica’ *E, desse modo, também natural que todas as relagdes dos homens possam ser deduzidas do con- ceito de homem, do homem representado, da esséncia do homem, do homem. (A. M.) **representantes. (V. M.) *** Logica. (V. M.) **** homem: o “espfrito humano pensante”. (A. M.) *****Esse método hist6rico, que com razao reinou principalmente na Alemanha, tem de ser de- senvolvido a partir da conexéo com a ilus4o dos idedlogos em geral, por exemplo, com as ilusdes dos juristas, dos politicos (e também, entre eles, os homens de Estado praticos), a partir das quime- ras dogmaticas e das distorgdes desses sujeitos, o que se explica de modo bem simples a partir de sua posigao prética na vida, de seus negécios e da divisio do trabalho. (A. M.) 159 © LEITOR DE MARX todos os elementos materialistas e se pode, entdo, soltar tranquilamente rédeas de seu corcel especulativo. Enquanto na vida comum qualquer shopkeeper” sabe muito bem a difere: ¢@ entre o que alguém faz de conta que é e aquilo que ele realmente é, no: historiografia ainda nao atingiu esse conhecimento trivial, Toma cada ép: por sua palavra, acreditando naquilo que ela diz e imagina sobre si mesma. 160

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