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si2ar0%s Wolter 15" Congresso de Letra do Brasil POETICA DO HACER: POETICA DA LEITURA E POETICA DA NARRATIVA NA OBRA BORGEANA Heloisa Helena Siqueira Correia ~ UNICAMP - FAI - Faculdades Adamantinenses Integradas / FAJOPA - Faculdade Joao Paulo I © critico uruguaio Emir Rodriguez Monegal trabalhou a obra borgeana em termos de uma poética; para tanto, no decorrer de seu estudo adotou varias chaves de interpretacdo, dentre elas duas sdo especialmente importantes para a perspectiva desse trabalho: a poética da narrativa e a poética da leitura (MONEGAL, 1980, 1987). A poética da narrativa diz respeito diretamente & nocdo de causalidade magica que Borges desenvolve no ensaio El arte narrativo y la magia (BORGES, 1994a, p.226-31). Esta causalidade move-se por analogias; atraindo elementos estranhos e distantes ela coordena a narrativa, conduzindo-a para determinade fim. A postica da leitura, por sua vez, relaciona-se & emergéncia do leitor como co-criador do texto literério. Nas palavras de MONEGAL: Borges postula que reler, traduzir, s80 parte da invencSo literdria. E talvez que reler e traduzir s8o a invencao literdria. Dai a necessidade implicita de uma postica da leitura, (1980, p.91) De acordo com a perspectiva de simultaneldade que tento conferir ao meu trabalho, as poéticas focalizadas por Monegal se tornam indissocidvels sem privilégio de uma em detrimento da outra. A dindmica que envolve as duas posticas é a propria poética borgeana. A sua divisdo é apenas operacional e expositiva; cabe a leitura manté-1as em movimento. As poéticas so indissocidvels como um texto indissoclavel do leitor, As reflexes metalinglisticas presentes na obra borgeana resenham ambas poéticas. Considero que tais reflexdes reléem a teoria da literatura no que diz respeito justamente a rea que historicamente é a mais desenvolvida, trabalhada ¢ retrabalhada pelos teéricos: a teoria narrativa. As teorias da narrativa supdem, 2 sua maneira, que o texto literdrio seré recebido pelo leitor; a poética da narrativa borgeana faz o mesmo, mas reafirma na dimenso prética do fazer literério que 0 texto no pode existir sem o seu par simultneo: a poética da leitura. Esta também pode ser identificada nas reflexes metalinguisticas que povoam os textos borgeanos, Mas ndo é demais alertar que ambas posticas vo sendo construidas pela obra. O que quer dizer que elas ndo existem apenas enquanto compdem um mesmo conjunto de reflexes, o que seria atribuir & poética borgeana a abstracdo de uma teoria. O modo como 0 texto literdrio € construido, as histérias que conta, os desdobramentos que sugere, enfim, tudo 0 que participa da matéria e da forma dos textos, endo apenas as reflexdes metalinguisticas, agem mutuamente e configuram o ser da postica borgeana. Por isso ndo € possivel sistematizar a poética, sua ordem nao € a ordem do sisterna teérico que organiza hipéteses ou causas, conseqiiéncias ou efeitos; a ordem da postica é a ordem do fazer. Ela sempre esté em elaboracéo, trabalhada pelos contos, poemas, ensaios, resenhas, conferéncias, prélogos, epilogos e entrevistas A dimensao prética da poética borgeana jamais deve ser negligenciada, porque até seu préprio universalismo esté emaranhado aos adjetivos; temas; procedimentos; narrador; leitor; espaco; tempo; &s metéforas; reflexdes, imagens; personagens; de modo especifico a dindmica de cada texto, de forma delimitada pelo objetivo de cada texto, circunscrito 8 precisdo das palavras & frases sucessivas, Esta simultaneldade entre reflexao e fazer literério nao € de todo familiar ao leitor. Mas pode ser aos poucos vislumbrada, A-este ambiente ainda pouco familiar refere-se 0 filésofo Michel Foucault, no Prefacio do livro As palavras e as coisas, quando confessa seu mal-estar frente ao texto do escritor argentino Jorge Luis Borges, intitulado El idioma analitico de John Wilkins (BORGES, 1993, p.84-7), um texto que, segundo o pensador °. perturba todas as familiaridades do pensamento ..." (FOUCAULT, 1987, p.5), Pode-se dizer que esta evidéncia se estende por toda obra borgeana’e tem pelo menos uma conseqiiéncia avassaladora e imediata sobre o leitor: a constatagio da dificuldade de compreender 0 universo borgeano a luz de alguma teoria literdria determinada, & claro que as teorias literdrias podem auxiliar 0 ip a.com brlarquvo-merioesicos_arorioreslanaistS!Sam 2helisacorria im wm si2ar0%s 15" Congresso de Letra do Brasil leitor a construir, no o encaixe integro entre teoria e obra —9 que seria reducionista—, mas um horizonte de compreensao sobre ela. E preciso, entéo, promover 0 diglogo entre as teorias literérias e a obra borgeana, atentando-se 4s diferencas por vezes gritantes, mas s vezes sutis, entre os enunciados tedricos e as configuragées na obra. De forma completa nenhuma teoria é realmente sincrénica as obras literdrias, as teorias nascem da necessidade de compreensdo que as obras provocam; hé que se salvar os pontos de intersecdo que iluminam ou problematizam os elementos da narrativa borgeana, lembrando-se sempre que as teorias literdrias so construgées a posteriori Em toda obra borgeana pode-se perceber a presenca da poética em movimento, em elaboracao. Em menor ou maior medida, os textos, cada qual 4 sua maneira, colaboram para a compreenséo da pottica. Escolhi alguns textos como referenciais para compreender a poética porque, me parece, fornecem alusdes ¢ procedimentos mais evidentes do que seja a poética borgeana. O que no significa que outros textos ndo sejam relevantes para tal estudo, apenas que minha leitura sempre encontrou e reencontrou estes textos; o que torna a compreensao possivel a freqiiéncia da leitura e nao o simples contato, A obra borgeana pede uma leitura de totalidade impossivel. 0 leitor deve guiar- se por sua prépria medida, pela meméria que retém leituras anteriores, pela transubjetividade que movimenta a relacao com o texto, pela imaginacéo, pelas referancias externas de contexto, pelo senso critico e teérico. A leitura sempre corre 0 risco de resvalar no absoluto subjetivismo, isto ndo aconteceré se 0 leitor construir um saber sobre @ obra como um todo. Ainda que este saber seja um saber geral, permite ao leitor conhecer os limites de sua leitura, adquirindo condigées de estabelecer micro e macro relacées e criar interpretacdes que ndo se desviem dos pontos de fuga do universo da obra; levando ainda em consideragdo que os supostos pontos de fuga objetivos no estdo fixados para sempre, eles préprios também so dindmicos. Este é 0 desafio constante do leitor, € o exercicio que pretendo fazer aqui, quando quero saber sobre a poética bergeana Causalidade magia Um dos textos que elegi para compreender a pottica ¢ 0 ensaio El arte narrativo y la magia do livro Discussién (BORGES, 1994a, p.226-31), que testemunha no mesmo espaco literdrio a importancia da elaboragdo da narrativa e da leitura na construcdo do texto literdrio, tomando a narrativa como material potencialmente criador de varias lelturas e tomando a leitura como atividade transformadora do material narrativo. Este embaralhamento de leitura e narrativa se torna evidente neste ensaio, uma vez que é a partir da leitura de The Life and Death of Jason, de William Morris, e de Narrative of A. Gordon Pym, de Edgar Alan Poe, que Borges ensaia o que considera o elemento central de toda narrativa: a noco de causalidade. Borges elege a nocio de causalidade para ler narrativas. Este trabalho, por outro lado, toma o elemento simultaneidade para ler 2 obra borgeana. Teéricos da literatura tomam outros elementos na abordagem das narrativas. Basta lembrar de BOOTH (1967, p.87-107) em Distance and point-of-view, e FRIEDMAN (1967, p.108-37) em Point of view in fiction: the development of a critical concept, que refletiram sobre o problema do ponto de vista; ou ainda, ISER (1974, p.101-20) em The reader as 2 component part of the realistic novel: esthetic effects in Thackeray's Vanity Fair, ¢ JAUSS (1973, p.283-317) em Levels of identification of hero and audience, que estudam os modos de recepgao das obras pelo leitor. Ao que parece, as varias abordagens so possivels, j4 que os elementos tomados para abordar as narrativas ndo so considerados isoladamente, mas enquanto se relacionam a outros elementos components. © procedimento utilizado pelo escritor argentino no mencionado ensaio é o de recuperar as mencionadas obras, gulando-se por uma leitura reflexivo-critica que desvenda meandros e detalhes para esclarecer como todos os episédios da narrativa preparam e caminham para um objetivo que cabe ao leitor reconhecer € recriar. Tomo autor na acepcao que the confere Arrigucci: autor como leitor, de atitude inquisitiva diante do mundo e dos livros, dependente do comentério cuja aco é criada pelas perguntas e respostas que se desdobram em narrativas e ensaios. Autor e narrador se confundem porque a leitura opera a mediaco entre 0 narrador e 0 mundo; Arrigucci se refere tanto a um como ao outro pela denominagao de "Hacedor”. © desdabramento ensaistico e narrativo explica a ip a.com brlarquvo-merioesicos_arorioreslanaistS!Sam 2helisacorria im si2ar0%s 15" Congresso de Letra do Brasil mescla de géneros reconhecivel nos textos borgeanos mas, isto, por ora, ndo seré tratado (ARRIGUCCI, 1973, 1987) (© que interessa especialmente para compreender o autor neste ensaio é que ele se apresenta como leitor de algumas obras sobre as quais lanca “inquisiciones” seguidas de comentérios, e é este movimento que cria o ritmo do ensaio, Convém esclarecer ainda o que é comentario, tomando a reflexdo de Hansen (1992, p. 34) acerca da fungao-autor, concepgo foucaultiana que rivaliza com a concepgo de Arrigucci, porque no se confunde com 0 narrador mas que, no que diz respeito ao comentario, pode enriquecer a questao da relagdo entre autor @ obra: NO comentario 0 novo nao estd no que ¢ dito, ..., mas no acontecimento de seu retorno. Por isso, comentario e autoria so dispositivos proporcionais: se 0 comentério limita os acasos do discurso pelo jogo de uma identidade pressuposta, que teria a forma de um Mesmo na repeticao, a autoria limita-Ihe acaso pelo jogo de uma identidade pressuposta, que tem a forma de individualidade e do eu. A autoria liga-se, intrinsecamente, assim, & nocéo de obra. (HANSEN, 1992, p. 34) Assim é possivel perceber como os comentérios de lelturas que o autor borgeano apresenta dao origem a novos textos; quando 0 autor resgata os textos comentando-os, constroe-os diferentes, @ sua maneira, porque o comentario tem um papel criativo, praticamente, com a novidade da invencdo. E 0 fato de 0 ensaio El arte narrativo y la magia ser elaborado a partir de comentérios, traduz a fidelidade do ensaio borgeano a forma do ensaio, que acentua sua prépria modéstia. Segundo ADORNO (1962), pensador que reflete acerca do ensalo em El ‘ensayo como forma, o ensaista faz . comentarios a las poesias de otros, eso es lo tinico que él puede ofrecer y, en el mejor de los casos, comentarios a los propios conceptos. Pero irénicamente se adapta a esa pequefiez, a la eterna pequefiez del mas profundo trabajo mental frente a la vida, y con irénica modestia la subraya aun’. (ADORNO, 1962, p.19) Cada vez que o’autor recupera passagens das obras de outros autores dé origem a jogos intertextuais que atraem o outro para o interior de seu préprio texto, no caso, um ensaio. Quando Passos (1996) reflete sobre 0 conceito de intertextualidade, conceito este cujo desenvolvimento pode ser encontrado principalmente na obra critica de Mikhail Bakhtin e Julia Kristeva, ele é bastante esclarecedor: *.,. tal estratégia desemboca numa relagdo especular: a busca de se ver refletido no “outro’, em ponto pequeno ou em proporgées aumentadas, incluindo-o em uma érbita de atividade” (PASSOS, 1996, p.14). Pode-se dizer que o intertexto esté presente em toda a obra borgeana abundantemente e, ‘embora este trabalho no tenha por objetivo esmiucar os intertextos, muitas vezes eles sdo trazidos & baila, principalmente porque fazem parte dos produtos da leitura, A particularidade da leitura que 0 autor-leitor borgeano desenvolve do poema de Morris parte ja do fato de o autor estar interessado na “faz novelesca” da obra, @ no no que chama “filiacién helénica del poema” (BORGES, 1994a, p.226). Esta declaracéo do propésito pelo autor é consonante a uma das caracteristicas do ensaio, que aponta 0 fildsofo ADORNO (1962) em EI ensayo como forma: 0 ensaio ndo cria, parte do que ja est feito; nas palavras do pensador, o ensaio “No empieza por Adén y Eva, Sino por aquello de que quiere hablar; dice lo que @ su propésito se le ocurre, termina cuando él mismo se siente llegado al final, ..." (ADORNO, 1962, p.12) A leitura borgeana nao esté interessada em abordar as aventuras de Jas6n; interessa-se, isto sim, em perceber como Morris conseguiu suscitar e manter a fé poética do leitor, o que depende de “una fuerte apariencia de veracidad” (BORGES, 1994a, p.226). Neste ponto, Borges esté se referindo a Coleridge, para quem a fé poética é a “esponténea suspensién de la duda” (BORGES, 1994a, p.226). Em outras palavras, o que o autor argentino privilegia em sua leitura é'a maneira como Morris conduziu a “faz novelesca” ao leitor, de modo que este de nada duvide e em nada recue, No ensaio La ceguera de Siete Noches, Borges afirma que todo escritor escreve duas obras: *... una, el tema que se propuso; otra, la manera en que lo ejecuts” (BORGES, 1994b, p.283); no caso em questo, 2 leitura esté incidindo muito mais sobre uma das obras de Morris, aquela que pode ser identificada com a segunda obra acima referida, 2 maneira com que o escritor executa o tema, ou, em outras palavras, o modo, ou ainda, 0 procedimento, Borges recupera alguns episédios do poema para ilustrar o procedimento de ip a.com brlarquvo-merioesicos_arorioreslanaistS!Sam 2helisacorria im si2ar0%s 15" Congresso de Letra do Brasil Morris. Vale a pena lembrar 0 episédio do centauro. A “apariencia de veracidad” é constituida por mengées ao centauro Quirén, primeiro locelizando-o ao lado de feras pouco ou nada familiares ao leitor, tal qual 0 préprio centauro, depois aproximando a cor do pélo do centauro & cor da pele humana, tornando-o mais familiar ao leitor, para, em seguida, distancié-lo novamente, apresentando- com *... una corona de hojas de encina en la transicién de bruto a persona. (BORGES, 1994a, p.227), sem oferecer ao leitor uma imagem completa da criatura. Outra maneira de compreender como o autor persuade o leitor € ilustrado pelo episédio das sirenas. Segundo o autor borgeano, “Las imagenes preparatorias son de dulzura” (BORGES, 1994a, p.227). Como no episédio anterior, neste também o leitor é atraido e conduzido pela tensao criada pela proximidade e distancia em relacdo as sirenas, o que garante a fé poética No que diz respeito ao romance de Poe, Borges desvela em sua leitura o que seria 0 “secreto argumento”, que identifica como o “el temor y la vilificacién de lo blanco” (BORGES, 1994a, p.229). Temor sofrido pelas tribos vizinhas da Antértida e que serd sofrido também pelos “condignos lectores” (BORGES, 1994a, p.229), A leitura borgena duplica os argumentos do romance de Poe: Los argumentos de ese libro son dos: uno inmediato, de vicisitudes maritimas; otro infalible, sigiloso y creciente, que sélo se revela al final (BORGES, 1994a, ».229). © argumento sigiloso coordena todos os tracos do romance, a ponto de Poe descrever a gua dos riachos da ilha como algo dificilmente definivel. A indefinigéo da natureza da Agua garante possibilidade desta dqua ser branca e, assim, filia-se ao “secreto argumento”: o medo do branco. A leitura, por sua vez, pode atribuir & agua a cor branca; é isto 0 que sugere o ensaio. Borges chega, inclusive, a fazer analogia entré 0 branco de Poe ¢ os brancos de Mallarmé Melville, 0 que é uma maneira que sua leitura encontra de, estabelecendo relagées intertextuais, compreender e explicar 0 argumento secreto E interessante notar que a leitura borgeana praticada sobre as duas obras desvela 0 procedimento narrativo dos autores, ao mesmo tempo que vincula esse desvelamento a singularidade dessa mesma leitura. A leitura descobre a importancia da noc&o de causalidade nas narrativas que lé, mas a causalidade & inventada por essa mesma leitura. Ler 2 “faz novelesca” do poema de Morris para compreender como se articulam as atitudes do autor, ¢ ler a obra de Poe desmascarando um argumento velado que delibera 0 que deve ser anunciado explicitamente ao leitor, ao mesmo tempo que deixa desconfiar de que algo néo esta sendo mencionado, so posturas de leitura que perseguem a causalidade narrativa, a0 mesmo tempo que provocam a emergéncia dessa nogso como elemento central de toda narrativa. E possivel ler no desenvolvimento borgeano deste ensaio o cardter simultineo e indissolivel de narrativa e leitura, Mas a causalidade em foco nao corresponde ao processo causal natural e sim, ao que 0 autor denomina processo causal magico, Para explicitar o movimento dessa causalidade magica a leitura borgeana indica a distincSo entre "la morosa novela de caracteres”, que tenta nao diferir do mundo real e “la novela de continuas vicisitudes” e 0 "relato de breves paginas”, que estéo submetidos a uma ordem diversa da ordem que rege o mundo real: "Un orden muy diverso los rige, lucido y atavico, La primitiva claridad de la magia” (BORGES, 1994a, p.230). A ordem que @ magia pode proporcionar estabelece-se pela lei da simpatia; Borges recorre & antropologia, mais exatamente a Frazer. A simpatia: postula un vinculo inevitable entre cosas distantes, ya porque su figura es igual magia imitativa, homeopatica— ya por el hecho de una cercania anterior — magia contagiosa (BORGES, 1994a, p.230) ‘A magia imitativa procede por imitagao e a magia contagiosa por aproximacao. Exemplos esclarecem methor os dois tipos de magia Ilustracién de la segunda [magia] era el unguento curative de Kenelm Digby, que se aplicaba no a la vendada herida, sino al acero delincuente que fa infirié — mientras aquélla, sin el rigor de bérbaras curaciones, iba cicatrizando. De la primera los ejemplos son infinitos. (...) Los hechiceros de la Australia Central se infieren una herida en el antebrazo que hace correr la sangre, para que el cielo imitativo o coherente desangre en Iluvia también (BORGES, 1994a, p.230) E possivel afirmar através destes exemplos que a ordem da magia se afasta da ordem que se estabelece a partir de relacdes diretas entre causa e efeito. Elementos distantes se atraem, se aglutinam, no esto rigorosamente ip a.com brlarquvo-merioesicos_arorioreslanaistS!Sam 2helisacorria im si2ar0%s 15" Congresso de Letra do Brasil amarrados por uma cadeia continua, como a cadeia causa-efeito, embora possam conviver com ela e até enriquecé-la, ®... la magia es la coronacién 0 pesadilla de lo causal, no su contradiccién" (BORGES, 1994a, p.231). O que pode parecer coincidéncia aos espiritos na ordem do mundo real, é uma “peligrosa armonia” (BORGES, 1994a, p.231) na causalidade magica da narrativa, © principio de analogia abarca a nocdo de simpatia que subjaz 4 magia; supera os limites do espaco — a distancia, o estranhamento —, e quando o faz, rompe com 0 encadeamento linear e sucessivo das causas e efeitos, que sempre derivam umas das outras, que sempre se seguem umas as outras . Uma reflexdo do fildsofo FOUCAULT (1987, p.37) pode vir a colaborar na compreenséo da nocdo de analogia. Ele refere-se a analogia nos seguintes termos: "Seu poder & imenso, pois as similitudes que executa no sao aquelas visiveis, macicas, das préprias coisas; basta serem as semelhancas mais sutis das relagdes. Assim alijada, pode tramar, a partir de um mesmo ponto, um numero indefinido de parentescos”. A analogia cria semelhancas sutis que fazem aproximar os extremos € os vizinhos, sejam eles seres, coisas, relacdes ou abstracées. A cordem que a magia estabelece nao é definitiva, sua configuracao pode se modificar, j& que procede por analogia e ndo por encadeamento. As simpatias organizam de maneira rigorosa a narrativa que *... debe ser un juego preciso de vigilancias, ecos y afinidades, Todo episodio, en un cuidadoso relato, es de proyeccién ulterior” (BORGES, 1994a, p.231). Nesta afirmacao é possivel identificar 0 cardter sucessivo da narrativa: sucesso de episédios que ecoam & projetam-se no interior do relato através de um “juego preciso”. A influéncia da magia é utilizada por Borges para desenvolver a tese da importancia da preciso e da coordenacao dos episédios nos relatos. O romance e os relatos devem estar concatenados de tal forma que todos os episédios ecoem e confluam para algo que $6 ird apresentar-se depois. Um exemplo de novo tomado de uma obra literdria en una de las fantasmagorias de Chesterton, un desconocido acomete a un desconocido para que no lo embista un camién, y esa violencia necessaria, pero alarmante, prefigura su acto final de declararlo insano para que no lo puedan ejecutar por un crimen (BORGES, 1994a, p.231). (© que poderia ser tomado como ato insélito e incompreensivel adquire sentido no desenvolvimento do relato; nao sobram pontas soltas em uma narrativa coordenada pela causalidade magica, até mesmo as palavras repercutem e atraem: .. la sola mencién preliminar de los bastidores escénicos contamina de incémoda irrealidad las figuraciones del amanecer, de la pampa, del anochecer, que ha intercalo Estanislao del Campo en el Fausto (BORGES, 1994a, p.232) fim ansiado organiza todos os meandros da narrativa: “Esa teleologia de palabras y de episodios es omnipresente también en los buenos films” (BORGES, 1994a, p.232). Os bons filmes, como os relatos, nao estariam tentando imitar a causalidade da vida real, mas sim criando a sua prépria. Ao final do ensaio 0 autor argentino sintetiza: Procuro resumir lo anterior. He distinguido dos procesos causales: el natural, que es el resultado incesante de incontrolables e infinitas operaciones; el magico, donde profetizan los pormenores, liicido y limitado. En la novela, pienso que la Gnica posible honradez esté con el segundo, Quede el primero para la simulacién psicolégica (BORGES, 1994a, p.23) Borges trata do processo causal magico no romance, inicialmente, mas em seguida refere-se ao relato de breves paginas e aos filmes, que também devem seguir aquele proceso “Iticido y limitado”. Toda narrativa que nao obedecer a este processo estaria condenada a “simulacién psicolégica”; guiar-se pelo processo causal natural é improcedente porque infinito, ilimitado. A causalidade do mundo real é por demais complexa para que possa ser totalmente decifrada conhecida, por isso pode parecer sofrer as interferéncias do acaso, ou, em outras palavras, da indeterminacao. Um relato, em que todo episédio tem projecao posterior, tudo é conhecido pelo autor, nao ha mistério, no hd acaso; como diz Borges em La divina comedia: “Lo qué llamamos azar es nuestra ignorancia de la compleja maquinaria de la causalidad ...” (BORGES, 1994b, .208), Hé ainda um outro texto especialmente importante para a compreensdo da causalidade da narrativa; trata-se de Prélogo (BORGES, 1996, p.25-7) que Borges escreveu para o livro La invencién de Morel, de Adolfo Bioy Casares, obra ip a.com brlarquvo-merioesicos_arorioreslanaistS!Sam 2helisacorria im si2ar0%s 15" Congresso de Letra do Brasil que segundo a leitura borgeana: Despliega una Odisea de prodigios que no parecen admitir otra clave que la alucinacién que el simbolo, y plenamente los descifra mediante un solo postulado fantéstico pero no sobrenatural (BORGES, 1996, p.26) O “postulado fantastico” seria o elemento aglutinador da narrativa, ou argumento que coordena a ordem da obra, imprimindo-Ine forma e vida. O autor argentino pensa a obra de Bioy como uma obra de “imaginacién razonada” (BORGES, 1996, .26), rigorosa como a “novela de peripecias", e que se distingue diametralmente da *novela psicolégica” (BORGES, 1996, p.25). O romance de aventuras, assim como 0 romance de Bioy, possul rigor, 0 romance psicolégico, por sua vez, tende a ser informe, porque usa de muita liberdade: La novela caracteristica, “psicolégica", propende a ser informe. Los rusos y los discipulos de los rusos han demostrado hasta el hastio que nadie es imposible suicidas por felicidad, asesinos por benevolencia... Esa libertad plena acaba por equivaler al pleno desorden, Por otra parte, la novela “psicolégica” quiere ser también novela “realista": prefiere que olvidemos su cardcter de artificio verbal y hace de toda vana precisién (0 de toda languida vaguedad) un nuevo rasgo Yerosimil (BORGES, 1996, p.25) Cada vez que 0 romance néo assume seu cardter de artificio verbal, ele esté pautando-se, lembrado o que foi explicado com respeito ao ensaio anterior, na causalidade natural, 0 que faz desaparecer o que deveria imprimir ordem & narrativa: a teleologia causal. € sempre preciso voltar a lembrar que o que Borges entende por causalidade magica é algo bastante preciso, que transforma também a nocao de teleologia, porque toma magia como fator instaurador de certa ordem, diversa da ordem criada pela causalidade natural La novela de aventuras, ... no se propone como una transcripcién de la realidad: 2 un objeto artificial qué no sufre ninguna parte injustificada. El temor de incurrir en la mera variedad sucesiva del Asno de oro, del Quijote o de los siete viajes de Simbad, le impone un riguroso argumento (BORGES, 1996, p.25) Sem pretender transcrever a realidade, 0 romance de aventuras limita-se; esta limitagdo permite que nenhuma parte fique descoordenada do todo, tudo & coordenado por um “riguroso argumento", sempre obedecendo dquela causalidade magica, nacdo desenvolvida pelo autor no ensaio anterior. a causalidade magica que sopra vida na narrativa. Ao que parece, que os fatos sejam misteriosos —relatos policiais—, ou fantasticos —obra de Bioy—, no é 0 que realmente mais importa, e sim, que eles estejam concatenados de forma a realizar 0 que seria a causalidade rdgica da narrativa, causalidade que dirige @ narrativa a um fim ou objetivo que o leltor id recriar. No caso da obra de Bioy, 2 leitura borgeana elege 2 decifracio pelo *postulado fantastico” como objetivo da narrativa. Esta eleigao é uma forma de recriar a obra através da leitura. A nocao de causalidade abordada a partir dos dois textos acima trabalhados participa, em maior medida, da poética da narrativa, mas é a leitura que elege a causalidade como elemento central das narrativas e passa a ler a narrativa com 2 lente da causalidade, o que denuncia mais uma vez a indissolubilidade das posticas. Além da simultaneidade das poéticas poder ser reconhecida nestes ensaios, ha um outro aspecto temporal que deve ser sublinhado, Trata-se do tempo implicito a toda narrativa no que concerne & organizacdo da éscritura e da leltura. A escritura e a leitura sempre sdo sucessivas, porque sobrevivem @ partir da linguagem, cuja natureza € sucessiva. Letras, palavras, frases, episadios, so dispostos linear, continua e sucessivamente pela linguagem na elaboracao da escritura. Esta, por sua vez, é condigdo da leitura, que também caminha sucessivamente, acompanhando a ordem sucessiva da escritura. No caso dos tensaios, a escritura é sucessiva, a leitura também o é, mas a nogdo de causalidade magica que El arte narrativo y la magia trabalha, e que a leitura Ie, no é uma nocéo que participa da sucessividade, linearidade e continuidade Também a forma de exposicao do ensaio nao é sucessiva, linear e continua. A “Yaz novelesca”, o “secreto argument”, a “causalidade”, a ‘magia", sao nocdes ou conceites que se relacionam dinamicamente no ensaio borgeano, suas relacées no s80 diretemente encadeadas . Os conceitos, inclusive, relacionam- se ao “postulado fantastico”, conceito presente em Prélogo, porque sdo pecas de lum mosaico para 0 qual concorrem outros ensaios. Assim, tanto o assunto Quanto a forma dos ensaios diferenciam-se da causalidade natural, esta sim encadeada sucessivamente pelas causas e efeitos continuas e irreversiveis ip a.com brlarquvo-merioesicos_arorioreslanaistS!Sam 2helisacorria im si2ar0%s 15" Congresso de Letra do Brasil A causalidade magica rejeita a ordem do tipo causa-efeito continua e sucessiva se organiza pela ordem da magia. Esta tem uma coordenaco inspirada na imitaggo —magia imitativa—, e aproximagso —magia contagiosa—, que obedece ‘a um encadeamento sucessivo sim, mas que ndo pode ser qualificado como continuo, se comparado ao encadeamento sucessivo continuo de causa-efeito. As relagdes que se estabelecem por imitagdo e aproximacao séo relagées de semelhanga que se atraem mutuamente, geralmente conduzidas por um objetivo: a fé poética em The Life and Death of Jason; o argumento misterioso em Narrative of A. Gordon Pym; a inocentagdo de um criminoso no texto de Chesterton; 0 postulado fantastico, em La invencién de Morel. E como se 0 objetivo necessitasse a sucessao. Para o autor, 0 movimento se dé do futuro para o presente, ele conhece 0 objetivo de antemao e deduz os episédios do objetivo, para o leitor, o movimento se dé do presente para o futuro, e do futuro para o passado, ele acompanha os episédios para, s6 entéo, chegar @ conhecer 0 objetivo, e apés 0 conhecimento do objetivo, ele poderd recrié-lo em sua leitura de maneira retrospectiva, Trata-se de sucessividade reversivel, onde a causa pode ser o efeito e vice-versa. Leitura e decifragio A postica da leitura, por sua vez, apoia-se em uma idéia basica: a concepcao de leitura como co-criadora da literatura. A partir desta concepcao, é possivel compreender mais exatamente qual é o papel do leitor e do autor na elaboracdo do texto literdrio. Mas ainda, como ja foi explicado anteriormente, a perspectiva deste trabalho toma a poética borgeana a partir de dois pélos indissociaveis: a poética da leitura e a poética da narrativa. A simultaneidade das poéticas responde a impossibilidade de separacao dos elementos que compdem a narrativa que, se so apresentados e pensados separadamente, isto se dé porque é impossivel 20 pensamento e a linguagem apresenté-los simultaneamente. A abordagem da postica da leitura deve respeitar a perspectiva que toma simultaneamente postica da leitura e poética da narrativa em um movimento dindmico que configura a postica borgeana. Poética da leitura e postica da narrativa precisam ser vistas como pélos intercambidveis, indissocidveis e simultneos que pravocam a existéncia de um dnico ser: @ poética borgeana, denominada de poética do hacer; caso contrario mortificam-se em uma identidade estereotipada e parcial. Se se tentar limitar a postica narrativa apenas & compreensdo da escritura e do autor e a potica da leitura apenas & compreenso da leitura e do leitor, aniquila-se o fenémeno estético e a literatura esvazia-se. A escritura estaria condenada a sua existéncia fisica e a leitura vagaria por abstracionismos e fantasmagorias. A necessidade que a escritura tem da leitura, a leitura tem em relacio a escritura. Apenas a leitura no pode proporcionar o fendmeno estético, A este respelto, 0 pensamento critico do estudioso Roland Barthes pode vir a ser bastante esclarecedor: toda leitura passa pelo interior de uma estrutura (mesmo que miltipla, aberta) e nao no espaco pretensamente livre de uma pretensa espontaneidade: nao hé leitura natural, selvagem: a leitura ndo extravasa da estrutura; fica-Ihe submissa; precisa dela, respeita-a... (1988. p. 45) Pelas palavras de Borges colhidas do ensaio El libro, do livro Borges, oral (BORGES, 1996, p.165-71), é possivel, desta vez, entender como apenas a escritura ndo pode proporcionar o fendmeno estético: Tomar un libro y abrirlo guarda la posibilidad de! hecho estético Qué son las. palabras acostadas en un libro? éQué son esos simbolos muertos? Nada absolutamente, Qué es un libro si no lo abrimos? Es simplemente un cubo de papel y cuero, con hojas; pero si lo leemos ocurre algo raro, creo que cambia cada vez. (BORGES, 1996, p.171) 0 fendmeno estético depende do encontro do texto com o leitor. As narrativas que um livro possul, e que nao so tocadas pelo leitor, so folhas escritas empoeiradas, objetos de museu. Aqueles textos que sdo lidos e relidos, 20 contrério, fazem parte da biblioteca, esto vivos, em transformaglo, porque cada vez que 0 leitor os 18 modifica-os, anexando-Ihes elementos e produzindo variacées de sentido. A leitura interfere, inclusive, na ordem sucessiva da escritura: +. ya que somos el rio de Herdclito, quien dijo que el hombre de ayer no es el hombre de hoy e el de hoy no sera el de mafiana. ... cada lectura de un libro, ip a.com brlarquvo-merioesicos_arorioreslanaistS!Sam 2helisacorria im ms si2ar0%s 15" Congresso de Letra do Brasil cada relectura, cada recuerdo de esa relectura, renuevan el texto, También el texto es el cambiante rio de Heréclito. (BORGES, 1994b, p.254) O leitor sempre em transformagio torna o texto algo também passivel de constante transformac30. 0 encontro entre a leitura de ordem sucessiva e escritura de ordem sucessiva pode ser lido, por exemplo, como uma simultaneidade de dois tempos: tempo da leitura e tempo da escritura. A grande metéfora € 0 rio de Herdclito, Os textos sempre esto em processo de laboraséo, "El concepto de texto definitive no corresponde sino a la religién o al cansacio", & 0 que afirma Borges no ensaio Las versiones homéricas, do livro Discussién (BORGES, 1994a, p.239). O exercicio da leitura recoloca a narrativa fem elaboracdo quando renova 6 sentido e, assim, reatualiza a escritura que traz consigo uma existéncia origindria no passado, Neste sentido, 0 exercicio da Ieitura submete o passado 20 presente. O passado é de todos, matéria de demiurgos, os leitores so co-criadores dos textos; presentificam 0 passado textual-literdrio e assim redefinem nao sé os textos, como também a prépria literatura; o autor borgeano denuncia essa ousadia da leitura no ensaio Nota sobre (hacia) Bernard Shaw (BORGES, 1993, p.125-7), do livro Otras Inquisiciones Una literatura difiere de otra, ulterior 0 anterior, menos por el texto que por Ia manera de ser leida: si mi fuera otorgado leer cualquier pagina actual —ésta, por ejemplo— como la leeran en el afio dos mil, yo sabria cémo seré la literatura del afio dos mil. (BORGES, 1993, p.125) @ no ensaio De las alegorias a las novelas, do mesmo livro, em que reestabelece 2 passagem das alegorias aos romances, identificando-a historicamente em uma atividade da leitura, em uma tradugao: El pasaje de alegoria a novela, ... , requirié algunos siglos, pero me atrevo a sugerir una hecha ideal. Aquel dia de 1382 en que Geoffrey Chaucer, ... , quiso traducir al inglés el verso de Boccaccio E con gli occult ferri i Tradimenti (¥ con hierros ocultos las Traiciones), y lo repitié de este modo: The smyler with the knyf under the cloke. (El que sonrie, con el cuchillo bajo la capa) (BORGES, 1993, p.124) Reflexes explicitas como esta, acerca do importante papel da leitura abundam na obra borgeana, E possivel formar varios conjuntos a partir destas reflexdes metalinguisticas. No entanto, escolho o mesmo procedimento adotado em relac&o causalidade da narrativa: a eleicdo de alguns textos que permitem identificar a poética da leitura em sua dupla dimensdo, metalingijistica e material, como assunto e também como procedimento. Os textos eleitos sdo: Kafka y sus precursores (BORGES, 1993, p.88-90) e Sobre los clasicos (BORGES, 1993, p.150-1), ambos do livro de ensaios intitulado Otras Inquisiciones O assustador argumento de “Kafka y sus precursores” (BORGES, 1993, p.89) esta sintetizado em uma das frases do ensaio: *... cada escritor crea a sus precursores.” O ensaio procede de modo a explicar a pertinéncia do argumento, Parte, como os ensaios anteriores, de uma postura de leitura, No caso especifico, 2 leitura do autor-leitor persegue os precursores de Kafka, quer estabelecé-los. A leitura no recorre, 2 contrariar 0 procedimento mais usual, & histéria da literatura reconhecida, o que ela faz é “... reconocer su voz [de Kafka], o sus habitos, en textos de diversas literaturas y de diversas épocas” (BORGES, 1993, p.88). O autor reconhece a forma de O Castelo, obra de Kafka, no paradoxo de Zenén sobre 0 movimento: *... la forma de este ilustre problema es, exactamente , la de El castillo, y el mévil y Ia flecha y Aquiles son los primeros personajes kafkianos de la literatura” (BORGES, 1993, p.88). A personagem kafkiana do romance no consegue atingir seu abjetivo como a flecha do paradoxo, que nunea atinge seu alvo, Esta identificacéo por si s6 jé € testemunha de que @ ieitura borgeana é bastante singular, na medida em que estabelece um vinculo entre a filosofia pré-socritica © a literatura moderna através de uma identidade formal. A préxima identificacdo diz respeito ao tom; o tom kafkiano é& reconhecido, desta vez, na literatura chinesa, em um apélogo de Han Yu, que 0 autor ndo Ié diretamente, mas sim através da obra Anthologie raisonée de la litterature chinoise, de Margoulié A terceira identificacao se da pelo reconhecimento de afinidade mental entre Kafka e Kierkegaard no que diz respeito @ ambos escritores oferecerem *. pardbolas religiosas de tema contempordneo y burgués” (BORGES, 1993, p.88). Um exemplo ip a.com brlarquvo-merioesicos_arorioreslanaistS!Sam 2helisacorria im si2ar0%s 15" Congresso de Letra do Brasil .. la historia de un falsificador que revisa, vigilado incesantemente, los billetes el Banco de Inglaterra; Dios, de igual modo, desconfiaria de Kierkegaard y le habria encomendado una misién, justamente por saberlo avezado al mal (BORGES, 1993, p.89) A quarta identificacéo da voz de Kafka a leltura borgeana encontra no poema de Browning intitulado Fears and Scruples, de 1876, e em dois contos: de Leon Bloy © Lord Dunsany, que retratam respectivamente @ imobilidade das pessoas que nunca partem de sua terra natal, e a imobilidade de um exército que nunca consegue voltar ao seu ponto de partida A voz kafkiana esta, de alguma maneira, presente nas obras mencionadas. O autor comentou a respeito de como sua leitura encontrou vinculos, reconhecendo 2 forma, o tom, as pardbolas e os temas kafkianos, Nas palavras do préprio autor: "Si no me equivoco, las heterogéneas piezas que he enumerado se parecen a Kafka...” (BORGES, 1993, p.89). No entanto, a simples leitura de tais obras nao permite que se deduza a voz kafkiana porque “... no todas se parecen entre si” (BORGES, 1993, p.89). Se nunca se leu a obra kafkiana ndo se pode compreender 0s vinculos, eles nao existem. Os vinculos dependem que a obra kafkiana exista e que tenha sido lida En cada uno de esos textos esta la idiosincrasia de Kafka, en grado mayor 0 menor, pero si Kafka no hubiera escrito, no la percibiriamos; vale decir, no existiria. (BORGES, 1993, p.89) Em outras palavras, @ obra kafkiana néo decorre simplesmente daquelas obras apenas porque as obras a precedem cronologicamente. Precursor néo é aquele Que tem 0 estatuto de ser historicamente anterior a Kafka ou participar de tendéncias literdrias afins as tendéncias de Kafka oficializadas pela historia da literatura, Zenén, Han Yu, Kierkergaard, Browning, Leon Bloy e Lord Dunsany no asseguram propriamente a possibilidade de Kafka; suas obras ndo caminham inevitavelmente para a obra kafkiana como o presente no caminha inevitavelmente para determinado futuro, $8 conhecido previamente. O presente caminha para o futuro sim, mas ele é sempre desconhecido, nunca é completamente previsivel: El poema Fears and Scruples de Robert Browning profetiza la obra de Kafka, pero nuestra lectura de Kafka afina y desvia sensiblemente nuestra lectura del poema. Browning no lo leis como shora nosotros lo leemos (BORGES, 1993, 9.89) Quando 0 futuro acontece, quando ele se torna presente, ou seja, quando Katka escreve sua obra, entdo é possivel compreender o elo misterioso que encadeia o presente, constituide pelas obras mencionadas, © que jé fardo parte do passado. Quando Kafka escreve sua obra torna possivel a leitura reconhecer sua voz em iiteraturas distantes, temporal e espacialmente falando. S6 com o acontecimento kafkiano é possivel a empresa de perseguir seus precursores: "Su labor modifica nuestra concepcién del pasado, como ha de modificar el futuro” (BORGES, 1993, .89-90). Apés a existéncia da obra kafkiana, o leitor ndo verd mais aquelas obras independentes de certo parentesco com Kafka. A leitura presente modifica © passado textual cada ver que o Ié e relé. A histéria da literatura, aos poucos, se torna a histéria dos modos de ler, uma histéria visivel nos comentarios de leitura e que, provavelmente vai modificar o futuro quando 0 futuro, se tornar presente e a leitura reler sua histéria, que, entao, jé seré passado. A causalidade magica também pode ser chamada neste momento para lancar luma outra luz sobre a questao. € através dela que o leitor pode operar analogias, vinculando obras dispares a obra de Kafka; se seguisse a causalidade natural, no encontraria Kafka, porque este no é um simples efeito daquelas obras que, obedecendo ao processo causal natural pretenderiam constituir a causa da obra kafkiana. € a obra kafkiana que atrai as outras obras estabelecendo os elos de identificagéo. A causalidade magica, como jé fol explicado anteriormente, opera por processos reversiveis, como este, que inverte a ordem cronolégica. A causalidade magica, na medida em que garante 0 rigor, pode atuar em uma forma nao necessariamente narrativa, como a forma do ensaio, que se une & leitura na tarefa de recriar os elos que unem os, precursores de Kafka, criando um novo modo de contar a histéria da literatura: © modo da leitura, Poética da narrativa e poética da leitura atuam simultaneamente também em Kafka y sus precursores, No outro ensalo escolhido, Sobre los Clasicos, o autor reflete sobre como @ leitura co-define, desta vez, 0 que é um cléssico: *... es un libro que las ip a.com brlarquvo-merioesicos_arorioreslanaistS!Sam 2helisacorria im si2ar0%s 15" Congresso de Letra do Brasil generaciones de los hombres, urgidas por diversas razones, leen con previo fervor y con una misteriosa lealtad” (BORGES, 1993, p.151). © procedimento utilizado pelo autor para construir esse argumento é o mesmo de Kafka y sus precursores; parte da leitura que serve como estimulo para refletir a questdo, O autor recorre a Historia de la literatura china, de Herbert Allen Giles, que se refere ao I King como um texto canénico editado por Confuicio. A despeito da diversidade de leituras possiveis acerca dos 64 hexagramas que compéem a obra milenar, até da preconceituosa leitura estrangeira, a que toma o I King como “mera chinoiserie”, hé o testemunho histérico de que este livro jamais deixou de ser lido: *... generaciones milenarias de hombres muy cultos lo han leido y releido con devocién” (BORGES, 1993, .150), Este testemunho é Indicio da tese do ensaio, Segundo a qual Clasico es aquel libro que una nacién 0 un grupo de naciones o el largo tiempo han decidido leer como si en sus paginas todo fuera deliberado, fatal, profundo como el cosmos y capaz de interpretaciones sin término. (BORGES, 1993, p.151) Para que um livro seja classico precisa ser lido permanentemente com esta gravidade, que se péde perceber na citacdo acima, ainda que no se possa falar da preferéncia dos leitores em termos de unanimidade. A permanéncia desta leitura, por sua vez, depende de que os "medios” literdrios variem, para que possam surpreender o leitor, mas isto sem, no entanto, “perder su virtud” (BORGES, 1993, p.151). 0 que quer dizer, em outras palavras, que autor e leitor concorrem mutuamente para a existéncia dos classicos. Em Prélogo, como nos ensaios anteriores, 0 procedimento do autor inicia-se pelos comentérios, a partir deles é que surge algo novo, neste caso, uma nova compreenso do que é um classico. Mas 0 que é a leltura? Ela sé pode ser pensada se comparada a escritura? Sabe- se que da leitura participam, por exemplo, a imaginagdo e a consciéncia critica, Basta lembrar de ISER (1974, p.101-20), tedrico da Estética da Recepc&o, que afirma que a imaginacdo do leitor detecta as atitudes do narrador, através das lacunas que este deixa em aberto, preenchendo-as com seu criticismo, que passa a constituir a realidade do livro; e de ARRIGUCCI (1987, p.229), que por sua vez, vé a leitura na obra borgeana como uma “arte da decifracao” que tem uma “atitude inguisitiva” diante dos livros e do universo. Também a meméria e 0 contexto podem ser fatores da leitura. A memeéria opera as relages intertextuais do texto; e o contexto diz respeito ao fato do texto dirigir-se a um destinatério concreto . Mas ndo é possivel saber quais fatores interferem em, maior ou menor medida no ato de ler. Pode-se investigar seu campo de atuacao, seu teor histérico, mas sempre em relaco aos limites impostos pela escritura narrativa Poética da narrativa e postica de leitura so, portanto indissocidveis e simultaneas, E é justamente essa simultaneidade que configura a identidade da poética borgeana, denominada poética do hacer, em que o hacedor 6, simultaneamente, 0 autor € 0 leitor, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS |ADORNO, T. W. El ensayo come forma. In Notas de Iteratura. Traduséo de Manuel Sacristin, Barcelona: Ariel, 1962 |ARRIGUCI JUNIOR, D. 0 escorpi8o encalacrado: A poética da destrulgao em Jil Cortazér. So Paulo Perspectiva, 1973, 350p. Enigma e comentéro: ensalos sore literature @ exparéncia. Sfo Paula: Companhia Gas Taras, TBE7. TRB. BARTHES, Roland. "Da lattura”. In © Rumor 62 Lingua. Trad. Man Laranjelra. So paulo: Braslense, 1988, p. 42-52 ‘BOOTH, W. C. Distance and Point of View: An essay In classifiation. In: STEVICK, P. 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