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A metafisica da modernidade Atal em Ravena, tala, ' | i : = Nett = Oimperdortstniono ret de So Joaquim erie os pstores, f esnbamquo ee Giotto 266-7 ees de S20 Frans 4 sasatco da teja de sao de Assis, ala 1 { Observe as imagens, O mosaico bizantino data do século VI, enquanto o afresco de Giotto é do comego do século XIV, Representam, portanto, dois momentos histéricos diferentes, No mosaico bizantino, o imperador Justiniano esti no centro 6a figura maior do seu séquito, A rigider e a imobilidade da representagio no decorrem da inabilidade do artista, mas da manetra pela qual se expressa a severa hierarquia de classes, estabelecida pela ‘organizagao social teocritica do Império Romano do Oriante. Por outro lado, Giotto, primeizo mestre do novo humanismo pré- -renascentista, rompeu com o estilo linear da era bizantina e quebrou arigidez da reprosantaga. A cona situa-se em uma paisagom ‘terrena, com érvores, pedras, animais; as figuras humanas sugeremn “movimonto”, siio oxprossivas; hi o osforeo do pintor para euparar a bidimensionalidade, até entio caracteristica da pintura medieval. O contraste entre as duae obras reprosonta as mudangas na mentalidade que irla vigorar no Renasclmento e na Idade Moderna. Vocé saberia explicar que mudangas sao essas? 167 As mudangas na modernidade Chamamos modernidade 20 perfodo que se esboga no Renascimento, desenvolve-se na Idade ‘Moderna e atinge seu auge na Ilustragéo, no sécu- Jo XVIlL O paradigma de racionalidade que ent&o se delinela 6 o de uma razio que, liberta de crencas ce superstigées, funda-se na prépria subjetividade no mais na autoridade, seja do poder politico abso- luto, seja da religito, De fato, estava sendo gestado um novo periodo da histéria ocidental, com mudangas om amplo espectro: sociais, politicas, morals, literérias, artis- ticas, cientfficas.religiosas e também filoséficas. A contraposicaa 20 pensamento medieval estimulon arecuperagio da cultura greco-latina, agora sem a intermediagGo da religio, o que denotava a laici- zaco do pensamento: se antes 0 foco da reflextio era a teologla, na modernidade prevalece a visio antropocéntrica. 0 século XVII representa, por- tanto, a culminagio de um processo que modifi- cou a imagem do proprio ser humano e do mundo ‘que o cerca. ‘PARA SABER MAIS Algumas das mudaneas ocorridas no Renas- Cimento e na Idade Moderna foram:as Grandes Navegacdes eo descobrimento do Novo Mundo; a revolucao comercial e a implantacao do capi- talisma, com a ascensin da burguesia, 2 for macao das monarquias nationals; a Reforma protestante; as novas ciéncias da fisica e da astronomia, O que vemos afirmar-se na modernidade é uma caracteristica importante do pensamento: 0 racio- nalismo, a confianga no poder da razo, E uma das expresses mais claras desse racionalismo 6 0 inte- esse pelo metodo. E verdade que o método sem- Dre fol objeto de discussao na flosofia, mas nunca coma intensidade e aprioridade que Ihe dedicaram 06 fildsofos do século XVII, Sob esse aspecto, mere- cem destaque na flosofia as reflexdes de Descartes, Bacon, Locke e, no ambito da ciéncia, de Galileu, Kepler e Newton. 0 debate culminow na critica da razio levada a ‘feito por Kant no século XVII. Desde entéo inten- siflcou-se, quando diversas correntes filoséficas ‘passaram a explicar a relagio entre o sujelto que conhece © 0 objeto conhocido, ou seja, a teoria do conhecimento. (© conhecimento Ea Unidade 3 DA questo do método Arevolugio cientifica quebrou o modelo deinte- lighilidade do aristotelismo e provocou o receio ‘e novos enganos. Para evitar o erro, a principal indagagao do pensamento moderno tornou-se questo do método, que envolveu néo 66 a resi- sd0 da metafisica, mas sobretudo o problema do conhectmento. ‘Até onto os filésofos partiam do problema do ser, mas na Idade Moderna voltam-se para as ‘quest6es do conhecer. Enquanto no pensamento antigo o medieval a realidade do objeto 2. capa- cidade humana de conhecor nfo eram questio- nadas (exceto no ceticismo), na Idade Moderna © foco é desviado para a “conscitncia da cons- ciéncia”, Antes perguntava-se: “Existe alguma coisa?”; “Isto que existe, o que é?”. Na moder- nidade o problema nao é saber se as coisas so, mas se nés podemos eventualmente conhecé- Jas. Portanto, as perguntas so outras: “O que é possivel conhecer?”; “Qual ¢ 0 critério de certeza ara saber se hd adequacSo entre o pensamento 190 objeto?”. Das questées epistemoligicas, isto é, relativas ao conhecimento, deriva a énfase que marcaré a filosofia dai por diante. Na Idade Moderna, por- tanto, 0 polo de atengao ¢ invertido: volta-se para © sujeito que conhece. ‘As solugSes apresentadas a esse problema deram origem a duas correntee filoséficas, uma com énfase na razdo, outra nos sentidos. + Oracionalismo englobaasdoutrinasqueenfa- tizam o papel da razdo no processo do conheci- ‘mento, Na Idade Moderna destacam-se como racionalistas: René Descartes — sou principal representante —, Espinosa ¢ Leibniz, +0 empitismo 6 a tend&ncia floséfica que enfa- tiza 0 papel da experiéncia senstvel no pro~ ccesso do conhecimento. Destacam-se no pe~ riodo modorno: Francis Bacon, John Locke, David Hume e George Berkeley. 'Paradigma. Modelo, padr30; conjunto de teorias, ‘técnicas e valores de uma determinada época e ‘Que, de tempos em tempos, entram em crise ernie puna It seo Fw aLILROO eta ‘eet pi aaa ot med, O racionalismo cartesiano: a davida metédica Descartes é considerado 0 “pai da filosofia ‘moderna’, porque, a0 tomar a consciéncia como ponto de partida, abriu caminho para a discus- séo sobre ciéncia e ética, sobretudo ao enfati- zar a capacidade humana de construir 0 préprio conhecimento. Dora Remé Descartes (1596-1650) € ‘também conhecide pelo nome latino de Carteshs, por ss03eu pensamentoédito*cartesiano", Desde muito jover, 0 ilsofo interessou-se por matemstica, _geometria e algebra. Entre os estudasquedeservoiveu,est30 aa geometria anaticae as cha ‘madas coordenadas cartesia- ngs. Conhecedor da clencta de seu tempo, Descartes criticou ‘aLcdiucagao que teve com os jesuitas. Viveu ern urn conturbadoc, por temorda Inquisicio aps ‘acondena;So de Galileu,aceitou ocomvite da rainha Cistina para morar na Suécta, onde veio a falecer, ‘alvez devido 20 rigoroso inverna Escreveu Discurso do metodo, Meditagdes metafisicas. egras para a «regio do espiit, Matado do mundo. Principles de Slosofa, Tatado das pavxbes da alma, além de ini ‘meras cartas. 0 propésito inicial de Descartes foi encontrar uum método to seguro que o conduaisse & verdade indubitavel, Procura-o no ideal matemético, isto 6, ‘em uma ciéncia que seja uma mathesis universalis (matemética universal), o que ndo significa aplicara ‘matemdtica no conhecimento do mundo, mas usat © tipo de conhecimento que & peculiar 3 matemé- ica. Como sebemos, esse conhecimento ¢ inteira- mente dominado pela inteligéncia — e nic pelos sentidos — e baseadia na ardem e na medida. o que tho permite estabelocer cadeias de razées, para deduzir uma coisa de outra, Para tanto, Descartes estabelece quatro regras: + da evidéncia: acolher apenas 0 que aparece 20 cexplrito como ideia clara e distinta; +da.andlise:dividir cada dificuldade em parcelas ‘menores para resolvé-las por partes; +a ordem: conduzir por ordem os pensamen- tos, comegando pelos objetos mals simples ‘e mais fiiceis de conhecer para s6 depois lan- {gat-20 208 mais compostos, + da enumeragio: fazer revisdes gerais para ter certeza de que nada fot omitido. Vejamos como essas regras so aplicadas, 20 fundamentar sua filosofia. Descartes parte em busca de uma verdade pri- ‘meira que no possa ser postaem divida. Comega duvidando de tudo: do testemunho dos sentidos, das afirmages do senso comum, dos argumentos da autoridade, das informagées da consciéncia, das verdades deduzidas pelo raciocinio, da reali- dade do mundo exterior e da realidade de seu pré- prio corpo, Trata-se da dévida metsdica, porqueéessa ddvida, que o impele a indagar se ndo restaria algo que fosse inteiramente indubitivel. Por sso Descartes no & uum flésofo cético: ele busca uma verdade. Esse desenho de Leonardo da Vinct tornouse famoso por ressaltar as proporgies mateméticas ea simetria do corpo humano encaixado dentro de um quadrado e de um circulo: quando de pemas juntas e bragos em cruz, pés e dedos ‘tocam os limites do quadrado; com pernas sfastadas e bragos exguidos, tocara as linhas do ciculo. A imagem chamarse Homem vitruaviano ‘porque anteriormente Vitrivio —um arquiteto romano do século Ta. ~teria tentado sem ‘sucesso identificar essa proparyao. ‘Que relagao vooé percebe entre o rigor do desenho de Leonardo da Vinci e o da filosofia do Descartes? ‘A metafisica da modemidade onic + © Cogito, ergo sum Descartes s6 interrompe a cadeia de divides ante do seu proprio ser que duvida: [..J enquanto eu queria assim pensar que tudo a falso, cumpria necessariamente que eu, que pensava, fossealguma coisa. E, notando que esta verdade ax pense, lage exsto er to firme ¢ tio certa que todas as mais extravagantes suposigbes «os céticos ndo seriam capazes de a abalar, ulguel que podia aceits-l, sem escripula, como 0 primecko principio dafilosofia que procurava.* Esse “eu” é puro pensamenta, uma res cngitans {um sor pensante). Portanto, 6 como se dissoace: “existo enquanto penso’, Com essa primeira intuicéo, Descartes Julga estar diante de uma ideta clara e dis- ‘inta, a partir da qual seria reconstrutdo todo o saber. Quismas Talvez vacé ache estranho o fato de nos referirmos ‘a0 texto de Descartes, um francés, com expressbes fem latim. E que, naquela época, ainda era costume 6 intelectuais se expressarem em lati a lingua considerada cult Embora 0 conceito de ideias claras e distintas rosolva alguns problemas com relagao a verdade de parte do nosso conhecimento, néo dé garan- tia alguma de que 0 objeto pensado correspond uma realidade fora do pensamento. Como sair do préprio pensamento e recuperar o mundo do qual tinha duvidado? Considerando as regras do método, Descartes deveria passar gradati- vamente de nogées j4 encontradas para outras igualmente indubitaveis. Para ir além dessa primeira intuigdo do cogito. Descartes examina se haveria no espirito outras ideias igualmente claras e distintas. Distingue entio tréstipos de idei +as que “parecem ter nascido comige (inatas); +s que vieram de fora (adventicias); «as que foram “feltas e inventadas por mim mesmo! (faticias) === Facticio. Do latim factitius, “artificial Em Descartes, Ideias inventadas pelo espirta, Ora, 0 cogito 6 uma ideia que nio deriva do par- ticular — no é do tipo das que "vém de fora’, for- ‘madas pela apo dos sentidos — nem tampouco 6 semelhante ix que criamos pola imaginagio. Ao io, jé se encontram no espirito, como fun damento para a apreensio de outras verdades. Portanto, sto idelas inatas, verdadeiras, nfo sujei- tas a erro, pois vém da razdo. Haveria outras ideias desse tipo além do cogito? Outra ideia inata é a de Deus, que veremos a seguir. > Ridein de Deus Ao examinar a ideia de Deus, Descartes aficma: Pelo nome de Deus entendo uma substncia infnita, eterna, imutével, independente, onisciente, ninoiente¢ peta qual eu préprio e todas as coisas ‘que sao {se € verdade que ha coksas que existe) foram criadas e produzidas? ‘Mas se essa ideia de fato existe na mente, o que garante que represente algo real? Ou seja, Deus existe de fato? Ora, a ideia de um Deus infinito faz pensar que a infinitude repousa na tdela de um ser perfeito. Como somos imperfeitos e finitos, nko podemos ter a ideia de perfeigio e infinitude, a menos que a causa dessa ideia seja justamente Deus. que imprime em nossa mente a ideia de per- feigio e infinitude. Descartes formula mais uma provadaexisténcia, deDeus, conhecida como prova ontoldgica: 0 pensa- mento desse objeto — Deus — é a idela de um ser perfeito; se um ser é perfeito, deve ter a perfeicao da cexisttncia, caso contrério the faltaria algo para ser perfeito. Portanto, cle existe, ‘Uma vez estabelectda, por dedugfo. a ideia inata de Deus como ser perfito, 0 passo seguinte seria indagar sobre a realidade das coisas materiais, Cogito, ergo sum. Do latim, "Penso, ogo existo™ ‘Nao se entenda, porém, a conjunc logo como.a ‘conclusdo de um raciocinio dedutiva. Para Descartes, ‘rata-se de uma intuicio pura, pela qual o ser pen- sante é percebido. ‘Oniscente. Do itm omnes,"tudo" Ser que tudo sabe. COnipotente. Ser que tude pode. "DESCARTES René. Disewso do método, Sto Paulo: Abril Cultural. 1973.p. 54. * Idem. p15, eet I ae cAoPrd HAD en

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