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CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

CASO GOMES LUND VS. BRASIL

ESTUDO ELABORADO POR ALUNOS DA FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO:

Cristiane Penhalver Jensen Mariana Augusta dos Santos Zago


Daniel Torres de Melo Ribeiro Maybi Rodrigues Mota
Jefferson Nascimento Renata Chiarinelli Laurino
Luís Fernando Matricardi Rodrigues Victor Marcel Pinheiro

I. Elaboração do estudo1

O presente estudo é resultado do envolvimento de alunos de graduação em disciplina de extensão


da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Amicus DH), especialmente voltada à sua
elaboração, organizada pelo professor de direito constitucional Virgílio Afonso da Silva e pela
doutoranda Evorah Cardoso. Sua elaboração contou também com a participação de Daniel Ribeiro
e Jefferson Nascimento, respectivamente, especialistas em direito penal internacional e sistema
interamericano.

A participação de estudantes no debate acerca do caso Gomes Lund (caso Guerrilha do Araguaia)
atende ao propósito de ensino e pesquisa do direito e das instituições jurídicas de forma
diferenciada, por buscar intervir qualificadamente no processo de interpretação e aplicação do

1
Originalmente, tal estudo tinha por objetivo ser apresentado como amicus curiae à Corte
Interamericana. O presente documento mantém a formatação e argumentação originais.
1
direito, seja ele doméstico ou internacional, em um tema de extrema relevância para toda
sociedade brasileira, como o tratado neste caso. Tal estudo pode ser considerado um instrumento
apto à promoção da participação da sociedade no processo de interpretação em questões de
grande impacto e relevância social que estejam na pauta das cortes domésticas e internacionais.
Tais instrumentos possuem, portanto, marcado caráter democrático e sua recepção reforça a
legitimidade do processo decisório dos tribunais.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CrIDH) possui amplo histórico de receptividade aos
amici curiae, indistintamente da etapa processual em que seus casos se encontram, tanto em sua
competência consultiva, quanto contenciosa.

2
Quadro 1: Casos contenciosos e consultivos da CrIDH com participação de amici curiae

Além disso, tornou-se maior o volume de participantes e diversificou-se o perfil dos atores que
ingressam como amicus curiae na CrIDH ao longo de sua história.

2
Quadro extraído de Evorah Cardoso. Litígio Estratégico e Sistema Interamericano de Direitos
Humanos. Dissertação de mestrado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 83.

2
Quadro 2: Participação e perfil de atores não estatais como amici curiae nos casos contenciosos e
3
consultivos da CrIDH

Vale notar, no quadro acima, a constante contribuição de representantes de universidades como


amici curiae nos casos consultivos e contenciosos da CrIDH.

Embora a CrIDH não seja obrigada a dialogar com os argumentos apresentados pelos amici curiae,
estes podem influenciar suas decisões. A influência, por ser indireta, poderia ser mensurada por
meio do contraste dos argumentos dos amici curiae com as sentenças ou opiniões consultivas da
CrIDH.

É possível notar que houve uma progressiva aceitação de amici curiae pela CrIDH, particularmente
nos procedimentos consultivos. Nas últimas opiniões consultivas, a CrIDH resumiu os argumentos
apresentados por todos os amici curiae. Ainda que o argumento não seja necessariamente
incorporado pela decisão, é um sinal de que seu conteúdo é avaliado pela CrIDH.

3
Quadro extraído de Evorah Cardoso. Litígio Estratégico e Sistema Interamericano de Direitos
Humanos. Dissertação de mestrado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 83.

3
Quadro 3: Amici curiae e participação em audiências públicas de atores não estatais nas opiniões
4
consultivas

Dado a ampla receptividade da CrIDH aos amici curiae apresentados, a relevância do tema e a
importância de se fomentar nos espaços acadêmicos jurídicos a participação dos alunos no
processo de interpretação e aplicação do direito, entendemos que o presente amicus curiae está
legitimado a pleitear o ingresso no Caso Gomes Lund.

Este amicus curiae tem por objetivo apresentar à CrIDH informações acerca do debate e do
tratamento jurídico da Lei nº 6683/1979 (Lei de Anistia) no âmbito doméstico brasileiro, além de
apresentar abordagens de interpretação constitucional distintas das desenvolvidas nestes
espaços, com base em aspectos doutrinários e de direito internacional. Nesse sentido, o presente
amicus curiae não é apenas um instrumento que traz informações à CrIDH sobre a Lei de Anistia
brasileira, pois busca também participar da disputa acerca da construção argumentativa de
interpretação jurídica dessa lei.

II. AMICUS CURIAE

O presente amicus curiae tem por objetivo demonstrar a inconstitucionalidade da interpretação


dada pelos tribunais brasileiros (em especial pelo Superior Tribunal Militar) à Lei 6.683 de 28 de
agosto de 1979 – "Lei de Anistia" –, ao compreenderem como anistiadas determinadas condutas

4
Quadro extraído de Evorah Cardoso. Litígio Estratégico e Sistema Interamericano de Direitos
Humanos. Dissertação de mestrado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2008, p. 82.

4
consideradas como crimes contra a humanidade, que são, em essência, crimes imprescritíveis e
não anistiáveis.

Ademais, acredita-se que a interpretação usual dada a esta lei ainda promove uma política de
esquecimento em relação aos crimes cometidos durante o período da ditadura no Brasil, o que
gera uma série de efeitos de constitucionalidade duvidosa, que perduram até os dias de hoje. Por
ser a interpretação dada à anistia "ampla, geral e irrestrita", ela impossibilita não apenas a punição
penal dos autores destes ilícitos como qualquer forma de responsabilização, impedindo diversas
respostas possíveis do Estado brasileiro a estes crimes.

O debate sobre a interpretação acerca da extensão dos efeitos da anistia brasileira passou por
uma nova etapa no Poder Judiciário com o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) da
Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153 (ADPF 153) que manteve a vigência
da Lei de Anistia brasileira e sua interpretação usual. Entretanto, tal debate não findou com esta
decisão do STF. Há ações judiciais que demandam a responsabilização civil, apenas em seus efeitos
declaratórios, dos autores de determinados crimes cometidos no período da ditadura; outras
ações judiciais, promovidas pelo Ministério Público Federal (MPF), baseiam-se na
imprescritibilidade de ações de ressarcimento ao erário público para cobrar dos autores dos
crimes as indenizações que têm sido pagas pela União às vítimas e familiares. Além disso, reflexos
do debate sobre a Lei da Anistia são sentidos em outras ações judiciais perante o STF, como é o
caso das ações diretas de inconstitucionalidade nº 4077 e nº 3987 – sobre sigilo de documentos
públicos5 –, e da Extradição nº 974.6 Tais ações judiciais ilustram as repercussões jurídicas deste
debate.

5
Os casos referentes a crimes cometidos no período da ditadura militar sofrem com a falta de
acesso à informação a documentos públicos da época. A negativa atual do acesso à informação de órgãos
públicos é em parte respaldada, de modo equivocado, na atual regulamentação que possibilita o sigilo de
documentos públicos. Tais ações diretas de inconstitucionalidade foram objeto de amicus curiae também
elaborado pelos alunos da disciplina optativa de extensão Amicus DH, da Faculdade de Direito da
Universidade de São Paulo. As ações judiciais correm o risco de serem prejudicadas pela possível perda do
objeto com a aprovação do Projeto de Lei 5228/2009, que não apenas dá nova regulamentação ao sigilo de
documentos públicos, mas também cria uma Lei de Acesso à Informação, até hoje inexistente no país.

5
O presente amicus curiae buscará esclarecer a distinção entre os momentos de responsabilização
e punição, termos utilizados de forma indistinta, até aqui, nos debates brasileiros sobre a revisão
da Lei de Anistia e sobre direito penal de modo geral – além de apresentar algumas alternativas de
interpretação constitucional desta lei com relação a seus efeitos, apresentando as diferentes
gradações possíveis das respostas do Estado brasileiro a estes crimes conforme seus efeitos
punitivos penais ou civis e declaratórios.

1. LEI DE ANISTIA NO BRASIL

A Lei da Anistia é apenas uma das respostas do Estado brasileiro aos crimes cometidos durante o
período da ditadura, que compreende o período entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de
1979.7 A interpretação dada a esta lei foi a mais extensiva possível: a anistia brasileira seria
"ampla, geral e irrestrita", englobando todos os crimes políticos e conexos a políticos – inclusive
crimes contra a humanidade, que são, por natureza, imprescritíveis e não anistiáveis.

A interpretação corrente dada à Lei de Anistia a caracteriza como uma anistia em branco.8 Anistias
em branco são caracterizadas pela amplitude de escopo, geralmente destinada a imunizar a
totalidade dos agentes do Estado por todos os crimes – sejam comuns, políticos ou internacionais,

6
Trata-se de extradição de militar uruguaio acusado na Argentina de participar da Operação Condor.
A extradição foi decidida pelo pleno do Supremo Tribunal Federal como procedente em parte, no dia
06.08.2009. Até o momento do envio deste amicus curiae, o acórdão ainda não havia sido publicado. “STF
autoriza extradição de major da Operação Condor à Argentina”, Notícias STF, disponível em:
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=111608&caixaBusca=N.
7
Entre outras respostas do Estado brasileiro, duas leis merecem destaque, ainda que com objetivos
e com cobertura temporal distintos: a lei 9.140, de 4 de dezembro de 1995, reconhece como mortas pessoas
desaparecidas em razão de participação, ou acusação de participação, em atividades políticas, no período de
2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, e a lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, que
regulamenta a indenização dos anistiados políticos e abrange situações ocorridas no período entre 18 de
setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. É preciso ressaltar que o reconhecimento da
inconstitucionalidade da interpretação dada até hoje à Lei de Anistia, questionada nesta ADPF, não tornam
as outras respostas do Estado brasileiro aos crimes cometidos durante a ditadura inconstitucionais.
8
Lúcia Elena Arantes Ferreira Bastos. As leis de anistia face ao Direito Internacional – O caso
brasileiro. Tese de doutorado, Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, 2007, p. 163.

6
independentemente de sua motivação – por eles cometidos em um período específico.9 Outro
elemento presente em anistias em branco é a ausência de legitimidade nacional, compreendida
como a aprovação por representação da vontade popular em um governo devidamente eleito por
seus próprios cidadãos.10

Leis de anistia em branco foram especialmente comuns na América Latina,11 que viu com
freqüência ditadores legislando em causa própria antes de negociar a transferência de poder,
evitando, assim, que as violações cometidas passassem pelo escrutínio dos governos democráticos
pós-transição.

A Corte Interamericana considerou em vários casos que as leis de anistia em branco são inválidas e
inaplicáveis, condenando Estados que as tinham emitido e declarando ser a anistia uma violação
ao direito internacional dos direitos humanos.12

9
William W. Burke-White “Protecting the Minority: A Place for Impunity - An Illustrated Survey of
Amnesty Legislation, Its Conformity with International Legal Obligations, and Its Potential as a Tool for
Minority-Majority Reconciliation”, in Journal on Ethnopolitics and Minority Issues in Europe, v. 4, 2000, p. 5.
10
A ausência de legitimidade do projeto de lei que ensejou a Lei de Anistia brasileira é passível de
apreensão, inter alia, a partir da análise das emendas ao projeto original. Cf. Mezarobba: “De fato, sua
propositura seguiu os desígnios do então presidente da República, General João Figueiredo, cujo plano
desde o princípio foi assegurar uma anistia irrestrita, garantindo um esquecimento total, condição sem a
qual nenhuma anistia seria aceitável. Presidente Figueiredo posteriormente conclamaria à ’pacificação’ e
’desarmamento dos espíritos’, dado a indispensável coexistência democrática”. Glenda Mezarobba. Um
Acerto de Contas com o Futuro: A Anistia e suas Conseqüências – Um Estudo do Caso Brasileiro,
Humanitas/Fapesp, São Paulo, 2003, p. 83.
11
Nesse sentido, merecem menções a Lei de anistia chilena (nº. 2.191, de 18.04.1978), decretada
pelo general Augusto Pinochet, abrangendo atos cometidos durante cinco anos de graves violações de
direitos humanos ocorridas após a deposição do governo do presidente Salvador Allende; as leis de anistia
do Peru (nº. 26.479 e 26.492, ambas de 1995), destinadas a assegurar imunidade a crimes comuns e
militares perpetrados por militares, policiais e civis no contexto do combate aos grupos Sendero Luminoso e
Tupac Amaru; as leis do Ponto Final (nº. 23.492, de 1986) e da Obediência Devida (nº. 23.521, de 1987), da
Argentina; a Lei de Anistia e Reabilitação Comunitária (Decreto nº. 210), de El Salvador; a Lei de Anistia Geral
e Reconciliação Nacional (nº. 81, de 1990), da Nicarágua; lei de anistia hondurenha (Decreto nº. 87, de
1991)e a Lei de Caducidade da Pretensão Punitiva do Estado (nº. 15.848, de 1986), do Uruguai.
12
Corte IDH. Caso Barrios Altos vs. Peru. Mérito. Sentença de 14/03/2001, Série C, no. 75, § 41; Corte
IDH. Caso Barrios Altos vs. Peru. Interpretação da Sentença de Mérito. Sentença de 03/09/2001, Série C, no.
83, § 15; Corte IDH. Caso Trujillo Oroza vs. Bolívia. Reparações e Custas. Sentença de 27/02/2002, Série C,
no. 92, § 106; Corte IDH. Caso La Cantuta vs. Peru. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 29/11/2006,
Série C, no. 162, § 152; Corte IDH. Caso Cantoral Huamaní e García Santa Cruz vs. Peru. Exceção Preliminar,
Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 10/07/2007, Série C, no. 167, § 190.

7
Na recente decisão do STF sobre a Lei de Anistia, na ADPF 153, o tribunal confirma o caráter de
anistia em branco conferido pela Lei de Anistia. A petição inicial da ação solicitava ao tribunal que
a Lei de Anistia fosse declarada incompatível com a Constituição Federal de 1988. Tal pedido
partiu do pressuposto de que haveria pelo menos duas interpretações possíveis da lei, sendo que
apenas a interpretação mais restritiva – que se ajusta aos compromissos assumidos pelo Brasil
internacionalmente e que respeita os direitos fundamentais reconhecidos e garantidos pelo seu
ordenamento jurídico – seria constitucional. A despeito da decisão do STF de manter a vigência da
Lei de Anistia e sua interpretação usual, consideramos que o debate judicial acerca da
interpretação e aplicação dessa lei ainda não se encerrou. Diversos processos judiciais ainda
tramitam sem decisão definitiva em diferentes níveis do poder judiciário brasileiro, além da
perspectiva de diálogo desses casos com uma possível decisão da CrIDH no caso Guerrilha do
Araguaia. Desta forma, ainda é possível abordar o caso brasileiro a partir de diferentes cenários de
interpretação e aplicação da Lei de Anistia.

1.1. Lei de Anistia e as duas possibilidades de interpretação discutidas até o momento

O artigo 1º da Lei de Anistia concede anistia a todos aqueles que, no período entre 1961 e 1979,
cometeram crimes políticos ou conexos com estes, entre outros, in verbis:

Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de


setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo
com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e
aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao
poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e
aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos
Institucionais e Complementares.
§ 1º - Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer
natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política.
§ 2º - Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática
de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal.
§ 3º - Terá direito à reversão ao Serviço Público a esposa do militar demitido por
Ato Institucional, que foi obrigada a pedir exoneração do respectivo cargo, para
poder habilitar-se ao montepio militar, obedecidas as exigências do art. 3º.”

8
Em relação ao caput e ao § 1º do dispositivo em questão, há pelos menos duas possibilidades de
interpretação.

A primeira – exposta, por exemplo, no Parecer da Advocacia Geral da União (AGU) apresentado na
ADPF 153 – vai no sentido de que houve anistia ampla e irrestrita a todos os opositores do regime
militar instalado, bem como aos agentes do regime que tenham praticado crimes contra esses
opositores. Entendeu-se que estes teriam cometido crimes conexos aos crimes políticos cometidos
pelos opositores do regime. Essa interpretação teria sido acolhida na jurisprudência do Superior
Tribunal Militar (STM), como se pode perceber na decisão transcrita a seguir:

Anistia. Condenação por crime político. Pena cumprida. Instituto de amplíssima


abrangência, a anistia produz efeitos 'ex tunc' apagando a sentença irrevogável
para alcançar o crime cujas conseqüências faz desaparecer. O anistiado pela EC 26,
prescinde da reabilitação decretada pelo juiz 'a quo'. Recurso provido para
desconstituir o despacho concessório de reabilitação. Extinção da punibilidade
decretada 'de ofício' face os temas do artigo 650 da lei adjetiva penal e EC 26 de
1985.13

A segunda possibilidade de interpretação do caput e § 1º da Lei de Anistia é aquela expressa na


petição inicial da ADPF 153, firmando que determinados crimes não foram anistiados – devendo-
se, portanto, responsabilizar os agentes dessas condutas no âmbito penal e civil. Assim,
prevaleceria o seguinte entendimento exposto na petição inicial:

irrefutável que não podia haver e não houve conexão entre os crimes políticos,
cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles
praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo. A conexão
só pode[ria] ser reconhecida nas hipóteses de crimes políticos e crimes comuns
perpetrados pela mesma pessoa (concurso material ou formal), ou por várias
pessoas em co-autoria. No caso, portanto, a anistia somente abrange[ria] os
autores de crimes políticos ou contra a segurança nacional e, eventualmente, de
crimes comuns a eles ligados pela comunhão de objetivos. É fora de qualquer
dúvida que os agentes policiais e militares da repressão política, durante o regime
castrense, não cometeram crimes políticos.14

13
STM Acórdão 1986.01.005751-7. Em sentido semelhante, ver STM 1984.01.032222,
1985.01.005666-9.
14
STF APDF 153, Petição inicial, p. 9.

9
Em seguida, mostra-se que são possíveis outras interpretações dos dispositivos questionados para
além das duas acima analisadas. Nesse sentido, no caso de mais de uma possibilidade de
interpretação de texto normativo – que, como defendido pelo ministro do STF Eros Grau, implica a
existência de mais de uma norma jurídica possível15 - devem ser elas analisadas, de modo a
verificar sua compatibilidade com o regime constitucional brasileiro e as normas de direito
internacional que conferem proteção aos direitos humanos.

Desse modo, o presente amicus curiae tem por objetivo revelar outras interpretações possíveis
dos dispositivos impugnados e identificar as conseqüências da adoção dessas outras
interpretações.

1.2. A controvérsia judicial brasileira

A petição inicial da ADPF 153 demonstrou somente controvérsias doutrinárias envolvendo a Lei de
Anistia, mencionando ainda algumas reportagens que demonstram a repercussão do tema nos
principais meios de mídia. Entretanto, não fez nenhuma menção às controvérsias judiciais às quais
se refere o dispositivo legal supra citado, o que não significa que elas não existam.

Há reiteradas decisões do STM que extinguem a punibilidade de determinados crimes com base na
Lei de Anistia. Ao mesmo tempo, foram propostas recentemente ações judiciais buscando a
responsabilização civil dos agentes militares que cometeram determinados crimes contra a

15
Eros Roberto Grau, Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito, São Paulo:
Malheiros, 2002, pp. 71 e ss. Mais recentemente, cf. Virgílio Afonso da Silva, "Princípios e regras: mitos e
equívocos acerca de uma distinção", Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais 1 (2003): pp. 615
e SS.

10
população civil durante a ditadura. É o caso das ações promovidas pela família Teles e pelo MPF
contra o Coronel Ustra, que comandou o DOI-Codi em São Paulo entre 1970 e 1974.

No que concerne ao caso da Família Teles,16 trata-se de ação declaratória proposta por Janaina de
Almeida Teles, Edson Luis de Almeida Teles, César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e
Criméia Alice Schmidt de Almeida em face de Carlos Alberto Brilhante Ustra, alegando terem sido
vítimas de tortura durante o regime militar. A sentença afastou, dentre outros questionamentos
preliminares relevantes, a preliminar acerca da falta de interesse processual em razão da aplicação
da Lei de Anistia. Por fim, acolheu e julgou procedente a ação declaratória em relação aos autores
César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de Almeida,
declarando que "entre eles e o réu Carlos Alberto Brilhante Ustra existe relação jurídica de
responsabilidade civil, nascida da prática de ato ilícito, gerador de danos morais".17

O MPF, por sua vez, propôs Ação Civil Pública em face da União Federal, de Ustra e de Audir
Santos Maciel. Em face destes dois últimos requer-se (i) a perda da função pública que
eventualmente exerçam e ainda sejam impedidos de investidura em qualquer função pública, (ii) a
reparação pelos danos morais coletivos, (iii) a reparação regressiva pelos atos praticados no
comando do DOI/CODI, (iv) a declaração da existência de responsabilidade pessoal. Em face da
União, requer-se a declaração de existência da obrigação do exército de tornar públicas as
informações sobre o DOI/CODI do período de 1970 a 1985 e a omissão em promover as ações
regressivas pelas indenizações das vítimas e familiares que sofreram danos decorrentes dos atos
praticados no período da ditadura. Esta ação foi extinta sem julgamento do mérito. Segundo o
MPF, "a sentença aponta como um dos motivos para o indeferimento o fato da morte ter ocorrido
'há muito passado', o que 'por si só não originaria a alegada violação aos direitos humanos
suficiente a ser reparada à toda a coletividade'".18 Recentemente, a ação foi reaberta por

16
Processo 583.00.2005.202853-5.
17
Decisão monocrática, Juiz Gustavo Santini Teodoro.
18
Ministério Público Federal, Procuradoria Da República No Estado De S. Paulo, Procuradoria
Regional Da República Na 3º Região, Assessoria De Comunicação, 26/03/09 -MPF recorre de decisão que
extinguiu ação civil sobre morte de Fiel Filho.

11
unanimidade pela 5ª Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, anulando a decisão de
primeiro grau que a extinguia.19

Uma segunda ação civil pública ajuizada pelo MPF20 visa assegurar a responsabilização da União,
do Estado de São Paulo, da Universidade Estadual de Campinas(UNICAMP), da Universidade
Estadual de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), bem como de
pessoas físicas, por terem contribuído para que ossadas de mortos e desaparecidos políticos no
período da ditadura militar permanecessem, até hoje, sem identificação.

Na referida ação, são articulados os pedidos de: (i) declaração da existência de


corresponsabilidade dos réus União Federal, Estado de São Paulo, UNICAMP, UFMG e USP perante
a sociedade brasileira e os familiares de desaparecidos políticos, pela não conclusão dos trabalhos
de identificação das ossadas de Perus; (ii) condenação dos mesmos à obrigação de fazer no
sentido de apresentarem pedido formal de desculpas aos familiares de desaparecidos políticos e à
sociedade brasileira pela negligência na condução dos trabalhos de identificação das ossadas de
Perus, a ser publicado em jornais de grande circulação, em espaço não inferior a ¼ (um quarto) de
página; (iii) condenação das universidades rés à obrigação de fazer consistente em construírem,
em local de destaque, como o prédio das respectivas Reitorias, memorial em homenagem às
vítimas de desaparecimento forçado que foram sepultadas irregularmente em Perus; (iv)
declaração da existência de responsabilidade pessoal dos réus pessoas físicas, perante a sociedade
brasileira, inclusive perante os familiares de desaparecidos políticos, pela não conclusão dos
trabalhos de identificação das ossadas de Perus; (v) condenação dos mesmos a repararem os
danos morais coletivos, na medida de suas culpabilidades, mediante indenização individual que se
requer seja fixada entre 2% (dois por cento) e 5% (cinco por cento) do respectivo patrimônio
mobiliário e imobiliário, utilizando-se como parâmetro o informado em sua última declaração de
Imposto de Renda, ou outro documento idôneo, atualizado monetariamente e acrescido de juros
moratórios, valor este que deverá ser revertido ao Fundo dos Direitos Difusos Lesados de que

19
“TRF-3 reabre ação contra torturadores de Fiel Filho”, Consultor Jurídico, 15.10.09. Disponível em:
http://www.conjur.com.br/2009-set-15/trf-reabre-acao-acusados-torturar-manoel-fiel-filho.
20
Processo nº 2009.61.00.025.169-4, em trâmite perante a 6º Vara Cível da Justiça Federal em São
Paulo.

12
trata a Lei nº 7.347/85. Alternativamente, a critério dos réus, a reparação poderá se dar mediante
a prestação de serviços não remunerados em instituições de promoção dos direitos humanos, por
prazo e frequência proporcionais à culpa de cada um, mas que se requer não seja o prazo inferior
a 1 ano, nem a frequência inferior a 4 horas semanais; (vi) condenação do Estado de São Paulo à
obrigação de manter os profissionais integrantes do seu Instituto Médico Legal à disposição para
trabalhos de exumação e identificação de restos mortais suspeitos de pertencerem a militantes
políticos, bastando, para tanto, apenas prévio e acordado agendamento por parte da Comissão
Especial de que trata a Lei nº 9.140/95, ou outra que vier legalmente a substituí-la; (vii)
condenação da União Federal à obrigação de implementar em caráter permanente (até que se
esgotem as possibilidades de identificação de desaparecidos), na Comissão Especial de Mortos e
Desaparecidos Políticos da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República,
ou outra que vier legalmente a substituí-la nas funções de localização e identificação de restos
mortais de militantes políticos, estrutura e financiamento aptos à realização desses serviços.

Deve-se destacar que foi proferida decisão judicial, em sede de antecipação de tutela,
determinando a estruturação de equipes de profissionais capacitadas a identificar as referidas
ossadas, da qual são extraídos os seguintes excertos:

Destarte, não podem os direitos humanos, diante de sua intangibilidade, ser


remetidos a uma lista de prioridades nunca atendidas, apresentado-se como
pedra angular do Estado de Direito que o Judiciário atue como Poder controlador
na iniciativa e implantação de políticas necessárias à sua defesa.(...)

O direito à dignidade individual que se estende aos grupos comunitários e


familiares é inerente à própria condição humana, cujo fundamento lastreia-se na
necessidade de um respeito coletivo e tem respaldo tanto na Constituição Federal
(art. 1°, III), quanto em tratados internacionais a que aderiu o Estado brasileiro.
(…)
No sistema americano, em que se encontra inscrito o Brasil, o instrumento de
maior importância é a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada
em San Jose da Costa Rica, em 1969, entrando em vigor com a promulgação do
Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992. Dentro do universo dos direitos
assegurados nessa Convenção destacam-se o direito à personalidade jurídica, o
direito à vida, o direito de não ser submetido à escravidão, o direito à liberdade,
(…) ressaltando-se que o art. 11 expressamente determina que a HONRA DAS
PESSOAS E SUAS FAMÍLIAS HÁ DE SER PRESERVADA.

13
E, na hipótese, não há como preservar a honra das pessoas ainda que falecidas,
nem de suas famílias, sem a identificação imediata dos ossos, individualizando-os,
o que permitirá, em seguida, um sepultamento digno dos corpos.”21

Ainda que não se refira aos efeitos penais da Lei 6.683/1979, há recente julgado do Superior
Tribunal de Justiça (STJ) em que se afirma serem imprescritíveis as violações à dignidade da pessoa
humana geradas por crimes cometidos por agentes do regime militar vigente nas décadas de 60,
70 e 80. Destaca-se trecho do julgado:

Processual civil. Administrativo. Indenização. Reparação de danos morais. Regime


militar. Perseguição e prisão por motivos políticos. Imprescritibilidade. Dignidade
da pessoa humana. Inaplicabilidade do art. 1.º do decreto n.º 20.910/32.
Esgotamento da via administrativa. Ofensa a dispositivos constitucionais.
Responsabilidade civil do estado. Danos morais. Indenização. Configuração,
redução do quantum indenizatório e honorários. Matéria fático-probatória.
Súmula n.º 07/STJ.
(...)
4. A violação aos direitos humanos ou direitos fundamentais da pessoa humana,
como sói ser a proteção da sua dignidade lesada pela tortura e prisão por delito de
opinião durante o Regime Militar de exceção enseja ação de reparação ex delicto
imprescritível, e ostenta amparo constitucional no art. 8.º, § 3.º, do Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias.
5. À luz das cláusulas pétreas constitucionais, é juridicamente sustentável assentar
que a proteção da dignidade da pessoa humana perdura enquanto subsiste a
República Federativa, posto seu fundamento.22

Do trecho exposto verifica-se que o STJ entendeu que a Lei de Anistia não é óbice para que: a)
determine-se, judicialmente, uma relação de causalidade entre atos cometidos por agentes do
regime militar e vítimas de crimes que violam a dignidade da pessoa humana, e b) exista a
reparação civil desta violação. Desse modo, entendeu o tribunal ser possível que se apurem em
juízo fatos ocorridos durante o regime militar, que gerem violação aos direitos fundamentais – o
que contraria a jurisprudência do STM acima mencionada.

21
Decisão monocrática, Juiz Federal João Batista Gonçalves (07.10.2008).
22
STJ REsp 959.904.

14
1.3. Os direitos violados pela interpretação predominante da Lei de Anistia no Brasil

A norma resultante da interpretação do art. 1o., parágrafo único, da Lei de Anistia, que entende
serem conexos aos crimes políticos, delitos como tortura, o desaparecimento forçado, o
seqüestro, o estupro, o homicídio e agressão a cidadãos por forças do Estado – entendendo-os
anistiados –, viola uma série de direitos assegurados pela Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (CADH), além de preceitos fundamentais presentes na Constituição Federal brasileira.

Dependendo da extensão que se dê à interpretação do art. 1º, caput e § 1º da Lei de Anistia,


diferentes preceitos fundamentais da Constituição Federal podem ser violados. Poder-se-ia citar o
direito à vida (art. 5º, caput), a garantia do devido processo legal (art. 5º, LIV), proteção à
dignidade humana (art. 1º, III) – que fundamenta a ordem objetiva de valores na Constituição –, e
o acesso à informação e direito à verdade (art. 5º, XIV).

Especificamente no que tange à garantia do devido processo legal, a CrIDH tem assinalado em sua
jurisprudência que a inexistência de um recurso efetivo – previsto no art. 25 da CADH – contra as
violações dos direitos reconhecidos pela CADH constitui uma transgressão a esta pelo Estado Parte
em que a situação tenha ocorrido.23 Ou seja, para que um recurso seja considerado efetivo, não
basta sua previsão na Constituição ou na lei ou que seja formalmente admissível, é requisito que
seja realmente idôneo para estabelecer se houve ou não violação de Direitos Humanos e, em caso
de resposta positiva, prover o necessário para remediar esta violação.24

Embora possa ser vislumbrado como uma garantia formal, no sentido de assegurar o devido
tratamento de uma violação 'substantiva' de um direito fundamental assegurado pela CADH, a

23
A violação a outros direitos presentes na CADH será apresentada ao longo deste amicus curiae.
24
Corte IDH. Caso Durand e Ugarte vs. Peru. Mérito. Sentença de 16/08/2000, Série C, no. 68, § 102;
Corte IDH, Garantias Judiciais em estados de emergência (arts. 27.2, 25 e 8 da Convenção Americana),
Opinião Consultiva OC-9/87, de 06/10/1987, Série A, no. 9, § 24; Corte IDH, Caso Yatama vs. Nicarágua,
Exceções Preliminares, Mérito, Reparação e Custas, Sentença de 23.06.2005, Série C, no. 127, §§ 167-169.

15
inexistência de um recurso efetivo contra violações de Direitos Humanos reconhecidos pela CADH
é por si só uma violação desta .25

A efetividade do recurso previsto no art. 25 refere-se à sua real capacidade de possibilitar a


interposição de um recurso simples e rápido, que permita alcançar, no caso concreto, a proteção
judicial requerida.26 Não se poderiam considerar, assim, efetivos os recursos que, devido às
condições gerais do país ou em decorrência das circunstâncias de um caso concreto, resultem
ilusórios.27

A CrIDH reconhece que o recurso efetivo previsto no art. 25 da CADH deve tramitar conforme as
normas do devido processo legal, como estabelece o Art. 8º da CADH, do qual se depreende que
as vítimas de violações de direitos humanos, ou seus familiares, devem dispor de amplas
possibilidades de serem ouvidos e de atuarem nos respectivos processos, tanto na tentativa de
esclarecer os fatos e punir os responsáveis, quanto na busca de uma devida reparação.28

25
Corte IDH, Caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua, Mérito, Reparações e Custas, Sentença
de 31/08/2001, Série C, no. 79, § 146; Corte IDH, Caso Ivcher Bronstein vs. Peru, Mérito, Reparações e
Custas, Sentença de 06/02/2001, Série C, no. 74, § 136; Corte IDH, Caso Tribunal Constitucional vs. Peru,
Mérito, Reparações e Custas, Sentença de 31/01/2001, Série C, no. 71, § 89.
26
Corte IDH. Caso Tibi vs. Equador. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de
07/09/2004, Série C, no. 114, § 131; Corte IDH, Caso Maritza Urrutia vs. Guatemala, Mérito, Reparações e
Custas, Sentença de 23/11/2003, Série C, no. 103, § 117; Corte IDH, Caso Juan Humberto Sanchez vs.
Honduras, Exceções Preliminares, Sentença de 07/06/2003, Série C, no. 99, § 121.
27
Corte IDH, Caso “Cinco Pensionistas” vs. Peru, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de
28/02/2003, Série C, no. 98, § 126; Corte IDH, Caso Las Palmeras vs. Colômbia, Mérito, Sentença de
06/12/2001, Série C, no. 90, § 58; e Corte IDH, Caso Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicarágua, Mérito,
Reparações e Custas, Sentença de 31/08/2001, Série C, no. 79, §§ 113-114.
28
Corte IDH, Caso Baldeón García vs. Peru, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de 06/04/2006,
Série C, no. 147, §§ 93 e 146; Corte IDH, Caso do Massacre de Pueblo Bello vs. Colômbia, Mérito, Reparações
e Custas, Sentença de 31/01/2006, Série C, no. 140, § 144; Corte IDH, Caso do “Massacre de Mapiripán” vs.
Colômbia, Exceções Preliminares, Sentença de 07/03/2005, Série C, no. 122, § 219; Corte IDH, Caso da
Comunidade Moiwana vs. Suriname, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de
15/06/2005, Série C, no. 124, §147; Corte IDH, Caso das Irmãs Serrano Cruz vs. El Salvador, Mérito,
Reparações e Custas, § 63; Corte IDH. Caso dos 19 Comerciantes vs. Colômbia. Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 05/07/2004, Série C, no. 109, § 186; Corte IDH. Caso Las Palmeras vs. Colômbia. Mérito.
Sentença de 06/12/2001, Série C, no. 90, § 59; Corte IDH. Caso Durand e Ugarte vs. Peru. Mérito. Sentença
de 16/08/2000, Série C, no. 68, § 129; e Corte IDH, Caso dos “Meninos de Rua” (Villagrán Morales e outros)
vs. Guatemala, Mérito, Sentença de 19/11/1999, Série C, no. 63, § 227.

16
Esses parâmetros de cumprimento do direito a um recurso efetivo, conforme entendimento
jurisprudencial da CrIDH, não têm sido observados na estrita aplicação da Lei de Anistia em sua
interpretação usual, conforme ratificado pela decisão do STF na ADPF 153. Na situação concreta, o
próprio Estado brasileiro já apontou que a investigação penal dos responsáveis pelos
desaparecimentos forçados das vítimas do presente Caso e pela execução de Maria Lucia Petit da
Silva estaria impossibilitada pela Lei de Anistia ainda vigente.29 A afirmação do Brasil, em sede de
contestação à presente demanda, de que um julgamento favorável à ADPF 153 teria eficácia erga
omnes, efeito vinculante e, possivelmente, efeitos ex tunc30 reforça a percepção de que o próprio
Estado reconhecia o óbice ao direito a um recurso efetivo representado pela Lei de Anistia, fiando-
se na mudança de sua interpretação como meio de sanar essa violação, o que, positivamente,
acabou por não se verificar com a decisão recente do STF.

Ainda, no plano do direito interno brasileiro, a decisão do STF na ADPF 153 foi equivocada na
medida em que não considerou todos os preceitos constitucionais violados pela interpretação
dada pela Lei de Anistia, esvaziando, com isso, o “dever estatal de proteção” a direitos
fundamentais de indivíduos contra ingerências de seus concidadãos.31 É dizer, em seqüência, que
a interpretação que aceita uma anistia ampla, geral e irrestrita – então hábil a trancar, de início,
qualquer possibilidade judicial de se reconhecer nexo entre os crimes comuns praticados e seus
autores – não confere nível de proteção adequado e bastante aos direitos fundamentais atingidos
já mencionados, amesquinhando sua realização sem fundamentação constitucional ou
convencional. Sempre que o Estado falhar na proteção devida a tais direitos – o que não implica

29
CIDH, Relatório No. 91/08 (mérito), nº. 11.552, Júlia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia),
Brasil, 31 de outubro de 2008, Apêndice 1, § 98.
30
Contestação do Estado do Brasil ao Caso Júlia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), nº.
11.552, § 157.
31
O reconhecimento dos chamados “deveres de proteção” parte da idéia de que, em alguns casos,
direitos fundamentais não sofrem ingerência direta do Estado, mas de outros cidadãos. Aqui, o dever estatal
não pode ser o de abstenção, senão o de proteção das liberdades individuais. Cf., por todos, Johannes
Dietlein, Die Lehre von den grundrechtlichen Schutzpflichten. Berlin: Duncker & Humblot, 1992, pp. 16 e ss.

17
de modo algum dizer que e.g. o direito penal é necessariamente o meio próprio ou único a tanto –,
encontrará a resistência do que se convencionou chamar de “proibição de insuficiência”.32

Para que se possa dimensionar com maior precisão as violações a preceitos fundamentais – e sua
intensidade correspondente –, resultantes da interpretação equivocada que se tem dado à Lei da
Anistia até aqui, deve-se, num primeiro momento, identificar os diferentes efeitos da anistia
enquanto instituto jurídico.

2. Demandas por novas interpretações constitucionais da Lei de Anistia

2.1. Dimensões dos efeitos da Lei de Anistia

É possível observar a existência de variados níveis de medidas estatais a serem adotadas como
resposta aos atos perpetrados durante a ditadura militar, que podem ir desde uma política de
promoção de acesso à informação, direito à memória e à verdade, até a responsabilização e
punição penal. Estas medidas estatais vêm sendo impedidas pela interpretação dos efeitos
“amplos, gerais e irrestritos” dados à Lei de Anistia até hoje. O atual debate judicial sobre a Lei de
Anistia questiona justamente os efeitos dessa interpretação. A seguir apresentamos as diversas
dimensões dos efeitos da Lei de Anistia para além dos efeitos penais debatidos na ADPF 153.

As políticas estatais de fomento a atividades que visam a preservar a memória coletiva no que
tange aos atos em questão, na maioria das vezes, não implicam a referida atribuição individual de
responsabilidade. São exemplos de tais políticas o apoio governamental ao acesso a documentos
oficiais que relatam os acontecimentos da época, bem como à edição de obras com o objetivo de
preservar esses relatos, como é o caso do livro “Direito à Memória e à Verdade”, publicado pela
Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que recupera a história de mais de 400 militantes
políticos perseguidos pela ditadura. Recentemente, também é possível destacar a tentativa de
localização, recolhimento e identificação dos corpos dos guerrilheiros mortos no Araguaia,
coordenada pelo Ministério da Defesa, em cumprimento à sentença proferida na Ação nº

32
Para primeira referência judicial a respeito, cf. a segunda decisão sobre o aborto do Tribunal
Constitucional Federal alemão: BVerfGE 88, 203 (Schwangerschaftsabbruch II).

18
82.00.24682-5, da 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Distrito Federal. De maneira geral, pode-
se afirmar que tais políticas possuem uma função historiográfica de preservação da memória
popular acerca dos acontecimentos que marcaram o passado recente do nosso país.

Há ainda as medidas que visam à atribuição legal de culpa aos indivíduos. Elas também cumprem,
por via reflexa, a função de preservação da memória coletiva e acesso à informação. Além da
atribuição de culpa, ou seja, da individualização do agente considerado responsável pelo ato de
violência praticado, é possível também que o Estado promova medidas para imputar sanções a
esses agentes. É o que ocorre quando é imputada uma sanção civil, gerando, com isso, o dever de
reparar o dano, ou de caráter penal, na qual sobressai a função punitiva da medida adotada.

Aqui é preciso ressaltar que a responsabilização individual pelos crimes cometidos pode ser
tomada autonomamente, em um sentido próprio, e não como requisito para a aplicação
conseguinte da sanção de caráter civil ou penal. Nesta perspectiva, a responsabilização consiste,
conforme o entendimento de Klaus Günther,33 na atribuição pública da culpa, por meio da qual é
fixado o nexo existente entre a conduta do agente e o evento que será atribuído como de sua
autoria.

É preciso destacar que a clara identificação de toda a gama de respostas estatais que podem ser
dadas ao tema é essencial para que a decisão a ser tomada na CrIDH, caso venha a confirmar a
atual interpretação dada à Lei de Anistia e mantida pelo STF, não consista, inadvertidamente, em
óbice às medidas não penais que têm sido adotadas. É preciso ressaltar, ainda, que a identificação
de tal gama de medidas tem como pressuposto a superação da interpretação da anistia como
esquecimento.

A anistia não se confunde com a absolvição, e por isso não impede a análise da culpa do agente.
Significa apenas que, por uma escolha de ordem política, contestada neste amicus curiae, em

33
Klaus Günther, The Criminal Law of “Guilt” as Subject of a Politics of Remembrance in Democracies,
em Emilios Christodoulidis e Scott Veitch (orgs), Justice, Law, Ethics and Reconciliation, Hart Publishing,
Oxford, 2001, p. 6-10

19
razão da interpretação ampla dada à expressão “crimes conexos aos políticos”, determinados atos
não serão submetidos à persecução penal.

2.2. Direito à Verdade, memória e acesso à informação

Antes de discorrer mais pormenorizadamente sobre as respostas estatais aos crimes perpetrados
durante a ditadura militar, talvez seja interessante recuperar um debate que também subjaz a
questão da anistia e que está relacionado ao acesso à informação e ao direito à verdade.

O acesso à informação é direito fundamental previsto no artigo 5º, XXXIII da Constituição Federal e
viabilizado por outros dispositivos constitucionais como o artigo 37, § 3º, II e o artigo 216, §2º, que
falam especificamente do acesso à informação na Administração Pública e o dever desta de gerir e
franquear a consulta da documentação governamental a quantos dela necessitem. Além de
possuir uma dimensão individual, que se traduz pelo direito de um indivíduo de obter informações
de seu interesse particular ou de interesse coletivo, o acesso à informação também tem uma
dimensão coletiva intimamente ligada à dimensão participativa da democracia, possibilitando aos
cidadãos uma decisão livre sobre os rumos do governo e também o controle das ações
governamentais, o que foi denominado por algumas legislações de acesso à informação pelo
mundo de transparência do governo.

Acontece que no Brasil as leis que regulamentam o inciso XXXIII do artigo 5º (lei nº 8.159/1991 e
lei nº 11.111/2005) não favorecem o acesso à informação; ao contrário, criam uma espécie de
cultura do sigilo ao estabelecerem prazos excessivos para o sigilo com fundamento na soberania
nacional, que é de 100 anos, e para o sigilo baseado na honra, com prazo de 30 anos prorrogáveis
por tempo indeterminado. Note-se, embora haja uma série de documentos cujo sigilo tem
realmente uma razão de ser, há atualmente um grande volume de documentos do tempo da
ditadura submetidos a este regime, entre eles aqueles que talvez comprovem ou que pelo menos
informem a sociedade sobre os crimes contra a humanidade perpetrados neste período.
Infelizmente, alguns destes documentos têm sido destruídos antes mesmo de terem a sua
existência catalogada, conforme já noticiado em mais de uma ocasião por jornais de grande

20
circulação, com prejuízos inestimáveis às tentativas de apuração e reconstrução histórica dos fatos
ocorridos nessa época.

São muitas as formas de lidar com essa situação: desde organizações sociais que visam a fomentar
a discussão do que ocorreu nessa época, a iniciativas da Secretaria de Direitos Humanos de
catalogar os relatos daqueles que sofreram nos porões da ditadura, entre outros. No âmbito
jurídico, há também as iniciativas judiciais que questionam a constitucionalidade das leis de sigilo
brasileiras e que ainda tramitam perante o STF (como nas ações diretas de inconstitucionalidade
3987 e 4077).

Conforme interpretação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o direito à liberdade


de pensamento e expressão, previsto no art. 13 da CADH, abrange a obrigação positiva do Estado
de permitir a seus cidadãos o acesso a informações sobre seu controle.34 De acordo com a
Declaração de Princípios sobre a Liberdade de Expressão da CIDH,35 toda pessoa tem o direito a
procurar, receber e repassar informações e opiniões, de forma livre, dentro dos parâmetros
estabelecidos pelo art. 13 da CADH, de forma igualitária (Princípio 2); além disso, todos têm o
direito de acesso a informação sobre si ou sobre seus bens de forma expedita e não onerosa,
esteja a informação contida em banco de dados, registros públicos ou privados, podendo, se
necessário, atualizá-la, corrigi-la ou emendá-la (Princípio 3). A Declaração prevê também que o
acesso à informação é um direito fundamental de todo indivíduo, cabendo ao Estado a obrigação
de garantir em sua totalidade esse direito (Princípio 4).

O direito de acesso à informação é considerado um instrumento fundamental no controle cidadão


dos negócios do Estado e da administração pública,36 na participação política por meio do
exercício de direitos políticos e no gozo pleno de outros direitos humanos, mormente dos grupos

34
Corte IDH. Caso Claude Reyes e outros vs. Chile. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de
19.09.2010, Série C, no. 151, § 58.
35
Conforme aprovado pela 108ª Sessão Ordinária da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
36
Corte IDH. Caso Claude Reyes e outros vs. Chile. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de
19.09.2010, Série C, no. 151, §§ 86-87.

21
mais vulneráveis.37 Em 1999, Declaração Conjunta dos Relatores Especiais sobre Liberdade de
Expressão das Nações Unidas, OCSE e OEA estabeleceu que a liberdade de expressão que é direito
público o amplo acesso à informação e o conhecimento sobre o que os governos fazem em seu
nome, sem o qual a verdade poderia ser menoscabada e a participação popular no governo
permaneceria fragmentada.

É nesse diapasão que, em recente relatório anual da Relatoria Especial sobre Liberdade de
Expressão,38 visando assegurar o completo e efetivo exercício do direito de acesso à informação
nas Américas, foram estabelecidas os seguintes princípios: (1) Princípio da Máxima Divulgação39,
que propugna que a transparência e o direito ao acesso à informação são a regra geral, passível de
exceções limitadas e estritas; e (2) Princípio da Boa-Fé, segundo o qual a garantia efetiva a esse
direito tem como aspecto crucial a atuação do Estado de boa-fé, assegurando a estrita
observância do direito, propiciando as medidas necessárias para auxílio aos demandantes,
promovendo uma cultura de transparência, e contribuindo para fazer a administração pública
mais responsiva (accountable), que aja com a devida diligência e profissionalismo. Ambos os
princípios não são observados pelo Estado brasileiro, face à relatada cultura de sigilo que envolve
o acesso à informação no Brasil.

Entretanto, há outra discussão sobre o acesso à informação, que é de extrema relevância quando
se analisam as diferentes respostas do Estado aos crimes perpetrados durante a ditadura militar, e
que aborda o direito à verdade e a chamada justiça transicional.

No sistema interamericano de direitos humanos, o direito à verdade tem por fundamento os


artigos 1.1, 8.1 e 25 da CADH, identificando-se, no caso concreto, ao direito dos familiares de
pessoas desaparecidas durante regimes ditatoriais de saber exatamente o que ocorreu,
encontrando expressão nas correspondentes responsabilizações, por meio da investigação e

37
CIDH, Relatório Anual do Escritório da Relatoria Especial para Liberdade de Expressão 2008.
OEA/Ser.L/V/II.134. Doc. 5. 25.02.2009. Capítulo III. § 147.
38
CIDH, Relatório Anual do Escritório da Relatoria Especial para Liberdade de Expressão 2009.
OEA/Ser.L/V/II. Doc. 51. 30.12.2009. Capítulo IV (B).
39
CIDH, Relatório Anual do Escritório da Relatoria Especial para Liberdade de Expressão 1999.
OEA/Ser.L/V/III. Doc. 3. rev. § 88; Comissão de Direitos Humanos. Resolução nº 2001/47. 57º período de
sessões. Sup. nº. 3, 209, E/CN.4/RES/2001/47 (2001).

22
julgamento conforme os padrões das garantias judiciais e da proteção judicial.40 Dessa forma,
sempre que se configura uma situação de impunidade, isto é, de falta de investigação, persecução,
captura, ajuizamento e condenação dos responsáveis pela violação dos direitos protegidos pela
CADH, está-se diante de uma violação do direito à memória.41

Positivamente, a prevalência do direito à verdade é condição necessária para assegurar a


efetividade das garantias judiciais (art. 8 da CADH) e do direito a uma proteção judicial (art. 25 da
CADH), reforçando-se reciprocamente, a partir de uma perspectiva não apenas individual, como
também coletiva, abrangendo também, em caso de desaparecimentos forçados, os familiares
imediatos. A obrigação de investigar adequadamente situações violadoras decorrentes da
implementação do direito à verdade é o liame essencial entre esse direito e a necessidade de
combater a impunidade.42 Ao Estado cabe combater a impunidade com todos os meios legais
disponíveis, sob o risco de, ao não fazê-lo, propiciar a repetição crônica de violações de direitos
humanos e uma situação de total ausência de defesa da vítima e seus familiares.43

A denegação do direito à verdade em algumas hipóteses – como em situações envolvendo


desaparecimento forçado de pessoas – constitui uma forma de tratamento cruel, desumano e
degradante dos familiares envolvidos,44 acarretando em violação do art. 5º da CADH.45 Esta

40
Caso Barrios Altos vs. Peru, Mérito, Sentença de 14.03.2001, Série C, no. 75, §§ 47-49; Corte IDH,
Caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala, Mérito, Sentença de 25.11.2000, Série C, no. 70, §§ 200-201, § 165,
§ 211.
41
Corte IDH, Caso da 'Panel Blanca' (Paniagua Morales e outros) vs. Guatemala, Mérito, Sentença de
08/03/1998, Série C, no. 37, § 173.
42
Corte IDH. Caso Cesti Hurtado vs. Peru. Reparações e Custas. Sentença de 31.05.2001, Série C, no.
78, §68; Corte IDH. Caso Cantoral Benavides vs. Peru. Reparações e Custas. Sentença de 03.12.2001, Série C,
no. 88, § 69; Corte IDH. Caso Las Palmeras vs. Colômbia. Reparações e Custas. Sentença de 26.11.2002, Série
C, no. 96, §§ 66-67, 69;
43
Corte IDH. Caso Cantoral Benavides vs. Peru. Reparações e Custas. Sentença de 03.12.2001, Série C,
no. 88, § 69; Corte IDH. Caso dos 'Niños da Calle' (Villagrán Morales e outros) vs. Guatemala. Reparações e
Custas. Sentença de 26.05.2001, Série C, no. 77, §100.
44
Corte IDH. Caso Trujillo Oroza vs. Bolívia. Reparações e Custas. Sentença de 27/02/2002, Série C,
no. 92, § 114; Corte IDH, Caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala, Mérito, Sentença de 25.11.2000, Série C,
no. 70, §§ 160, 165. No mesmo sentido: Corte Européia de Direitos Humanos. Caso Kurt vs. Turquia.
Julgamento de 25.05.1998, § 131; Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. Comunicação Quinteros
vs. Uruguai, nº. 107/198, decisão de 21.07.1983.
45
Corte IDH, Caso Bámaca Velásquez vs. Guatemala, Mérito, Sentença de 25.11.2000, Série C, no. 70,
§§ 200-201, 165, 211, além de voto separado do juiz Cançado Trindade, §§ 29-40.

23
afirmativa justifica-se na medida em que graves violações de direitos humanos, como
desaparecimentos forçados, geraram sofrimento e angústia, além de sentimento de insegurança,
frustração e impotência diante da abstenção das autoridades de investigar os fatos,
caracterizando-se, assim, a afronta ao direito à integridade física.46

A preocupação com a efetivação do direito à verdade nas Américas é permanente nos debates no
âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA). Nesse sentido, cabe mencionar o recente
debate no âmbito da sessão da Assembléia Geral da OEA, reconhecendo a importância de
respeitar e assegurar o direito à verdade para contribuir para o fim da impunidade e para a
promoção e proteção dos direitos humanos, encorajando todos os Estados a tomar medidas
necessárias para estabelecer mecanismos ou instituições para relatar informações sobre violações
de direitos humanos, com vistas a exercer o direito à verdade, prevenir violações futuras e
estabelecer accountability nesta área.47 O direito à verdade está diretamente relacionado ao
direito de acesso à informação, é um desdobramento deste, e deve ser considerado como um
preceito constitucional.

A justiça transicional, por sua vez, corresponde a uma série de medidas destinadas a promover o
esclarecimento e a publicização dos crimes cometidos contra a população civil, a responsabilização
dos agentes públicos perpetradores e a indenização das vítimas.

A relação entre estes dois institutos é clara: a justiça transicional, com suas comissões de verdade
e outros instrumentos de esclarecimento da verdade, viabiliza o conhecimento da verdade pelos
familiares da vítima e pela sociedade como um todo. Além disso, ela pode promover a
reconciliação de lados que se antagonizaram durante os anos de recrudescimento político, e pode
contribui em termos qualitativos para a democracia que se pretende instaurar, ao contribuir para
a não-repetição de violações aos direitos humanos.

46
Corte IDH, Caso Blake vs. Guatemala, Reparações e Custas, Sentença de 22/01/1999, Série C, no.
48, §§ 114, 116.
47
Resolução AG/RES. 2509 (XXXIX-O/09) (Direito à verdade) da Assembléia Geral da Organização dos
Estados Americanos, de 04.06.2009.

24
O Brasil, a despeito de ter vivenciado um regime autoritário entre 1964 e 1985, absteve-se de
tomar qualquer medida nesse sentido: a grande reconciliação teria sido promovida por uma lei de
anistia que supostamente isentara os dois lados de qualquer responsabilização legal. Esta medida
legal, todavia, não foi capaz de “botar uma pedra no passado”, já que as demandas por parte da
sociedade por uma alguma espécie de responsabilização continuaram.É importante lembrar que a
responsabilização penal é só uma das formas de responder estas demandas. Passa-se, a partir
deste momento, as discutir as respostas estatais que já existem, a despeito dos óbices impostos
pela Lei de Anistia.

2.3. Efeitos Declaratórios

Outra forma de resposta estatal ao tema da anistia deriva da já referida possibilidade de


responsabilização individual pelos atos cometidos, ainda que dissociada da posterior imputação de
uma sanção. Trata-se de medida que sublinha a função social própria do conceito de
responsabilidade, qual seja, comunicar, por meio da atribuição individual de culpa, que a conduta
de um determinado agente foi determinante para um acontecimento. Esse tipo de imputação
individualizada é importante porque, “em vez de ser atribuído a uma pessoa que age, o
acontecimento poderia ser imputado também às circunstâncias, à situação, a outras pessoas, à
sociedade ou simplesmente ao destino, e nesse caso a comunicação social se daria de maneira
diversa (...)”.48

A declaração judicial de culpa do agente possui extrema importância para as vítimas, já que, como
destaca Flávia Püschel, “passa-se a contar a história das agressões sofridas não como um acaso,
como um golpe do destino, como conseqüências de atos das próprias vítimas ou como
decorrência de processos sociais supra-individuais, mas como atos de autoria do réu,

48
Klaus Günther, Teoria da Responsabilidade no Estado Democrático de Direito, Saraiva, São Paulo,
2009, p.7. Organizadoras dos textos: Flávia Portela Püschel e Marta Rodriguez de Assis Machado.

25
individualmente”.49 No entanto, é preciso esclarecer que tal declaração não gera efeitos apenas no
âmbito individual. Pelo contrário, é um meio eficaz para veicular publicamente a contrariedade de
uma conduta em relação ao direito, bem como para garantir a validade da norma violada.

É esse o objetivo de ações declaratórias como a do processo nº 583.00.2005.202853-5/ SP, o qual


não contém qualquer pedido de cunho sancionatório, mas apenas declaratório que o réu, no
exercício do cargo de comandante do DOI-CODI, foi responsável por torturar os autores, situação
que deu origem a uma relação jurídica entre eles. Deve-se destacar que o simples fato da referida
ação não ter sido extinta sem julgamento do mérito demonstra o interesse existente na imputação
autônoma de culpa, pautada nas próprias disposições do artigo 4º do Código de Processo Civil:

Art. 4º do CPC: O interesse do autor pode limitar-se à declaração:


I. da existência ou inexistência de relação jurídica
II. da autenticidade ou falsidade de documento
Parágrafo único: É admissível a ação declaratória, ainda que tenha ocorrido
violação de direito.
É esse o entendimento que prevaleceu na sentença proferida no caso, da qual se extraiu o
seguinte excerto:

A tese de que a Lei de Anistia acarreta falta de interesse processual nesta ação
declaratória carece de fomento jurídico. É certo que a Lei nº 6.683, de 28 de
agosto de 1979, visou colocar ‘uma pedra nos acontecimentos do passado’ (fls.
426 – declaração do jurista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, na página A7 da
edição de 24 de novembro de 2006 do jornal ‘O Estado de São Paulo’), ou ainda,
‘cicatrizar feridas e reconciliar a nação por meio do esquecimento recíproco das
violências mútuas, as quais haviam despertado emoções intensas e dolorosas’ (fls.
445, artigo do coronel da reserva Jarbas Passarinho, na página A3 da edição de 28
de novembro de 2006 do jornal ‘Folha de São Paulo’). Entretanto, como já
decidido no saneador, ‘a lei de anistia refere-se apenas a crimes, não a demandas
de natureza civil.’ Basta ler a Lei nº 6.683/79 para verificar que, no que diz
respeito à anistia, seu campo de incidência é exclusivamente penal.

De fato, justifica-se o temor manifestado na defesa do réu da ação em questão ao afirmar que
declaração a ser dada pelo poder judiciário poderia constitui verdadeira via oblíqua de

49
Flavia Portela Püschel, A função comunicativa da responsabilidade civil: evidências a partir de um
caso de impunidade, in Artigo Direito GV [Working Paper], p. 10.

26
condenação. Isso se dá porque a responsabilização não é um ato sem conseqüência, ainda que do
mesmo não resulte qualquer forma de sanção. Na verdade, ações declaratórias como a citada são
capazes de aclarar a dimensão comunicativa da imputação de culpa, normalmente encoberta pela
aplicação da sanção.

2.4. Ressarcimento do Erário

A interpretação extensiva que tem sido dada à anistia concedida pela Lei de Anistia impediu, até o
momento, não só a punição de caráter penal e administrativa dos agentes, mas também o dever
de reparar civilmente o dano causado. O referido dever de reparação foi transferido para o Estado
(nos termos das leis nº 9.140, de 1995, e nº 10.559, de 2002), que passou a responder
objetivamente pelos atos perpetrados durante a ditadura, indenizando vítimas e seus familiares.
Com isso, foi preservada a idéia de irresponsabilidade individual dos agentes estatais.

Contudo, começa-se a discutir a possibilidade de ajuizamento de ações de regresso em face dos


indivíduos responsáveis por tais atos, a fim de ressarcir os cofres públicos. Com esse intuito,
conforme já analisado previamente neste amicus, o MPF ajuizou ações civis públicas contra
comandantes do Exército à época, tendo por objetivo a defesa dos direitos constitucionais à
verdade, à moralidade e à probidade, mediante a defesa do patrimônio público e social.

A Procuradoria da República em São Paulo foi instada a instaurar inquérito civil para averiguação
dos fatos cometidos durante a ditadura militar por meio da representação da Comissão de
Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. Também Fábio Konder Comparato representou à
Procuradoria da República em São Paulo, em 2007, para a adoção de medidas que visem ao
exercício do direito de regresso pelo Estado brasileiro em face dos causadores dos danos. Em tal
oportunidade, afirmou Fábio Comparato:

É fato notório que, durante o regime político inaugurado com o golpe militar de
1964, agentes públicos das diferentes unidades da federação, notadamente da
União Federal, praticaram abusos e atos criminosos contra opositores políticos ao
regime, em violação ao princípio da segurança pessoal. [...] A esse título

27
[indenização às vítimas e familiares], já foram despendidas pela União Federal (e
também por alguns Estados federados) elevadas somas pecuniárias. Mas, até hoje,
nenhuma ação regressiva foi intentada contra os agentes ou funcionários
causadores dos danos assim ressarcidos com dinheiro público. A propositura dessa
ação de regresso contra o agente público causador do dano é um dever do Estado.
[...] É por essas razões que o signatário toma a liberdade de apresentar a presente
representação(...).

Deve-se ressaltar que, uma vez reconhecido que a anistia instituída pela Lei de Anistia não implica
a impossibilidade de individualização da culpa, abre-se caminho para a reparação civil do dano
causado, a qual, em função da existência de responsabilidade objetiva do Estado, deve operar de
forma regressiva contra os agentes individualmente responsabilizados. No que tange aos valores
pagos a título de indenização após a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988, a
pretensão do Estado a ter tais valores ressarcidos é imprescritível, por força do artigo 37,
parágrafo 5º da Constituição Federal. Entre as pretensões regressivas dotadas de
imprescritibilidade encontram-se todas aquelas concedidas pela Comissão de Anistia, órgão
subordinado ao Ministério da Justiça, nos termos dos artigos 5º a 9º da Lei nº 10.559, de 2002.

3. EFEITOS PUNITIVOS PENAIS

Por se tratar do efeito mais controvertido em relação à Lei de Anistia, trataremos separadamente
e de modo mais extenso dos efeitos punitivos penais. A argumentação da inconstitucionalidade da
interpretação da Lei de Anistia que veda efeitos punitivos penais àqueles que cometeram crimes
durante a ditadura passa necessariamente pelo reconhecimento de que tais crimes são crimes
contra a humanidade e, portanto, crimes imprescritíveis. O conceito de crime contra a
humanidade é uma construção de direito internacional e comparado. Neste amicus curiae serão
apresentados o histórico da construção do conceito de crime contra a humanidade e seus
elementos constitutivos, que comumente são apresentados de maneira equivocada e distorcida.
No fim deste tópico, apresentaremos como a obrigação costumeira de combate e punição dos

28
crimes contra a humanidade pode ser considerada presente dentre os princípios que regem o
ordenamento jurídico brasileiro.

Uma possível interpretação à Lei da Anistia é a de que ela não exclui os chamados crimes contra a
humanidade, crimes que se notabilizam pelo ataque amplo ou sistemático à população civil.
Práticas como tortura, desaparecimentos forçados, políticas de assassinato, estupros e
perseguição com base em opiniões políticas caracterizam a ocorrência desse crime internacional.
Durante o período englobado pela Lei de Anistia, já existia no Direito Internacional costumeiro
uma definição clara e precisa desses crimes, que se constituem como normas que expressam os
principais valores da comunidade internacional.

3.1. Definição de Crimes Contra a Humanidade

A definição de crime contra a humanidade e os atos que o constituem constam, atualmente, no


art. 7º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional (TPI), que é a síntese do costume internacional
existente mais especificamente desde a década de 1940. Para ilustrar e esclarecer, seguem
transcritos o caput do mencionado artigo e as alíneas referentes a atos que foram
comprovadamente praticados no período do regime militar no Brasil50:

Artigo 7.º - Crimes contra a Humanidade


1 - Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a
Humanidade" qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um
ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo
conhecimento desse ataque:
a) Homicídio; (...)
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das
normas fundamentais do direito internacional;
f) Tortura; (...)

50
Carta de São Paulo, Debate Sul-Americano sobre Verdade e Responsabilidade em Crimes contra os
Direitos Humanos, realizado na cidade de São Paulo, nos dias 24 e 25 de maio de 2007, organizado pelo
Ministério Público Federal em São Paulo. Disponível em www.pgr.gov.br. Acessado em 20.05.2009. Amnesty
International. Report on allegations of Torture in Brazil. London, 1976. Arquidiocese de São Paulo. "Brasil:
nunca mais". Um relato para a história. 33. ed. Petrópolis: Vozes, 2003

29
g) Violação, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez à força, esterilização
à força ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade
comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por
motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo, tal
como definido no n.º 3, ou em função de outros critérios universalmente
reconhecidos como inaceitáveis em direito internacional, relacionados com
qualquer ato referido neste número ou com qualquer crime da competência do
Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas; (...)
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante que causem intencionalmente
grande sofrimento, ferimentos graves ou afetem a saúde mental ou física.

Em seguida, o art. 7º passa a tratar da definição de vários elementos, dentre eles "ataque contra
uma população civil", tortura, perseguição e desaparecimento forçado, que, verifica-se pelos fatos
investigados até hoje, foi exatamente o que praticou o Estado brasileiro no período militar:
"a) (...) qualquer conduta que envolva a prática múltipla de atos referidos no n.º 1
contra uma população civil, de acordo com a política de um Estado ou de uma
organização de praticar esses atos ou tendo em vista a prossecução dessa
política". (...)
e) Por "tortura" entende-se o ato por meio do qual uma dor ou sofrimentos
graves, físicos ou mentais, são intencionalmente causados a uma pessoa que
esteja sob a custódia ou o controlo do argüido (...)
g) Por "perseguição" entende-se a privação intencional e grave de direitos
fundamentais em violação do direito internacional por motivos relacionados com
a identidade do grupo ou da coletividade em causa; (...)
i) Por "desaparecimento forçado de pessoas" entende-se a detenção, a prisão ou o
seqüestro de pessoas por um Estado ou uma organização política, ou com a
autorização, o apoio ou a concordância destes, seguidos de recusa em reconhecer
tal estado de privação de liberdade ou a prestar qualquer informação sobre a
situação ou localização dessas pessoas, com o propósito de lhes negar a proteção
da lei por um longo período de tempo.

Crimes contra a humanidade são, assim, crimes de massa cometidos contra uma população civil.
Estes crimes incluem, além de extermínio e assassinatos, outras condutas que foram sendo
agregadas com o tempo como experiências históricas, tais como a escravidão, o apartheid, o
desaparecimento forçado, a deportação, estupros, prisões arbitrárias, perseguições e tortura.

30
A Corte Interamericana de Direitos Humanos considera que um crime de lesa humanidade é, em si
mesmo, uma grave violação dos direitos humanos, afetando à humanidade como um todo.51 A
Corte compartilha o entendimento do Tribunal Penal Internacional para a ex-Iugoslávia, o qual
definiu crimes contra a humanidade da seguinte forma:

(...) sérios atos de violência que causam danos a seres humanos ao golpear os
bens mais essenciais a eles: sua vida, seu bem-estar físico, sua saúde e/ou sua
dignidade. São atos desumanos que por sua extensão e gravidade vão além dos
limites toleráveis para a comunidade internacional, a qual deve necessariamente
exigir sua punição. Não obstante, crimes contra a humanidade também
transcendem o indivíduo, pois quando o indivíduo é agredido, a humanidade é
atacada e negada como um todo. Por isso o que caracteriza essencialmente o
crime contra a humanidade é o conceito de humanidade como vítima.52

O elemento material dos crimes contra a humanidade é o cometimento de um dos crimes dentro
do seu escopo em um contexto de violência ampla ou sistemática à população civil. Ou seja, para a
sua configuração, não é necessária apenas a prática de alguns atos reconhecidos como crimes
contra a humanidade, mas que esta prática tenha ocorrido dentro de um episódio maior de
violência generalizada contra a população civil.

O elemento mental desse crime compreende, além do dolo de realizar os atos enumerados como
crimes contra a humanidade, também o conhecimento de que esses atos se inserem em uma
campanha maior de violações de direitos humanos fundamentais, não sendo necessário que o
autor partilhe do objetivo por trás da campanha ampla ou sistemática, podendo agir, por exemplo,
por motivos pessoais, todavia dentro de um contexto maior de violência em massa.

No entanto, uma das modalidades de crime contra a humanidade requer um dolo específico, a
saber, o crime de perseguição. O crime de perseguição consiste na negação de direitos humanos
fundamentais em razão de visão política, religião, etnia, nacionalidade, cultura, ou mesmo pela

51
Corte IDH, Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile, Exceções Preliminares, Mérito, Reparações
e Custas, Sentença de 26/09/2006, Série C, no. 154, § 105; Corte IDH, Caso La Cantuta vs. Peru, Mérito,
Reparações e Custas, Sentença de 29/11/2006, Série C, no. 162, § 225.
52
ICTY - Prosecutor v. Erdemovic - Case No. IT-96-22-T, Sentencing Judgement of 29.11.1996, para.
28.

31
vítima pertencer a um determinado gênero. Nessa figura específica de crime contra a
humanidade, requer-se não só o dolo de cometer violações de direitos humanos fundamentais,
mas também que essas violações ocorram pelo fato de a vítima pertencer a um grupo protegido.

O bem jurídico protegido pela figura dos crimes contra a humanidade são os direitos humanos
fundamentais da população civil – protegem-se direitos fundamentais individuais, como o direito à
vida, liberdade, integridade física e dignidade. No entanto, esse tipo penal busca assegurar regras
mínimas de coexistência humana. Esse crime, portanto, embora proteja o indivíduo, também afeta
a comunidade internacional como um todo.

O critério da população civil como objeto do crime enfatiza a natureza coletiva dos crimes contra a
humanidade, não abrangendo ataques isolados contra indivíduos. A proteção à população civil é
compreendida dentro do contexto de sua necessidade e da incapacidade dessa população de se
defender diante de um ataque do Estado ou de entidades que exerçam atribuições de Estado.

Aqui o termo utilizado é “qualquer população civil”, evidenciando a razão de ser dos crimes contra
a humanidade, qual seja, a de proteger uma população civil de abusos de seu próprio Estado ou de
Estados estrangeiros. O objetivo dessa restrição é o de deixar de lado as ações militares e seus
objetivos e alvos, que são objeto de uma regulação especial – o Direito Humanitário. Nesse
sentido, a jurisprudência dos tribunais internacionais requer que a população civil seja o objetivo
primário do ataque cometido.53 Para a caracterização desses crimes não é necessário que toda a
população de uma determinada área seja vítima, mas um número relevante de indivíduos e não
apenas alguns, selecionados aleatoriamente, uma vez que a idéia de população civil já implica em
si um grande grupo de vítimas.54

O ataque a que se refere o tipo penal dos crimes contra a humanidade, por sua vez, requer o
cometimento de múltiplos atos listados como inumanos, embora não se requeira que o autor do
crime aja em múltiplas ocasiões. Assim, por exemplo, um soldado que tortura um prisioneiro

53
ICTY - Prosecutor v. Kunarac - Appeals Chamber judgement of 12.06.2002, para. 91.
54
Gerhard Werle. Principles of International Criminal Law Berlin, TMC Press, 2005, p. 224; Robert
Cryer et al. An Introduction to International Criminal Law and procedure Cambridge: Cambridge University
Press, 2007, p. 193.

32
apenas uma vez, mas dentro de um contexto em que estão ocorrendo múltiplas ofensas às
liberdades fundamentais, terá a sua conduta tipificada como crimes contra a humanidade. A
multiplicidade de ofensas não se confunde com o requisito de que esse ataque seja amplo; como
será discutido abaixo, ambos os termos medem a escala do ataque, porém a multiplicidade é um
critério de escala menor que a amplitude. Não é necessário que haja a utilização de força armada,
sendo necessário no entanto o abuso da população civil.

Outro requisito ainda controverso desse ataque é a organização e coordenação das ações, sendo
grande o debate na doutrina acerca da necessidade de um plano ou de uma política comum que
dirija, instigue ou encoraje a ocorrência desses crimes. Alguns autores afirmam inclusive que a
ocorrência de crime contra a humanidade só pode ser verificada dentro de um contexto estatal55
ou de uma entidade que exerça autoridade de facto sobre uma determinada localidade.56 A
grande questão é que, sem um critério de plano ou organização mínima, crimes comuns ou usuais
– comumente combatidos pelos Estados, tais como a máfia, violência de gangues ou mesmo
assassinatos em série – seriam elevados ao grau de crimes contra a humanidade, sendo que a
existência desse crime não se destina a situações facilmente combatidas pelos Estados, mas a
situações em que ou o próprio Estado está por trás desses crimes, ou quem os comete age
exercendo poderes típicos de Estado.

Durante a conferência de Roma para o estabelecimento do TPI, foi incorporada a necessidade de


um plano ou política comum, no artigo 7 (2) (a) do estatuto. Por outro lado, tribunais penais que
aplicam o direito costumeiro, como o Tribunal Penal para a ex-Iugoslávia não reconhecem como
presente no direito costumeiro o requisito de um plano ou política como condição para a
existência de crime contra a humanidade.57 Embora não admitindo a existência em direito
costumeiro desse requisito, ainda assim os tribunais reconhecem que atos aleatórios desconexos
não podem constituir um ataque, devendo haver conexão entre os episódios e a intenção de

55
William A. Schabas, “Crimes Against Humanity: The State Plan or Policy Element” em Essays in
Honor of M. Cherif Bassiouni Haia: Martinus Nijhoff, 2009, pp. 364; BASSIOUNI, M. Cherif, Crimes Against
Humanity in International Criminal Law, Haia: Kluwer Law International, 1999.
56
Antonio Cassese. “Crimes Against Humanity” in Cassese, A. Gaeta, P. Jones, J.R.D. The Romes
Statute of the International Criminal Court: a commentary vol. I. Haia: Martinus Nijhoff, 2004, pp. 353 – 378.
57
ICTY - Prosecutor v. Kunarac - Appeals Chamber judgement of 12.06.2002, para. 98.

33
dirigir esses atos à população civil, o que, por si só, já revelaria implicitamente a existência de um
grau mínimo de organização que transcende o criminoso individual.

Todavia, esse ataque – isto é, as múltiplas ofensas – deve ser amplo ou sistemático. O critério da
amplitude é um elemento quantitativo, podendo ser derivado do número de vítimas ou da
extensão geográfica dos ataques, ambos constituindo requisitos autônomos, suficientes. Assim,
apenas um ato de violência em massa de magnitude extraordinária pode ser qualificado como
amplo, bem como vários ataques dispersos. O critério da sistematicidade, por outro lado é um
aspecto predominantemente qualitativo, e se refere à organização e estruturação dos atos de
violência: são atos reiterados, cometidos dentro de uma estrutura hierarquizada, com um
planejamento detalhado e alocação de recursos para essa finalidade.

No caso brasileiro, existem indícios claros de que práticas como torturas e detenções arbitrárias,
longe de serem incidentes isolados, foram utilizadas de maneira sistemática como políticas de
Estado contra a população civil, embora as investigações oficiais sobre os acontecimentos
ocorridos durante o período sejam ainda incipientes.

Historiadores brasileiros, como Boris Fausto, ressaltam que, especialmente a partir da


promulgação do Ato Institucional Nº 5 em 1968, a “tortura passou a fazer parte dos métodos do
governo”,58 embora um número claro de vítimas ainda seja incerto, até pela recorrência da
prática.

No campo dos desaparecimentos forçados, calcula-se em 341 o número de opositores ao regime


que desapareceram durante o período,59 evidenciando que tal prática deve ser concebida como
uma atuação sistemática do Estado.

Outras condutas concebidas como crimes contra a humanidade, em especial aquela relacionada à
perseguição por motivos políticos, são demonstradas especialmente pelas próprias medidas
legislativas adotadas durante o período. Destaca-se o Ato Legislativo nº 5 de 1968, que permitia a

58
Boris Fausto. “História do Brasil” 13ª Ed. São Paulo: Edusp, 2009, p. 480;
59
Francisco Carlos Teixeira Silva. “A modernização autoritária: do golpe militar à redemocratização”
em Maria Yedda Linhares, (org.) História Geral do Brasil, 9ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000, p. 370.

34
possibilidade de detenções e limitações aos direitos políticos e de locomoção dos cidadãos ao
arbítrio do presidente da república sem a possibilidade de revisão da medida pelo poder judiciário.
A mesma medida previa ainda a possibilidade de confisco de bens e demissões ou aposentadoria
compulsória de funcionários públicos por decisão presidencial, sem possibilidade de revisão
judicial, além da cassação de mandatos políticos.

Tais medidas legislativas bem documentadas demonstram os instrumentos jurídicos utilizados


para privar os opositores políticos de direitos humanos fundamentais por motivo de suas opiniões
políticas, tais como a liberdade de locomoção, liberdade de expressão, direitos de propriedade e o
afastamento da apreciação pelo poder judiciário das medidas tomadas.

Tampouco é possível afirmar que se trata de medida típica de estado de exceção, uma vez que o
referido Ato Institucional teve duração de mais de dez anos, até a sua revogação em 1º de janeiro
de 1979.

Esses são alguns exemplos de práticas ocorridas durante o período da ditadura militar brasileira
que podem ser consideradas indícios da ocorrência de crimes contra a humanidade, no entanto, é
possível que outras venham a ser reveladas caso investigações profundas sobre o período
ocorram.

3.2. A existência da definição de Crimes Contra a Humanidade na ordem internacional durante o


período anistiado

O costume internacional é considerado uma fonte de direito internacional, ao lado dos tratados e
dos princípios gerais do direito, tal como disposto pelo art. 38 do Estatuto da Corte Internacional
de Justiça (CIJ) . Apesar de este dispositivo deixar de lado outras fontes do direito internacional
reconhecidas contemporaneamente pela doutrina especializada, ele traz alguns dados relevantes
para a análise que se quer propor. O primeiro deles é justamente o reconhecimento das fontes
listadas como fontes formais do direito internacional, já que são estas as fontes utilizadas

35
diretamente pelo juiz quando decide uma lide.60 O segundo dado relevante é a própria definição
de costume internacional como uma prática constante e reiterada no tempo com convicção de
juridicidade. Assim, identifica-se no processo costumeiro de elaboração de normas dois
elementos, que devem estar presentes concomitantemente, sendo o primeiro deles material e o
segundo de caráter psicológico: (1) a repetição de algum ou alguns atos; e (2) a convicção de que o
cumprimento daquele ato ou atos não se dá por mero uso ou cortesia, mas por uma convicção da
existência de uma norma que prescreve tal conduta.

Mas talvez o mais importante é que o artigo, ao enumerar as fontes de direito internacional, não
estabelece hierarquia entre elas. Assim, no direito internacional, em princípio não há hierarquia
entre as fontes. Isso significa que não é possível supor que os tratados prevaleçam
necessariamente sobre o costume. Este raciocínio decorre, na maioria das vezes, de uma
associação incorreta que se faz com o direito interno, em que a lei, como conjunto de normas
positivadas pelo Estado, sempre prevalece sobre o costume, que é considerado
conseqüentemente uma fonte menor. Todavia, a sociedade internacional permanece
descentralizada, o que acaba por impedir qualquer primazia de uma fonte de direito internacional
sobre a outra.61

Em outras palavras, o fato de o tratado dispor ou codificar uma norma costumeira – conforme já
decidiu a CIJ, instância judiciária máxima da ONU – não invalida, ou extingue a existência das

60
Nguyen Quoc Dinh, Patrick Daillier, Alain Pellet, Direito Internacional Público, 2ª Ed., Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 115
61
"Não é possível admitir, como postulado geral, que os tratados prevaleçam necessariamente sobre
o costume ou vice-versa. Seria bem diferente se, por um processo centralizado, uma das fontes dispusesse
de uma primazia incontestada. O estado atual da sociedade internacional, ainda largamente
descentralizada, impede tal conclusão. Todas as fontes são suscetíveis de traduzir, segundo modalidades
diferentes, exigências da sociedade internacional; em especial, não há '... qualquer razão para pensar que,
quando o direito internacional consuetudinário é constituído por regras idênticas às do direito convencional,
é suplantado por este de tal maneira que deixa de ter existência própria' (T.I.J., acórdão de 27 de junho de
1986, Activités militaires et paramilitaires au Nicaragua et contre celui-ci, Pec. 1986, p. 95)" (Nguyen Quoc
Dinh, Patrick Daillier, Alain Pellet, Direito Internacional Público, 2ª Ed., Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 2002, p. 116)

36
mesmas.62 De fato, as duas normas coexistem, tantos as de direito costumeiro, como as
disciplinadas em tratado, ainda que mera codificação de direito costumeiro.

A partir da manifestação da União, contida no documento apresentado da AGU na ADPF 153,


vislumbra-se ab initio o enfrentamento com o argumento, contraposto, de que o Estatuto do TPI,
especialmente no que se refere aos crimes contra a humanidade, só passou a ser aplicável ao
Brasil quando da sua ratificação. No entanto, fica claro que o seu conteúdo nada mais é do que o
reflexo do costume sedimentado na comunidade internacional, o que tornaria os crimes contra a
humanidade em pleno vigor no Brasil, ainda nas décadas de 60 e 70.

De fato, o primeiro documento importante que traz a idéia de crime contra a humanidade como
um conceito jurídico é a declaração conjunta da França, Grã-Bretanha e Rússia, de 1915.63 Essa
declaração mencionava os massacres em massa da população armênia perpetrados por turcos e
curdos em regiões do império otomano com a conivência e mesmo com o auxílio de oficiais turcos.
O documento das potências aliadas alerta para o fato de que todos os que participaram dos
massacres seriam responsabilizados pessoalmente pelos seus atos.64 Ao final da primeira guerra,
em razão de uma série de decisões políticas e da oposição americana, decide-se pelo não
julgamento dos responsáveis por tais crimes – em especial dos turcos.

No entanto, foi apenas em 1945 que o conceito de Crimes Contra a Humanidade foi efetivamente
definido e passou a integrar os crimes sob jurisdição do Tribunal Militar Internacional de
Nuremberg, criado para o julgamento dos maiores criminosos nazistas. Em comum com o
massacre armênio de 1915 estava a idéia de que membros de um governo devem ser
responsabilizados não somente pelos atos inumanos que cometem durante a guerra contra
populações de outros países – os chamados crimes de guerra, àquela época aceitos e
reconhecidos amplamente – mas também por aqueles cometidos dentro do próprio país, contra

62
Veja-se a esse respeito o caso Atividades Militares e Paramilitares dentro e contra a Nicarágua
(Estados Unidos da América vs. Nicarágua) em decisão preliminar publicada em 1984.
63
Robert Cryer et al. An Introduction to International Criminal Law and procedure Cambridge:
Cambridge University Press, 2007, p. 188.
64
Texto da declaração disponível em: http://www.armenian-
genocide.org/Affirmation.160/current_category.7/affirmation_detail.html (último acesso em maio de 2009).

37
os seus próprios cidadãos. A inclusão dos crimes contra a humanidade no estatuto do Tribunal de
Nuremberg permitiu, assim, o julgamento dos arquitetos das atrocidades contra as populações
judias e outros grupos perseguidos.

Alguns autores afirmam que àquela época, e como reflexo das condenações sobre o tratamento
absolutamente inumano das populações armênias, crimes contra a humanidade já eram
entendidos como parte do direito costumeiro, sendo assim cristalizada a sua definição pelo
estatuto do IMT.65 Outros autores contestam, no entanto, a existência jurídica dos crimes contra a
humanidade antes da Segunda Guerra, pelo fato de ser impossível ao direito regular o impensável
e, nesse caso, a extensão dos crimes de guerra para abarcar também essa afronta aos princípios
mais básicos de humanidade foi necessária.66

A primeira tipificação clara desse crime internacional trazia alguns elementos tais como a conexão
dos crimes com o conflito armado, o ataque contra a população civil, e o fato dessa violência
ocorrer em larga escala ou em massa.67 Essa primeira tipificação enumerava um rol não exaustivo
de crimes, a saber: assassinato, extermínio, escravidão, deportação, perseguição ou outros atos
inumanos. Uma evolução a se destacar do conceito de crime contra a humanidade foi a dada pela
Lei de Controle nº 10, promulgada pelas 4 potências aliadas ocupantes do território alemão, e que
não requeria a conexão com um conflito armado para a ocorrência do crime. Foram também
incluídos no rol de atos inumanos a tortura, o estupro e aprisionamentos.

A falta de conexão com o conflito armado é ponto discutível sobre a definição de Crimes Contra a
Humanidade durante a Segunda Guerra Mundial. A conexão com os conflitos armados buscava
legitimar o crime nascente ao estabelecer uma ligação com as normas já bem mais desenvolvidas
que regulavam a conduta em conflitos armados. Assim, a conexão entre os crimes contra a
humanidade e os conflitos armados vem da Cláusula Martens presente no preâmbulo das

65
Antonio Cassese. “Crimes Against Humanity” in CASSESE, A. GAETA, P. JONES, J.R.D. The Romes
Statute of the International Criminal Court: a commentary vol. I. Haia: Martinus Nijhoff, 2004, pp. 353 – 378.
66
M. Cherif Bassiouni, Crimes Against Humanity in International Criminal Law, Haia: Kluwer Law
International, 1999.
67
Robert Cryer et al. An Introduction to International Criminal Law and procedure Cambridge:
Cambridge University Press, 2007, p.218.

38
Convenções de Haia de 1907 e repetida ainda hoje nas Convenções de Genebra sobre o dever das
tropas de obedecerem às leis de humanidade em casos não regulados. Em última instância, o
nascimento como direito positivo dos crimes contra a humanidade deriva das Leis da Guerra.68

Mesmo em relação à Lei de Controle nº 10, embora não trouxesse explicitamente a vinculação
com os conflitos armados, alguns autores subentendem essa conexão, derivada do preâmbulo da
lei e do propósito dos julgamentos.69 A esse respeito, é interessante frisar que apenas os
julgamentos ocorridos na zona de ocupação britânica sob a autoridade da Lei de Controle nº 10
afirmam não ser necessária uma conexão entre abuso da população civil e o conflito armado.70

Por outro lado, os desenvolvimentos no direito costumeiro gradualmente eliminaram a conexão


entre os crimes e conflitos armados. Assim, a Convenção das Nações Unidas sobre a não
aplicabilidade de limitações estatutórias para crimes contra a humanidade e Crimes de Guerra, de
1968, elimina de maneira explícita essa distinção ao mencionar crimes contra a humanidade
cometidos em tempos de paz ou de guerra. Do mesmo modo, legislações nacionais ignoraram a
necessidade do nexo. É assim, por exemplo, na legislação canadense e francesa.71

Pelos quarenta anos seguintes, os procedimentos para o julgamento de Crimes Contra a


Humanidade se darão no âmbito doméstico. Com relação aos crimes cometidos durante a
Segunda Guerra Mundial, destacam-se os julgamentos de Adolf Eichman, em 1961, pela Suprema
Corte Israelense; o de Klaus Barbie, pela Cour de Cassation Francesa, em 1985; e o de Imre Finta,
pela Suprema Corte Canadense, em 1994.

Eichman, depois de viver na Argentina até 1960, foi sequestrado por agentes da inteligência de
Israel, onde foi julgado por crimes de guerra e crimes contra a humanidade. Klaus Barbie foi

68
M. Cherif Bassiouni, Crimes Against Humanity in International Criminal Law, Haia: Kluwer Law
International, 1999, p. 49.
69
Alexander Zahar e Goran Sluiter, International Criminal Law: a critical introduction. Oxford: Oxford
University Press, 2009, p. 205.
70
Gerhard Werle. Principles of International Criminal Law Berlin, TMC Press, 2005, p. 224, p. 217.
71
Antonio Cassese. “Crimes Against Humanity” in CASSESE, A. GAETA, P. JONES, J.R.D. The Romes
Statute of the International Criminal Court: a commentary vol. I. Haia: Martinus Nijhoff, 2004, pp. 353 – 378,
p. 358.

39
condenado, na França, em 1952 e em 1954, por assassinatos, incêndios dolosos, pilhagens e
sequestros arbitrários, prática de tortura e execução sumária de resistentes. No entanto, após o
seu julgamento, ele foge da França e permanece na Bolívia até 1983, quando é expulso e retorna
para a França, onde há a propositura de novas demandas contra si. Tendo a demanda sido
rejeitada pelo tribunal francês competente, coube então, ao fim, à Cour de Cassation – a mais alta
corte francesa – julgar as apelações, em 1985, o que fez com base na previsão de
imprescritibilidade dos crimes cometidos, contida no Estatuto do Tribunal de Nuremberg.72 Para a
presente análise é importante notar que Barbie foi julgado novamente mais de trinta anos depois
das primeiras sentenças para que fossem considerados os atos classificados como crimes contra a
humanidade pelo Estatuto do IMT e admitidas as ações civis públicas propostas pelos
representantes de suas vítimas.

Um fato interessante a se notar é o de que a legislação canadense sobre Crimes de Guerra e


Crimes Contra a Humanidade foi criada em meados da década de 1980 e, ainda assim, utilizada
para o julgamento de criminosos nazistas, uma prova evidente de que o crime já existia em caráter
costumeiro, ainda que não escrito.73 De fato, Finta foi absolvido, não por questões ligadas ao
procedimento adotado ou ao fato de que uma lei criada em 1985 servia de base para o julgamento
de atos ocorridos em 1943, mas porque a Suprema Corte Canadense entendeu que, sendo um
crime de caráter internacional, os elementos desse crime deveriam estar situados não somente na
legislação interna, mas também nos elementos presentes na definição costumeira internacional,
elementos que a promotoria não conseguiu demonstrar estarem presentes.

Em 1993, por recomendação da comissão de experts que avaliaram a situação humanitária e as


denúncias de crimes internacionais nas guerras balcânicas, o Conselho de Segurança da ONU
instaura o primeiro tribunal internacional desde Nuremberg para lidar com os principais crimes
internacionais. Ao Secretário-Geral coube a função de elaborar um esboço de estatuto para o
novo tribunal, que deveria aplicar apenas normas existentes à época do conflito.

72
A Corte ressalta diversas vezes a obrigação de investigar feitos que produziram violações à
Convenção.
73
M.J Schwarz “Prosecuting Crimes Against Humanity in Canada – what must be proved “The
Criminal Law Quarterly” vol 46 (1), 2002 pp. 40-88.

40
Embora não houvesse tratado ou convenção multilateral escrita que disciplinasse o assunto, o
Secretário-Geral e em seguida o Conselho de Segurança entenderam que os Crimes Contra a
Humanidade já eram parte consolidada do direito costumeiro internacional. Em 1995, após os
massacres em Ruanda, o Conselho de Segurança decide novamente implantar um tribunal ad-hoc
para a responsabilização dos autores e participantes dos massacres. A contribuição do estatuto
desse tribunal está em clarificar a definição de Crimes Contra a Humanidade, que até então eram
definidos como ataques a civis. Passa-se a uma definição mais completa: os crimes contra a
humanidade devem ser um ataque sistemático ou generalizado contra a população civil. Essa
definição não é, em si, inovadora, pois o caráter de abuso sistemático e em massa necessário à
existência do crime já existia desde Nuremberg.

O estabelecimento do Tribunal Penal Internacional, embora ocorrido apenas em 1998, reproduz


em seu artigo 7º, com alguns acréscimos, o mesmo rol de ofensas existentes desde Nuremberg –
não como nova legislação, senão como codificação de uma norma costumeira que vinha sendo
praticada há mais de 50 anos.

Um fato sobre o status de costume internacional das disposições sobre crimes contra a
humanidade no estatuto de Roma ocorre em 2003, com a assinatura pela Organização das Nações
Unidas e o Reino do Camboja de um acordo para estabelecer Câmaras Extraordinárias dentro da
jurisdição cambojana em cooperação com a ONU para julgar os crimes cometidos entre 1975 e
1979, durante o regime do Khmer Vermelho. A competência material das novas câmaras,
estabelecida em tratado, abrange genocídio, crimes de guerra e Crimes Contra a Humanidade,
sendo a definição desses últimos remetidas ao estatuto de Roma.74 Em outras palavras, um
tribunal constituído em 2003, para o julgamento de crimes ocorridos entre 1975 e 1979, remete a
um instrumento celebrado em 1998 para a definição de um dos crimes em sua jurisdição. Isso
atesta o caráter costumeiro da definição apresentada pelo Estatuto de Roma.

Na América Latina, destacam-se os julgamentos mais recentes por crimes cometidos durante os
governos militares ditatoriais que se instalaram na região entre as décadas de 60 e 80. No sistema

74
Art. 9 do Acordo. Disponível em:
http://www.eccc.gov.kh/english/cabinet/agreement/5/Agreement_between_UN_and_RGC.pdf.

41
interamericano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já teve a oportunidade de
manifestar-se sobre o caráter de jus cogens da proibição de algumas condutas consideradas como
crimes de lesa humanidade. Tais crimes – dentre os quais a prática sistemática de
desaparecimentos forçados75 e a tortura – implicariam no dever do Estado de investigar e
sancionar os responsáveis, não cabendo considerá-los como crimes políticos ou conexos a políticos
em nenhuma circunstância, principalmente com o intuito de impedir a persecução penal ou
suprimir os efeitos de uma sentença condenatória.76

Destaca-se que autoridades brasileiras podem ser acionadas pela Justiça da Itália, da Espanha ou
da França, a exemplo do que aconteceu com o ditador chileno Augusto Pinochet, cuja prisão foi
decretada na Inglaterra, em 1998, a pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón.

Nesse sentido, a prática de Crimes Contra a Humanidade é reconhecidamente um crime que


qualquer Estado possui interesse e o dever de punir e, portanto, sujeita-se, juntamente com o
genocídio, alguns crimes de guerra, a pirataria e a escravidão, ao regime da jurisdição universal.

3.3. Imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade

Segundo Gonzalo Aguilar Cavallo, "los crímenes internacionales han disuelto el estatuto de
limitación temporal penal, y el impedimento de persecución. En efecto, desde comienzos del siglo
XX e incluso desde antes, de manera expresa y efectiva, el Derecho Internacional, decidió poner fin
a esta vinculación entre el tiempo y la memoria, para los crímenes internacionales."77 Assim, o
princípio da imprescritibilidade dos crimes que impliquem grave violação aos direitos humanos foi
gradualmente construído no cenário internacional. Já em agosto de 1945, o Acordo de Londres
adotou esse princípio, e, em outubro de 1946, a Declaração de Moscou sinalizava no sentido de
adotá-lo.

75
Resolução AG/RES. 666 (XIII-O/83) da Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos.
76
Corte IDH, Caso La Cantuta vs. Peru, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de 29.11.2006, Série C,
no. 162, § 91; Corte IDH, Caso Goiburú e outros vs. Paraguai, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de
22.09.2006, Série C, no. 153, § 84 e 131; Corte IDH, Caso La Cantuta vs. Peru, Mérito, Reparações e Custas,
Sentença de 29.11.2006, Série C, no. 162, § 157. .
77
Gonzalo Aguilar Cavallo. Crímenes Internacionales y la Imprescriptibilidad de la Acción Penal y Civil:
Referencia al Caso Chileno. Revista Ius et Praxis - año 14 - n° 2 : 147-207, 2008.

42
O Tribunal Distrital de Jerusalém, quando do julgamento de Eichmann (já referido anteriormente)
desconsiderou as alegações de prescrição, pois se estava diante de crimes contra a humanidade e
de crimes de guerra. O princípio da imprescritibilidade desses tipos de crime foi posteriormente
incorporado ao Direito Israelense, em 1966.

A Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade,
de 26 de Novembro de 1968, é um marco para o seu reconhecimento, uma vez que significou a
positivação de entendimento já presente no costume internacional, como é possível observar nos
dois exemplos acima citados. Ademais, no caso La Cantuta v. Peru, a CrIDH fez a seguinte
afirmação:

[...] Aún cuando [el Estado] no ha[ya] ratificado dicha Convención (sobre
imprescriptibilidad de los crímenes de guerra y contra la humanidad), esta Corte
considera que la imprescriptibilidad de los crímenes de lesa humanidad surge
como categoría de norma de Derecho Internacional General (ius cogens), que no
nace con tal Convención sino que está reconocida en ella. Consecuentemente, [el
Estado] no puede dejar de cumplir esta norma imperativa.

A jurisprudência argentina reconhece o princípio da imprescritibilidade dos crimes contra a


humanidade como um direito costumeiro. No caso Arancibia Clavel, mantendo posição
semelhante à manifestada no caso Simón, a Corte Suprema afirmou o seguinte sobre este tipo de
crime:

'es imprescriptible, sin que corresponda declarar extinta la acción penal aun
cuando haya transcurrido el plazo previsto en (...) el Código Penal, pues tal
disposición resulta desplazada por el derecho internacional consuetudinario y la
Convención sobre la Imprescriptibilidad de los Crímenes de Guerra y de los
Crímenes de Lesa Humanidad".

A mesma posição é sustentada pela jurisprudência chilena, especialmente da Corte de Apelações.


Acrescente-se que a Corte Suprema do Chile afirmou ser esse direito costumeiro plenamente
vigente e aplicável no foro nacional:

43
no obstante que la citada Convención no se encuentra incorporada a nuestro
ordenamiento jurídico como tal, en realidad aquella se limitó a afirmar la
imprescriptibilidad de tales deplorables hechos -amén de las fuentes citadas en su
Preámbulo-, lo que importa el reconocimiento de una norma ya vigente (ius
cogens) en función del derecho internacional público de origen consuetudinario,
confirmando un principio instalado por la costumbre internacional, que ya tenía
vigencia al tiempo de la realización de los sucesos, pues por su naturaleza
preexiste al momento de su positivización. Desde esta perspectiva, es posible
afirmar que la costumbre internacional ya consideraba imprescriptibles los
crímenes contra la humanidad con anterioridad a la mentada convención, y que
esta también era materia común del derecho internacional.78

Dessa forma, é possível observar que, quando do cometimento dos delitos perpetrados ao longo
período militar, a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade, nos quais se encaixam, por
exemplo, a prática de tortura e de desaparecimento forçado, já era largamente reconhecida, tanto
que foram objeto de positivação em vários documentos internacionais.79

Atualmente, a imprescritibilidade de tais crimes encontra-se prevista em várias disposições


internacionais, entre as quais destacam-se: (i) a Declaração da Assembléia Geral da ONU, de
dezembro de 1992, na qual se aponta que desaparecimento forçado como crime contra a
humanidade e, por conta disso, imprescritível, (ii) a Convenção Interamericana sobre
Desaparecimentos Forçados, de Junho de 2004, (iii) os artigos II a V do Estatuto do Tribunal Penal
para a Ex-Iugoslávia, e (iv) o artigo 29 do Estatuto do Tribunal Penal Internacional.

Deve-se ressaltar, ainda, a experiência da Argentina que, em várias oportunidades, decidiu pela
imprescritibilidade, considerando-a uma norma de ius cogens.80

78
Caso Ricardo Aurelio Troncoso Muñoz y otros.
79
Gonzalo Aguilar Cavallo. Crímenes Internacionales y la Imprescriptibilidad de la Acción Penal y Civil:
Referencia al Caso Chileno. Revista Ius et Praxis - año 14 - n° 2 : 147-207, 2008.
80
Corte Federal de Buenos Aires, caso Massera, de setembro de 1999, Câmara Nacional de Apelação,
caso Acosa, de 1999, Corte de Apelação Federal de La Plata, caso JFL Schwannberg, de agosto de 1989.

44
3.4. Recepção do costume internacional e dos crimes contra a humanidade pelo ordenamento
jurídico brasileiro

A recepção do Direito Internacional pelo ordenamento jurídico brasileiro é um tema que pode ser
analisado de duas maneiras. A primeira delas refere-se basicamente ao procedimento pelo qual o
Direito Internacional é internalizado, tornando-se norma jurídica válida e eficaz no território
brasileiro, e que engloba a assinatura do tratado, a sua aprovação pelo Poder Legislativo, a sua
promulgação via decreto presidencial e, finalmente, a comunicação aos outros Estados-partes de
que os trâmites internos de incorporação foram cumpridos.

A segunda maneira – talvez a mais importante para esta exposição – está ligada ao status jurídico
que uma norma de direito internacional assume quando integrada ao ordenamento jurídico
brasileiro, ou seja, qual o seu nível hierárquico em relação a outras normas do direito nacional.
Sobre isto, a Constituição infelizmente não forneceu uma resposta clara, cabendo ao STF a tarefa
de fazê-lo no RE nº 80.004, quando decidiu que um tratado incorporado ao ordenamento jurídico
brasileiro tem status de lei ordinária, podendo, inclusive, ser revogado por lei posterior.

Todavia, a situação muda quando o assunto são os tratados em matéria de direitos humanos. O
STF decidiu recentemente pelo status supralegal das normas dos tratados em matéria de direitos
humanos internalizados antes da Emenda Constitucional 45, de 2004, tendo como fundamento o
artigo 5º, §§2º e 3º da Constituição Federal. Pretende-se, a seguir, dedicar algumas linhas sobre
este dispositivo constitucional, bem como do artigo 4º da Constituição Federal, que estabelece
que o Brasil se regerá nas suas relações internacionais, entre outras coisas, pela prevalência dos
princípios de direitos humanos. No item seguinte será abordada a aplicação do costume
internacional na jurisprudência do STF.

Pretende-se demonstrar que, apesar da Constituição falar somente sobre incorporação de


tratados, ou de princípios de direitos humanos que decorrem de tratados, o costume internacional
também é aceito e aplicado pelas cortes nacionais, independentemente de um dispositivo
constitucional que reconheça expressamente a aplicabilidade desta fonte do direito internacional
e de qualquer procedimento de recepção. Reconhecido e provado que os crimes contra a

45
humanidade são costumes sedimentados no âmbito internacional desde a metade do século
passado, destina-se este item a corroborar o argumento de que estas normas já incidiam no
território nacional quando os crimes, cuja anistia hoje se questiona, foram cometidos.

3.4.1. Os artigos 5º, §2º, e 4º, II, da Constituição Federal de 1988

O artigo 5º §2º da Constituição de 1988, segundo o qual os direitos e garantias expressos nesta
Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos
tratados internacionais em que o Brasil seja parte, já gerou muitas discussões por parte da
doutrina brasileira. Assim, havia aqueles que propugnavam que todos os tratados permaneciam
incorporados como lei ordinária, sendo este o posicionamento adotado pelo STF durante muito
tempo e que está cristalizado no HC nº 80004/SE; outros, como o ex-presidente da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, Professor Antônio Augusto Cançado Trindade, e a Dra. Flávia
Piovesan, afirmavam o status constitucional dos tratados incorporados com base neste
dispositivo. Por fim, havia uma posição intermediária, assumida por Sepúlveda Pertence, que
defendia a supralegalidade destes tratados.81

Esta discussão desenvolveu-se baseada em argumentos semelhantes no âmbito do STF, que


recentemente se posicionou no sentido de conferir o status supralegal aos tratados sobre direitos
humanos incorporados antes da Emenda Constitucional nº 45/2004, como se pode depreender da
leitura do RE 349.703/RS, RE 349.703/RS, RE 466.343/RS, HC 87.585/TO, HC 92566/SP, entre
outras decisões desta Corte.

O voto do Ministro Gilmar Mendes nos autos do RE 466.343/RS, que é o leading case sobre a
posição hierárquica do Pacto de San Jose da Costa Rica no ordenamento jurídico brasileiro,
considera a inserção do artigo 5º, § 3º na Constituição Federal do Brasil uma “declaração
eloqüente de que os tratados que versam sobre direitos humanos ratificados antes da emenda

81
Sobre esta discussão acerca do status dos tratados sobre direitos humanos no ordenamento
jurídico brasileiro, ver voto do Ministro Gilmar Mendes no RE nº 466.343/RS, disponível em www.stf.jus.br.

46
constitucional”, não submetidos ao rito previsto no artigo 5º, § 3º (que é igual ao procedimento de
aprovação de uma emenda constitucional), não poderiam ter status constitucional. Por outro lado,
não se poderia negar “que a reforma também acabou por ressaltar o caráter especial dos tratados
de direitos humanos em relação aos demais tratados de reciprocidade entre os Estados
pactuantes, conferindo-lhes lugar privilegiado no ordenamento jurídico”82. Posteriormente,
conclui o mesmo Ministro, após considerar outros argumentos, o seguinte:

parece mais consistente a interpretação que atribui a característica de


supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna
pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam
infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais
atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de
supralegalidade.83

Isto posto, pretende-se demonstrar a partir deste momento, conforme já anunciado supra, que o
artigo 5º, § 2º da Constituição, além de albergar a supralegalidade dos tratados de direitos
humanos, também permite a internalização de normas de costume internacional que versam
sobre direitos humanos. Afinal, não faria sentido que a atual Constituição, ao abrir o ordenamento
jurídico pátrio às normas de direito internacional que versem sobre direitos humanos,
estabelecesse uma hierarquia de fontes de direito internacional – algo que a própria comunidade
internacional desconhece.

Como já se apontou, não há hierarquia entre tratado e costume internacional para o Direito
Internacional. O costume internacional, por outro lado, é a fonte mais dinâmica das duas, e que,
por este motivo, evidencia melhor as transformações pelas quais o direito internacional passa.

É importante lembrar que muitos institutos do direito internacional que estão atualmente
incorporados em tratados, como é o caso das relações diplomáticas e consulares, eram
reconhecidos pela comunidade internacional e mesmo pelos ordenamentos jurídicos nacionais

82
RE 466343/SP, Relator(a): Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 03/12/2008, DJe-104
DIVULG 04-06-2009 PUBLIC 05-06-2009 EMENT VOL-02363-06 PP-01106 RDECTRAB v. 17, n. 186, 2010, p.
29-165,P 1144.
83
RE 466343/SP, P 1154.

47
quando sua única fonte era o costume internacional. O mesmo aconteceu com os crimes contra a
humanidade, que eram normas jurídicas vigentes e aplicáveis muito antes da sua previsão no
estatuto do TPI.

É fato que o costume exprime algumas vezes normas em formação ou em transformação, mas isso
não significa que estas não incidam no decorrer deste processo. O caso dos crimes contra a
humanidade, como já visto no tópico sobre o seu histórico na última metade do século XX,
confirma esta afirmação.É importante ressaltar que o fato da literalidade do artigo 5º, § 2º do
texto constitucional brasileiro se restringir apenas a “tratados” não impediu a utilização do
costume internacional pelo STF, que já se utilizou de normas consuetudinárias internacionais em
pelo menos duas ocasiões.

A primeira delas aborda os casos de imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro no Brasil (cita-
se a ACi 9705). Embora o STF tenha apontado como fundamento a Convenção de Viena sobre
Relações Diplomáticas, não deixa de mencionar que a decisão também decorre dos costumes
internacionais.É importante deixar consignado que a própria convenção nada mais é do que uma
codificação de um costume internacional. Todavia, não se pode deixar de admitir que se trata de
uma menção tímida, acompanhada da citação de um tratado que lhe dá respaldo, sendo que é
este último que fundamenta a decisão do Supremo Tribunal Federal.

Todavia, a aceitação do costume internacional pelo Supremo Tribunal Federal, principalmente no


que tange os direitos humanos, é mais patente nos casos de extradição julgados pelo STF.Sabe-se
que a extradição é ato de cooperação interjurisdicional em matéria penal e que visa a entrega de
uma pessoa (o “extraditando”) pelo país no qual se encontra a um outro país, no qual há uma
sentença final que comine pena privativa de liberdade ou um mandado de prisão expedido por
autoridade competente. A Lei 6.815/1980, que regula esta matéria, estabelece, entre outras
coisas, a exigência de um tratado específico entre os Estados-partes ou promessa de
reciprocidade, a dupla tipicidade e a exigência de comutação de pena corporal ou de morte em
pena privativa de liberdade.Note-se que não há nestes dispositivos menção ao respeito aos
direitos humanos. Há no artigo 77, VIII menção à impossibilidade de extradição no caso de
julgamento do extraditando por Tribunal ou Juízo de exceção, e, embora seja esta exigência de
48
alguma forma relacionado à temática dos direitos humanos, não se pode dizer que se tratem de
duas temáticas coextensivas.Não obstante isso, a Ext 633/ch – República Popular da China, julgada
em 1996, exige de forma expressa o quanto segue:

respeito aos direitos fundamentais do súdito estrangeiro que venha a sofrer, em


nosso País, processo extradicional instaurado por iniciativa de qualquer Estado
estrangeiro. O fato de o estrangeiro ostentar a condição jurídica de extraditando
não basta para reduzi-lo a um estado de submissão incompatível com a essencial
dignidade que lhe é inerente como pessoa humana e que lhe confere a
titularidade de direitos fundamentais inalienáveis, dentre os quais avulta, por sua
insuperável importância, a garantia do due process of law. (…) É que o Estado
brasileiro – que deve obediência irrestrita à própria Constituição que lhe rege a
vida institucional – assumiu, nos termos desse mesmo estatuto político, o
gravíssimo dever de sempre conferir prevalência dos direitos humanos (artigo 4º,
II).84

Em outras palavras, nesta decisão o STF, apesar de citar dispositivos constitucionais, utilizou um
critério adicional oferecido pelo costume internacional (o respeito aos direitos humanos) para
julgar a lide. E é importante deixar consignado que foi este requisito adicional, que não consta na
legislação brasileira, que foi fundamental para a decisão exarada pelo pleno da Corte.

Assim, demonstra-se que o costume internacional em matéria de direitos humanos, apesar da


literalidade do artigo 5º, § 2º da Constituição Federal, já foi utilizado pelo STF para decidir uma
lide. Além do mais, é possibilidade que encontra respaldo no artigo 4º, II da Constituição Federal,
que estabelece a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais do Brasi.l85

84
ACi 9705, Relator(a): Min. MOREIRA ALVES, TRIBUNAL PLENO, julgado em 09/09/1987, DJ 23-10-
1987 PP-23154 EMENT VOL-01479-01 PP-00117, trecho da ementa.
85
Sobre o artigo 4º, II, que determina a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais
do Estado brasileiro, especificamente, é importante afastar o posicionamento que o considera mera
exortação, sem normatividade. Ao contrário, mais sentido faria reconhecer nos incisos deste artigo os
objetivos aos quais o Estado Brasileiro se direciona, assegurando-lhe os meios para tanto. A caracterização
deste artigo como uma norma programática, sem vinculabilidade e aplicabilidade, também não procede,
pois as normas programáticas – caso esta fosse mesmo de uma norma programática -, apesar de terem uma
estrutura própria, não são desprovidas de juridicidade, vinculabilidade e de aplicabilidade. (André de
Carvalho Ramos, A integração regional e a Constituição: vinte anos depois. Revista de Informação

49
Até o presente momento, o STF não se manifestou sobre a internalização dos crimes contra a
humanidade como costume internacional antes da adesão ao TPI, o que se deve até pelo
ineditismo deste argumento, que nunca foi apreciado diretamente pelo STF. Entretanto, os casos
da imunidade de jurisdição e da extradição servem para demonstrar, de forma reflexa, a vigência
desses crimes em território brasileiro durante o período da ditadura militar, já que se tratavam de
costume internacional em matéria afeta aos direitos humanos.

4. Considerações finais

Ante todo o exposto, deve-se reconhecer que a anistia no Brasil foi, em virtude da interpretação
dada à Lei 6.683/79, um processo incompleto – e, sobretudo, que essa incompletude constitui
fator restritivo de direitos até os dias de hoje.

Da forma como concebida, a anistia “ampla, geral e irrestrita” na prática serviu para impedir uma
série de respostas constitucionais do Estado brasileiro a expectativas sociais de tratamento dos
crimes cometidos no período da ditadura, retirando qualquer possibilidade de se discutir
abertamente, num contexto de “redemocratização”, as condutas havidas no período
compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Criou-se um tabu jurídico,
então, que formalmente justificou o término precoce de todo debate disposto a entender o que
ocorreu então.

O Judiciário brasileiro, que teria papel fundamental de comunicação nesse processo perante a
sociedade civil – na medida em que, garantindo sua regularidade ritual e os direitos das partes
envolvidas, representaria o Estado agindo em prol da verdade, da transparência –, teve a
capacidade de processamento trancada logo de partida. O que fez o STF, em decisão recente, foi
manter tal restrição injustificada.

A norma erigida do texto legal que entende anistiados os crimes comuns praticados no lapso
temporal indicado é, no entendimento deste amicus curiae, inconstitucional, ao contrário do que

Legislativa, Brasília, ano 45, n. 179 jul/set 2008, p. 5, falando sobre o artigo 4º, parágrafo único da
Constituição Federal)

50
decidido pelo STF, porquanto viola direitos fundamentais como a proteção à vida (art. 5º, caput),
ao devido processo legal (art. art. 5º, LIV), acesso à informação e direito à verdade (art. 5º, XIV) e à
dignidade humana (art. 1º, III) – cujo conceito, embora fluido, certamente esbarra na prática de
tortura como maior agressão à humanidade.

Estes direitos fundamentais, em sua dimensão objetiva, pedem do Estado uma vigilância
incessante para sua proteção – por vezes através de abstenções, e por tantas outras mediante
prestações. Uma interpretação que mantém a Lei da Anistia como albergue de crimes contra a
humanidade, como os perpetrados à época do período ditatorial militar, gera norma que contraria
o “dever de proteção” adequado a direitos fundamentais imposto ao Estado.

O próprio Supremo Tribunal Federal tem admitido reiteradamente a existência, no ordenamento


pátrio, do que ficou conhecido como “proibição de insuficiência”.86 Trata-se do reconhecimento de
que o legislador por vezes falha ao não conferir a proteção que se espera a determinados direitos,
violando-os, assim, não mediante ação estatal excessiva, senão insuficiente.87
Uma vez que o legislador não definiu claramente a extensão dos tais “crimes conexos aos crimes
políticos”, não excluindo expressamente de seu âmbito normativo os crimes comuns como
tortura, seqüestro e atentado pessoal – o que abriu margem indevida à interpretação até aqui
prevalecente –, caberia ao Poder Judiciário, na figura de seu órgão de cúpula, imprimir
interpretação conforme a Constituição88 para cumprir com o dever de tutela inerente àquela

86
Entre outras, nas decisões da ADI 3510, ADI 1800, ADI 3112 e RE 418.376-5 (MS).
87
Cf. Voto do Min. Gilmar Mendes na ADI 3510 (“Lei de Biossegurança”), p. 12. O voto do Min.
Gilmar Mendes na ADI 3510 transcreve decisão do Tribunal Constitucional alemão emblemática neste
sentido: “O Estado, para cumprir com seu dever de proteção, deve empregar medidas suficientes de caráter
normativo e material, que levem a alcançar – atendendo à contraposição de bens jurídicos – a uma proteção
adequada, e como tal, efetiva (proibição de insuficiência). (…) É tarefa do legislador determinar,
detalhadamente, o tipo e a extensão da proteção. A Constituição fixa a proteção como meta, não
detalhando, porém, sua configuração. No entanto, o legislador deve observar a proibição de insuficiência
(…). Considerando-se bens jurídicos contrapostos, necessária se faz uma proteção adequada. Decisivo é que
a proteção seja eficiente como tal. As medidas tomadas pelo legislador devem ser suficientes para uma
proteção adequada e eficiente e, além disso, basear-se em cuidadosas averiguações de fatos e avaliações
racionalmente sustentáveis.(…)”. (Decisão original: BVerfGE 88, 203, 1993).

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“ordem objetiva de valores” e afastar, de vez por todas, a proteção deficiente dada pela Estado às
vítimas da ditadura e à sociedade em geral.

Com isso, o Estado atenderia às demandas de proteção impostas pelos direitos fundamentais e
confirmaria seu comprometimento com o direito internacional.

Na decisão da ADPF 153, entretanto, o STF não levou em consideração a proibição de insuficiência,
tampouco a existência de deveres de proteção, em que pese sua pertinência à interpretação da Lei
da Anistia brasileira, por todos os motivos apresentados.

Distanciando-se da conclusão de que a repressão criminal é o único meio capaz de proteger


suficientemente os direitos fundamentais lesados, este amicus curiae buscou destacar que os
efeitos da “Lei de Anistia” ultrapassam o da responsabilização e punição penal daqueles que
cometeram crimes no período da ditadura – aspecto mais destacado no debate público e jurídico
sobre a lei. É preciso atentar para as conseqüências de natureza civil e declaratória de
responsabilidade que a interpretação “ampla, geral e irrestrita” da lei tem obstado, bem como
para os efeitos de tal interpretação sobre o direito à verdade e ao acesso à informação.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao avaliar a “convencionalidade”89 da Lei de Anistia


e dos demais atos e políticas governamentais do Estado brasileiro, além de confirmar seus

88
Para caso clássico de interpretação conforme – sua função e alcance –, cf. decisão da Suprema
Corte do Estado da Flórida >> Boyton vs. State <<, So. 2D 536, 546 (1953), em que se lê: “se a lei é
razoavelmente suscetível de duas interpretações, sendo que, segundo uma delas, a lei seria considerada
inconstitucional e, segundo a outra, válida, o dever da Corte é adotar aquela construção que salve a lei da
inconstitucionalidade”.
89
O juiz Sergio García Ramírez, em diversas oportunidades, aproxima o papel desempenhado pela
Corte Interamericana de Direitos Humanos ao de uma corte constitucional, no qual exerce o “controle de
convencionalidade”. Ver, v.g., Corte IDH. Caso Vargas Areco vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 26/09/2006, Série C, no. 155; Corte IDH. Caso Trabalhadores Cassados do Congresso (Aguado
Alfaro e outros) vs. Peru. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24/11/2006,
Série C, no. 158, voto separado do Juiz Sergio García Ramírez; Corte IDH. Caso del Penal Miguel Castro
Castro vs. Peru. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 25/11/2006, Série C, no. 160. Ainda sobre o
controle de convencionalidade, ver também Corte IDH. Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile. Exceções
Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 26/09/2006, Série C, no. 154, § 124; Corte IDH. Caso
La Cantuta vs. Peru. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 29/11/2006, Série C, no. 162, § 173; Corte
IDH. Caso Heliodoro Portugal vs. Panamá. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de
12/08/2008, Série C, no. 186, § 180.

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standards de proteção de direitos humanos para a região a respeito de crimes cometidos durante
ditaduras (como seus parâmetros de interpretação e aplicação do direito à verdade, devido
processo legal etc.), poderá permitir a retomada do processo de debate público acerca do
tratamento jurídico dedicado a esses crimes, que vinha ocorrendo no país a partir iniciativas
promovidas junto ao sistema judicial brasileiro. A revisão das possibilidades de interpretação da
Lei de Anistia abriria espaço para a discussão de medidas de responsabilização pelos crimes
cometidos durante a ditadura, sejam elas de efeitos penais, civis ou declaratórios. Este amicus
curiae, portanto, buscou apresentar, na perspectiva do sistema jurídico brasileiro, as diversas
possibilidades de interpretação dos efeitos da Lei de Anistia que ainda podem ser construídas,
valendo-se, para tanto, também de parâmetros do sistema interamericano e do direito
internacional.

São Paulo, 01 de setembro de 2010.

Termos nos quais pedem deferimento à Corte Interamericana de Direitos Humanos


do presente amicus curiae ao Caso Gomes Lund VS. Brasil.

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