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Cármen Lúcia cita Gilmar Mendes contra Temer

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Josias de Souza
29/12/2017 03:41

No despacho em que suspendeu os efeitos do indulto


hipertrofiado e generoso concedido por Michel Temer a
criminosos condenados (íntegra aqui), Cármen Lúcia invocou
uma decisão do colega Gilmar Mendes, amigo e conselheiro do
presidente da República. No precedente usado contra Temer,
Gilmar suspendera, em 2016, o ato de nomeação de Lula para a
função de ministro-chefe da Casa Civil, editado pela então
presidente Dilma Rousseff. Considerou que houve “desvio de
finalidade”. Para Cármen Lúcia, o decreto de indulto natalino de
Temer padece da mesma debilidade.
A presidente da Suprema Corte escorou-se em Gilmar
Mendes no trecho em que justificou a necessidade de intervir
para sanar os defeitos de um decreto cuja edição é uma
prerrogativa constitucional do presidente da República. “Como o
desvio de finalidade torna nulo o ato administrativo, compete ao
Supremo Tribunal Federal, na forma pleiteada pelo Ministério
Público Federal, fazer o controle de constitucionalidade do
documento normativo, geral e abstrato como o que é objeto da
presente ação”, escreveu Cármen Lúcia.

A ministra sustentou que o exame de atos do Poder


Executivo pelo Judiciário “é frequente e necessário para
resguardo do sistema jurídico.” Foi nesse ponto que Cármen
Lúcia injetou no seu texto a decisão do amigo de Temer. Sem
citar os nomes de Lula e Dilma, ela escreveu que, “a Presidência
da República, competente para a prática de determinado ato [a
conversão de Lula em ministro], adotou-o para finalidade diversa
daquela prevista em lei.”

Na época, Gilmar Mendes suspendera a nomeação por


considerar que o verdadeiro propósito de Dilma era o de fraudar
as investigações da Lava Jato, retirando Lula do alcance de uma
eventual ordem de prisão de Sergio Moro, juiz de primeira
instância. Como ministro, o pajé do PT desfrutaria da prerrogativa
de foro especial. E os processos abertos contra ele na Lava Jato
seriam içados para a jurisdição do Supremo.
Cármen Lúcia abriu aspas para Gilmar Mendes: “Apesar de
ser atribuição do Presidente da República a nomeação de
ministro de Estado (art. 84, inciso I, da CF), o ato que visa o
preenchimento de tal cargo deve passar pelo crivo dos princípios
constitucionais…”, ela citou.

No longo trecho reproduzido pela presidente do Supremo,


Gilmar ensinou a certa altura: “…Nos casos de desvio de
finalidade, o que se tem é a adoção de uma regra que aparenta
estar em conformidade com uma certa regra que confere poder à
autoridade (regra de competências), mas que, ao fim, conduz a
resultados absolutamente incompatíveis com o escopo
constitucional desse mandamento e, por isso, é tida como ilícita.”

Foi precisamente o que sucedeu com Temer, segundo a


Procuradoria-Geral da República, ao baixar o decreto que
adocicou as regras do indulto, perdoando 80% das penas e
100% das multas impostas a criminosos condenados por crimes
não violentos —entre eles a corrupção e a lavagem de dinheiro.
Ecoando a procuradora-geral Raquel Dodge, Cármen Lúcia
realçou que o decreto de Temer não orna com a finalidade
constitucional do indulto. Daí a acusação de “desvio de
finalidade”.

Na opinião de Raquel Dodge, encampada por Cármen


Lúcia, o ato administrativo baixado por Temer, a pretexto de
manter a tradição de conceder indulto natalino a presos, esvaziou
a jurisdição penal, negou prosseguimento e finalização de ações
penais em curso e privilegiou benefícios que diluem o processo
penal. “Nega-se, enfim, a natureza humanitária do indulto,
convertendo-o em benemerência sem causa e, portanto, sem
fundamento jurídico válido”, escreveu a presidente do Supremo.
Nas palavras de Cármen Lúcia, “indulto não é nem pode ser
instrumento de impunidade”. Também “não é prêmio ao
criminoso nem tolerância ao crime.” Ao flexibilizar regras
adotadas em anos anteriores, o decreto de Temer incorporou
normas que, na visão da presidente do Supremo, deram
“concretude à situação de impunidade, em especial aos
denominados ‘crimes de colarinho branco’…”

Suprema ironia: Gilmar Mendes, hoje um fervoroso adepto


da política de celas abertas, forneceu involuntariamente munição
contra o decreto em que seu amigo Temer revelou-se um
generoso libertador de corruptos. Como se fosse pouco, a
decisão mencionada por Cármen Lúcia foi justamente aquela em
que Gilmar manteve Lula ao alcance de Sergio Moro.

Graças ao tratamento draconiano de Gilmar, o juiz da Lava


Jato já espetou na biografia de Lula uma pena de nove anos e
meio de cadeia. Se a sentença for confirmada pelo TRF-4 em
julgamento marcado para 24 de janeiro, Lula se transformará
num candidato favorito a engrossar a população carcerária
brasileira. Isso, evidentemente, se o Supremo não rever a regra
que permitiu a prisão de condenados na segunda instância. Algo
que Gilmar agora defende ardorosamente.

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