Você está na página 1de 2

obituário y

Vanguarda historiográfica
Emília Viotti deixa legado fundamental
para entender processos de abolição da
escravidão na América Latina

R
eferência na historiografia brasileira e 1964, intitulada “Escravidão nas áreas cafeeiras,
latino-americana e nos estudos sobre a aspectos econômicos, sociais, políticos e ideoló-
escravidão e a diáspora africana, a his- gicos da transição do trabalho servil para o tra-
toriadora Emília Viotti da Costa sempre balho livre”, que renovou as pesquisas sobre a
considerou a docência uma atividade fundamen- Abolição. Em 1966, o estudo foi publicado pela
tal. Barbara Weinstein, historiadora e brasilianista Difusão Europeia do Livro (Difel) com o título
da Universidade de Nova York (NYU), ingressou Da senzala à colônia.
no doutorado na Universidade Yale em 1973 para Barbara explica que Da senzala à colônia fez
estudar a Argentina. Acabou optando por pesqui- parte de uma leva de estudos que procuraram
sar o Brasil por conta das aulas ministradas por reduzir a ênfase em questões morais, políticas e
Emília na instituição norte-americana. “Ela me ideológicas, ressaltando os fatores sociais e eco-
mostrou que o país oferecia um campo rico para nômicos do processo de Abolição. “Emília foi uma
investigar questões da história do trabalho e que das primeiras a reconhecer o papel dos escravos
era impossível entender a classe operária sem no processo de emancipação, especialmente por
estudar a trajetória dos empresários”, lembra. meio das fugas em massa das fazendas de café a
Emília morreu no dia 2 de novembro, aos 89 anos, partir de 1885”, analisa.
em consequência de falência múltipla dos órgãos.
Natural de São Paulo, Emília Viotti era profes- Exílio nos Estados Unidos
sora emérita da Faculdade de Filosofia, Letras e Em reconhecimento ao valor desse trabalho, a
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo historiadora foi convidada para ministrar a aula
(FFLCH-USP) e atuou durante 26 anos como do- inaugural na então Faculdade de Filosofia, Ciên-
cente de história da América Latina na Univer- cias e Letras (hoje FFLCH) em 1968, ano do Ato
sidade Yale. A amiga Sylvia Bassetto, professora Institucional número 5 (AI-5). Na ocasião, ela
Adriana Zehbrauskas / Folhapress

do Departamento de História da USP, lembra criticou o projeto universitário do regime mi-


que Emília, desde suas primeiras experiências litar. A professora titular do Departamento de
na escola básica até se tornar emérita em Yale, História da USP Maria Helena Rolim Capelato
em 1999, atribuía à sua condição de professora lembra que, logo após o AI-5, Emília foi demitida
o estimulo à vida intelectual. da USP por causa de críticas feitas durante essa
A pesquisadora defendeu sua tese de livre- aula inaugural ao acordo firmado pelo governo
-docência sobre o trabalho escravo na USP em brasileiro com uma organização norte-americana

56 | dezembro DE 2017
A historiadora em
São Paulo (1998):
a docência
era uma atividade
fundamental

para a realização de reformas no sistema edu- Sylvia Bassetto considera que a carreira acadê-
cacional do país. De acordo com Maria Helena, mica de Emília nos Estados Unidos foi construí-
essa aula se transformou em um texto publicado da à revelia de uma situação desfavorável. Isso
pela revista do grêmio da FFLCH e circulou por envolvia a ameaça de desemprego, os problemas
universidades do país nas semanas seguintes. de visto, a angústia de separar-se da família e, so-
Emília exilou-se nos Estados bretudo, a infinita solidão e sensação de desen-
Unidos em 1969 e, em 1973, pas- raizamento que sofrem os exilados.
sou a lecionar história da América O filósofo Jézio Gutierre, diretor-presidente
Latina em Yale, cargo que ocupou da Fundação Editora da Universidade Estadual
Carreira no até 1999. “Sua carreira acadêmica Paulista (Unesp), considera que uma das preo-
no exterior permitiu formar pes- cupações centrais da historiadora foi entender
exterior ajudou quisadores norte-americanos que questões contemporâneas do Brasil olhando para
se tornaram importantes brasilia- aspectos do passado. “Emília se incomodava com
a formar nistas, entre eles John French e historiadores que se debruçavam sobre a histó-
pesquisadores Barbara Weinstein, pesquisadora ria antiga sem pensar nas consequências à vida
que, hoje, chamamos de embaixa- contemporânea”, afirma.
que se dora dos historiadores brasileiros Maria Helena explica que outra grande contri-
nos Estados Unidos”, relata Maria buição historiográfica de Emília é o livro Coroas
tornaram Helena. Emília foi também diretora de glória, lágrimas de sangue. A rebelião dos es-
do Programa de Estudos da Mulher cravos de Memerara em 1883, publicado primei-
brasilianistas e do Conselho de Estudos Latino- ramente em inglês, em 1994, e editado no Brasil
-americanos em Yale. pela Companhia das Letras, em 1998. “Com essa
Barbara, da NYU, lembra ainda obra, Emília se tornou referência em história do
que, nos Estados Unidos, Emília te- Brasil, mas também na história de outros países
ve de se adaptar a um novo mundo da América Latina”, enfatiza.
acadêmico onde não contava com No Brasil, em seu trabalho mais recente, Emília
o mesmo prestígio que tinha no Brasil. “Eu de- publicou O Supremo Tribunal Federal e a constru-
morei para entender os desafios que ela estava ção da cidadania, em 2001, procurando colocar o
enfrentando. No meu olhar, ela era tão brilhan- Judiciário em primeiro plano ao analisar a histó-
te e carismática que era impossível pensar nela ria política do Brasil. “Avessa ao enquadramen-
como uma pessoa vulnerável. Quando Emília to a esquemas teóricos rígidos, Emília inspirou
ingressou em Yale, o Departamento de História inúmeras direções aos estudiosos da escravidão,
era um clube de homens e não havia mulheres apontando lacunas e temas pouco explorados”,
entre os professores titulares.” afirma Sylvia Basseto. n Christina Queiroz

PESQUISA FAPESP 262 | 57

Você também pode gostar