RESUMO: A questão sobre o que deu origem ao Estado faz parte de uma discussão
que envolve a filosofia política e a antropologia. Essas duas disciplinas buscam,
cada qual ao seu próprio modo, respostas sobre o que realmente teria dado origem
ao Estado. O objetivo do presente artigo é demonstrar como o filósofo inglês do
século XVII, Thomas Hobbes, e o antropólogo francês do século XX, René Girard,
responderam a essa questão. Analisaremos as principais obras desses pensadores
a fim de entender como se deu a formação do Estado e que papel a violência
desempenhou no seu surgimento. Inicialmente, resumiremos a filosofia política de
Thomas Hobbes, sua abordagem sobre a natureza humana e sua tese sobre a
origem do Estado. Em seguida, exporemos o pensamento do antropólogo René
Girard, sua teoria sobre as causas da violência nas sociedades pré-estatais e sua
análise genealógica das instituições culturais a partir dos ritos sacrificiais.
Finalmente, reuniremos os aspectos convergentes e divergentes do pensamento de
Hobbes e Girard demonstrando, que apesar de separados pelo tempo e pela cultura,
os dois autores se aproximam no que diz respeito a identificar a causa da origem do
Estado.
ABSTRACT: The question of what gave rise to the state is part of a discussion
involving political philosophy and anthropology. These two disciplines seek, each in
his own way, answers on what really gave rise to the state. The aim of this article is
to demonstrate how the English seventeenth-century philosopher, Thomas Hobbes,
and the French anthropologist of the twentieth century, René Girard, answered this
question. We will analyze the major works of these thinkers to understand how was
the formation of the state and what role violence has played in its emergence. At first,
we summarize the political philosophy of Thomas Hobbes, his approach to human
nature and his thesis on the State of origin. Then expose the thought of the
INTRODUÇÃO
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O PAPEL DA VIOLÊNCIA NA FORMAÇÃO DO ESTADO NA FILOSOFIA
POLÍTICA DE THOMAS HOBBES
2 De acordo com Abizadeh, as três posições tradicionais sobre as causas da guerra na filosofia de
Hobbes são 1) a de que a guerra é o resultado inevitável do estado de natureza onde os seres
humanos competem por recursos escassos 2) a de que mesmo que existam indivíduos puramente
benignos, sem um soberano para protegê-los, o medo da morte violenta os fará se anteciparem à
violência dos outros 3) a de que a guerra é causada pela maldade natural dos seres humanos.
ABIZADEH, Arash. (2011). Hobbes on the Causes of War: A Disagreement Theory. In. American
Political Science Review. Vol. 105, N. 2, p. 299.
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sustenta a ideia de que o ser humano é violento, egoísta e vaidoso. E devido ao fato
de que todos os homens são iguais, existe um conflito inevitável, ou na linguagem
hobbesiana, uma “guerra de todos contra todos”. Hobbes está disposto a sustentar,
assim como Pierre Clastres depois dele, que “as sociedades primitivas são
sociedades violentas, seu ser social é um ser-para-a-guerra”. (CLASTRES, 2004:
160).
É bem verdade que não devemos descontextualizar a ideia hobbesiana de
uma guerra de todos contra todos. Como observa Magalhães, “a condição natural ou
estado de guerra não é uma frase que se lê literalmente. Trata-se de uma ‘hipótese
da razão’, uma construção lógica, para exprimir uma situação em que os homens
viveriam se não houvesse um senhor comum para subjugá-los”. (2014: 51). Além
disso, Hobbes estava diante da guerra civil inglesa que certamente teve algum
impacto sobre o seu pensamento. Como observa Ribeiro, “seu pensamento brota de
um convívio cotidiano com a anarquia”. (2003: 111). Entretanto, como pontua
Clastres, “o próprio Hobbes acredita poder ilustrar o fundamento de sua dedução
com a referência explícita a uma realidade concreta: a condição natural do homem
não é apenas a construção abstrata de um filósofo, mas sim a sorte efetiva,
observável, de uma humanidade recentemente descoberta”. (CLASTRES, 2004:
161).
Clastres se refere aqui às recentes descobertas dos selvagens no continente
americano, o que teria levado Hobbes a pensar na condição natural dos seres
humanos antes do advento do Estado. Mas como também lembra Magalhães, “para
ele, a guerra de todos contra todos é fruto da própria natureza humana que
persegue os indivíduos desde a mais remota antiguidade”. (2014: 40). Isso significa
que em Hobbes a condição natural ou estado de guerra tem uma dupla natureza:
hipotética e histórica. De acordo com Brandão, o estado de guerra (2006: 35) “é
histórico no sentido de que a guerra de todos contra todos teria realmente existido
em determinados locais ou em determinadas circunstancias”, e é hipotético por
representar uma circunstancia em que os homens viveriam sem um Estado.
No De Corpore Politico, também chamado Elements of Law, Hobbes
denomina de “paixões naturais” (natural passion) a tendência que os homens
possuem de provocar os outros, além de sempre sustentarem um alto conceito de si
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mesmos (Vanity), e de frequentemente se compararem uns aos outros. (HOBBES,
1969: 82). São essas paixões, inerentes a todo homem, que na ausência de uma
poder coercitivo se transformariam numa força violenta incontrolável capaz de
subverter todo gênero humano. De acordo com Leo Strauss, é assim porque “o
homem é um animal como todos os outros”. (STRAUSS, 1952: 8).
No processo de desnudar a natureza humana, Hobbes (consciente ou
inconscientemente) nos ajuda a entender como vivíamos antes do advento das
nossas instituições culturais. O estado de guerra, apesar de hipotético, é um
exercício antropológico baseado nas observações que o filósofo fez dos povos
selvagens que o cercavam, mas que levado a cabo através de um processo
genealógico, nos levará logicamente aos primórdios do gênero humano. No De
Corpore Hobbes aponta nessa direção quando afirma:
The state of hostility and war being such, as thereby nature itself is
destroyed, and men kill one another, (as we know that it is, both by the
experience of savage nations that live at this day, and by the histories of our
ancestors the old inhabitants of Germany, and other now civil countries,
where we find the people few, and short lived, and whitout the ornaments
and comforts of life, which by peace and society are usually invented and
procured) he therefore that desireth to live in such an estate as is the estate
of liberty and right of all to all, contradicteth himself. For every man by
natural necessity desireth his own good, to which this estate is contrary,
wherein we suppose contention between men by natural equal, and able to
destroyer one another (HOBBES, 1969: 85).
No De Cive, Hobbes associa a violência natural dos homens que vivem sem
um Estado com o fato de desejarem sempre o mesmo objeto numa sociedade com
recursos escassos:
A razão mais frequente porque os homens desejam ferir-se uns aos outros,
vem do fato de que muitos ao mesmo tempo, têm um apetite pela mesma
coisa; que, contudo, com muita frequência eles não podem nem desfrutar
em comum, nem dividir; do que se segue que o mais forte há de tê-la, e
necessariamente se decide pela espada quem é o mais forte. (HOBBES,
2002: 30).
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Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à
esperança de atingirmos os nossos fins. Portanto, se dois homens desejam
a mesma coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por
ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para o seu fim (que é
principalmente a sua própria conservação, e às vezes apenas o seu deleite)
esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro. (HOBBES, 2003: 107).
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Assim, para Hobbes, apenas a criação do Estado seria capaz de manter a
paz entre os homens. De outra sorte se destruiriam no estado de guerra. Isso não
significa que o Estado hobbesiano seria pacifista e promotor racional da paz; antes,
isso indica que aquelas potencialidades violentas que são inerentes ao animal
humano, são agora transferidas para uma instância superior que possui plena
legitimidade para aplicar circunstancialmente essa mesma violência contra quem
violar o contrato. Além disso, as guerras que no estado de natureza eram
inadmissíveis (pois levariam a espécie à extinção) são agora, com a instituição do
Estado, perfeitamente legítimas, bastando apenas à justificação do bem comum.
Segundo Hobbes, “pertence à soberania o direito de fazer a guerra e a paz com
outras nações e Estados. Quer dizer, o de decidir quando ela, a guerra, corresponde
ao bem comum (...)”. (HOBBES, 1997: 149). Isso significa que em Hobbes a
violência desempenha um duplo papel: ela produz as condições para que o contrato
seja firmado, consequentemente, ela gera indiretamente o Estado e a civilização, e
ela também é um recurso legítimo do Estado então constituído.
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mundo acadêmico, especialmente na antropologia. Em 1978, com a publicação de
Coisas Ocultas desde a Fundação do Mundo, Girard tem a oportunidade de
apresentar a sua teoria de forma sistematizada. Nos últimos anos tem havido um
crescente interesse por parte de estudiosos de diversas áreas na teoria mimética
girardiana.
Mas qual é o papel da violência na teoria girardiana? Em a Violência e o
Sagrado, o antropólogo demonstra através de uma análise dos ritos sacrificiais,
tanto de seres humanos quanto de animais, que a violência atuou como uma
espécie de cimento que uniu as sociedades primitivas. No entanto, antes de
explicarmos como a violência teve essa função socializadora e até mesmo
humanizadora, é necessário entendermos o que, de acordo com Girard,
desencadeia essa violência nas sociedades primitivas.
A originalidade da teoria girardiana está em descobrir a natureza mimética do
desejo. De acordo com Girard, é o desejo mimético o grande responsável pelo
desencadeamento da violência generalizada que caracterizou e que ainda, de certo
modo, caracteriza a sociedade. De acordo com o paradigma em vigência desde a
modernidade, existe uma relação direta entre o sujeito desejante e o objeto
desejado, mas na teoria girardiana o desejo não se dirige diretamente ao objeto
desejado; antes, ele deseja sempre a partir de um mediador, a partir de um modelo.
Segundo Girard,
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naturezas, consequentemente, de duas naturezas serão as relações miméticas. Em
primeiro lugar, existe a mimese de mediação externa. De acordo com a teoria de
Girard, isso acontece quando o meu modelo não está no mesmo domínio em que
estou. Por exemplo, podemos ter como modelo algum herói do passado ou que
esteja muito distante de nós. De acordo com Girard, um conflito direto entre sujeito e
modelo nessa relação está fora de questão, pois seria impossível que houvesse um
encontro entre sujeito e modelo, daí a sua natureza externa. Em segundo lugar,
existe a mimese de mediação interna. É justamente aqui onde residem as raízes da
violência mimética. Ao pertencerem ao mesmo domínio contextual, bem como pelo
fato de estarem expostos à proximidade física e psicológica, o sujeito através do seu
modelo, deseja o mesmo objeto daquele, daí resulta uma rivalidade sempre
crescente, que mimeticamente imitada por todos os membros do grupo resultaria
numa guerra generalizada. De acordo com Girard:
Desse modo, os rivais se tornam cada vez mais indiferenciados, cada vez
mais idênticos: duplos. Uma crise mimética sempre é uma crise de
indiferenciação que irrompe quando os papéis de sujeito e modelo se
reduzem ao de rivais. É o desaparecimento do objeto que possibilita isso.
Essa crise não cresce só entre os oponentes; ela contagia os expectadores.
(Ibid., 2011: 81).
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O BODE EXPIATÓRIO E A ORIGEM DA CIVILIZAÇÃO
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= canto) significa literalmente “canto dos bodes”. Não somente o sacrifício do bode,
encenado periodicamente no início, durante ou depois do espetáculo teatral, mas
também através dos mitos gregos, pode ser constatada a plausibilidade da teoria
girardiana da função reconciliadora dos sacrifícios e da gênese das nossas
instituições domesticadoras.
O mito de Édipo é, segundo Girard, um exemplo de bode expiatório que
reconcilia a sociedade após ser expulso de Tebas. Como é sabido, após todos os
acontecimentos fatídicos narrados na tragédia, Édipo se torna rei, mas uma peste
acomete a cidade, uma verdadeira crise social que ameaça extinguir a população de
Tebas, nesse momento (assim como instintivamente se fazia desde tempos
imemoriais) procura-se um culpado, e a culpa pela crise recai sobre Édipo. Além das
tragédias e mitos gregos, o mecanismo do bode expiatório está presente também no
imaginário religioso-cultural dos povos semíticos. Nas escrituras judaicas do antigo
testamento, a figura do bode emissário (Levítico, capítulo 16), bem como a presença
de infinitos sacrifícios com função reconciliadora estão no centro da vida social do
povo judeu.
Em O Sacrifício, onde Girard faz uma acurada análise dos sacrifícios a partir
dos textos indianos védicos e pós-védicos, há a constatação de que nos textos
religiosos e, portanto, culturais, mais antigos da humanidade, a presença dos
sacrifícios com uma função reconciliadora era uma realidade. Segundo Girard, “a
confiança que os Brâmanas têm no sacrifício é total”. (GIRARD, 2011: 61). Isso
significa que “a sobrevivência de todas as comunidades seria constantemente
ameaçada se não houvesse a intervenção do sacrifício, às vezes, do seu próprio
chefe, para colocar fim nisso”. (Ibid.). O fato de não existirem povos cuja origem
cultural não seja eminentemente religiosa, faz com que Girard considere o
mecanismo do bode expiatório um fenômeno universal. Segundo ele “A cultura
humana é religiosa fundamental e originariamente mais do que secundária e
acessoriamente”. (Ibid.). Isso é um fato, de acordo com Girard, mesmo para as
nossas sociedades supostamente secularizadas e racionalistas.
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simultaneamente o esconde. O sacrifício deixa de ter a sua forma
primordial, pura, e torna-se numa justiça legítima que é manifestado por
outras suas instituições obedienciais: por exemplo, penais, prisionais,
escolares, hospitais psiquiátricos, sanatórios, etc. (MERUJE; ROSA, 2013:
158).
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2002: 30). Perspectiva semelhante pode ser encontrada na antropologia de René
Girard. Segundo o antropólogo francês:
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O milagre do sacrifício é a formidável “economia” de violência que se
realiza. Ele polariza contra uma única vítima toda a violência que, um pouco
antes, ameaçava a comunidade inteira. Essa liberação parece ainda mais
milagrosa por intervir sempre in extremis, no momento em que tudo parece
perdido. (GIRARD, 2011: 63).
Desse modo, “a função do sacrifício, enquanto ritual, é nem mais nem menos
que ‘purificar a violência’”. (MERUJE, 2009: 14). Assim, na teoria de Girard, o
sacrifício do bode expiatório teria a mesma função civilizadora do contrato
hobbesiano.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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sanar, mesmo que temporariamente o caos mimético. A saber, o mecanismo do
bode expiatório. Esse mecanismo tinha funcionalmente o mesmo papel do Estado
hobbesiano, ou seja, o papel de domesticar a violência intestina.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo
Horizonte: Editora UFMG.
CLASTRES, Pierre. (2004). Arqueologia da Violência. São Paulo: Cosac & Naify.
HOBBES, Thomas. (1969). The English Works of Thomas Hobbes. vol. IV.
London: John Bohn, Enrietta Street, Covenant Garden.
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MAGALHÃES, Fernando. (2014). 10 Lições Sobre Hobbes. Petrópolis, RJ: Vozes.
MERUJE, Márcio; ROSA, José Maria Silva. (2013). Sacrifício, Rivalidade Mimética e
“Bode Expiatório” em R. Girard. In. Griot: Revista de Filosofia. Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia. v.8, n.2, dezembro, p. 151-174.
STRAUSS, Leo. (1952). The Political Philosophy of Hobbes: Its basis and Its
genesis. Chicago: The University of Chicago Press.
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