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Notas do deserto

Não, o elemento de vida e também o elemento trágico do deserto é a luz.


Ungaretti

Vento, vos digo, vento.


E um pouco de areia no vento.
Edmond Jabès

Suponho que a luz do deserto esteja por todos os lados e que a sombra rajada
apenas disfarce a lisura impenetrável. Caminha-se uma centena de metros e os passos
nos seguem. Mais uma centena de metros e perdemos a origem num sopro inútil.
O deserto plenamente iluminado ressoa nos aposentos escuros da alma, paradoxo
inerente às altas temperaturas que ferem a pele até a escamação. Assim, o andarilho da
areia estriada transforma-se lentamente em uma serpente que, ao perder sua pele e não
conseguir localizar sua origem, gera um novo nascimento.
Se, assim, nascido de si mesmo através das altas temperaturas do intenso calor e
do aniquilante frio, ele consegue emitir novas palavras, pode-se dizer que o
aparecimento da voz realizou-se de modo metamórfico.
As sucessivas idades metamórficas, cortes abruptos na relação com o mundo,
ainda estão alojadas em símbolos animais (o leão, o camelo, a águia e também a criança
de Nietzsche, por exemplo), pois somente a força animal e sua imprevisibilidade podem
minimamente auxiliar a consciência diante um fenômeno tão decisivo, ou seja, o corte
abruto na relação com o mundo é povoado de imagens próximas ou ancestrais. Desse
modo, o conhecimento da fenda é, ao mesmo tempo, uma luminosidade desértica e uma
regressão ao primevo. A serpente, para o andarilho, cumpre em tudo sua significação de
phármakon: desde o ovo que é lançado ao mundo perigoso, à alta concentração de
veneno na infância, às escamações regulares, toda a vida da serpente diz unicamente
iniciação através de seus olhos frios e enigmáticos que velam a cura e a morte.
O andarilho senil é a própria esfinge que carrega em seu corpo todas as idades
metamórficas e permanece repousado em sua paisagem desértica. Tal repouso, não nos
deixemos enganar, não corresponde de modo algum ao estático de uma física clássica
ou moderna, mas ao adagietto de uma sinfonia das nano-partículas.
Em oposição ao predomínio de matéria sólida e aérea (E um pouco de areia no
vento), o interior do caminhante é inundado pelos aspectos emocionais. Seu corpo – oco
como todos os corpos – é agora excessivamente líquido e mantém, dia e noite, a
fisionomia da deriva.
Não à toa, a história da espiritualidade é marcada pela solidão da deriva, solidão
não do sujeito que se debate nos calabouços de um eu, mas opostamente do solitário
povoado que decide, e isto é importante ressaltar, deliberadamente vivenciar a
dissolução do homem moderno. Ele se lança, mesmo que temeroso dos abismos, para
fora da casa habitual, porque descobre que ela não lhe é íntima.
As sensações (para um pequeno inventário psicanalítico) vão de pequenas ou
extremas palpitações periféricas até vivências descomunais de autodestruição e
violência – tudo na tentativa hidráulica de restituir esta intimidade roubada. São atos
nulos ainda manchados pela nostalgia que o solitário povoado sente de ser um eu. A
noção de vertigem tem aqui uma correspondência especial.
Portanto, o que o deserto promove através de sua luz – elemento de vida e
também elemento trágico – é a possibilidade de uma nova intimidade, não mais
vivenciada a partir de estruturas arruinadas do eu, mas sim através da expansão de
campos existenciais não orbitantes ao redor de um núcleo, isto é, não esféricos segundo
a concepção clássica de globo, e sim espumantes, como milhares e milhares de bolhas
interconectadas sem um centro ou governo. Nesse caso, para um aprofundamento, seria
necessária uma fenomenologia do sabão que abarcasse a gordura humana como
elemento da saponificação.
Os místicos expressaram essas descobertas em centenas de poemas dedicados ao
entrelaçamento ou ao êxtase, porém a potência de suas vivências é constantemente
reduzida pela rigidez da linguagem. A poesia mística acaba sendo um imenso funeral em
que as recitações apenas servem para louvar a memória daquele que já não se encontra
mais entre nós. Os dançarinos e dançarinas sabem intuitivamente que a rotação, ou
melhor dizendo, a espiralização conduz a uma vivência espumante e os apaixonados em
seus devaneios pressentem constantemente que um único corpo, uma única identidade,
não é suficiente para a saponificação.
Se Bachelard disse acertadamente que “todo conhecimento da intimidade das
coisas é imediatamente um poema”, talvez tenha nos deixado a condição desvelada do
caminhante do deserto: fazer da epiderme um reino de aberturas.

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