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João Teófilo
O que quero tratar aqui em relação à ditadura militar brasileira, no entanto, não diz
respeito tão somente às disputas de memórias (elas estão presentes de algum modo na
discussão em tela, mas o ponto a ser problematizado é outro); o que norteará a discussão é
a verdade factual e a mentira organizada, dimensões presentes no período ditatorial e
responsáveis por embates ainda hoje visíveis na sociedade.
1
PORTELLI, Alessandro. “O massacre de Civitella Val di Chiana (Toscana, 29 de junho de 1944): mito
e política, luto e senso comum”. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína. Usos & abusos
da História Oral. 8ª ed. Rio de Janeiro: FGV, 2006, p. 106.
À primeira vista, pode parecer presunçoso discutir o que é verdade em relação à
ditadura militar brasileira, uma vez que o historiador não fabrica verdades ou apresenta a
verdade como algo pronto, inquestionável, retirado do passado de forma bruta e hoje
apresentado à sociedade. Sabemos dos caminhos teóricos e metodológicos que levam à
inteligibilidade de fatos passados no campo da História e não convém discuti-los.
As questões discutidas a seguir buscam inspiração nas reflexões feitas pela filósofa
Hannah Arendt em seu ensaio “Verdade e Política”, publicado na obra Entre o passado e o
futuro2. Arendt escreveu este ensaio por conta do que ela chamara de “pseudo
controvérsias” relacionadas à sua obra Eichmann in Jerusalem3.
Por que recorrer à Hannah Arendt para tratar de temas que, em um primeiro
momento, nos parecem óbvios? Quando a disputa pelo sentido da verdade e pela
representação do passado incide de modo violento no presente e em sua relação com a
ditadura militar no Brasil, a reflexão que Arendt construiu algumas décadas atrás toca em
pontos essenciais da própria narrativa histórica e de como ela deve ser construída, como
também atenta para a importância de fatos e eventos que se veem ameaçados em
momentos de crise, e a mentira organizada sobre os mesmos corre o risco de ser utilizada
como combustível para a construção de projetos políticos que representam um perigo para
2
Título original Between Past and Future, publicada originalmente em 1961. Outros dois ensaios foram
acrescentados à obra em 1968.
3
Título original Eichmann in Jerusalem: A Report on the Banality of Evil, publicada originalmente em
1963.
4
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 2ª Ed. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo:
Perspectiva, 1988, p. 308.
a democracia. Creio ser desnecessário apresentar análise de conjuntura, aqui e alhures, para
fazer o leitor perceber que existem perigos iminentes. Desejei fazer apenas um adendo.
Passemos, então, ao próximo ponto.
Sabemos dos riscos dos relativismos quando estas questões adentram na arena de
disputas políticas. Daí porque a reflexão de Hannah Arendt parece-me oportuna, pois
houve quem defendesse – e há quem defenda – que somente um regime semelhante à
ditadura militar seria o remédio para a crise na qual o Brasil atualmente se encontra. Temos
encontrado alguns discursos cujos impasses de versões parecem se resumir a uma guerra de
opiniões, como, por exemplo, quem defende a tortura e a violência política da ditadura
alegando tratar-se de sua opinião. “Os terroristas e demais subversivos fizeram por
merecer, tratava-se de uma guerra com excessos de ambos os lados. Às favas o que dizem
as evidências históricas. Essa é a minha opinião”. Isso me parece deveras ilustrativo de
certos posicionamentos que, aos montes, se impõem nos debates mais recentes.
O problema reside no fato de que não se trata a questão, muitas vezes, levando-se
em conta a verdade factual. Reduzem-se mentiras organizadas ao nível da opinião. Logo, as
evidências pouco importam, pois a opinião as transcende. Os fatos, que segundo Hannah
Arendt, deveriam informar opiniões, parecem assumir lógica inversa e perigosa. E não
custa lembrar que são muitas as mentiras organizadas produzidas pela ditadura, servindo de
5
ROUSSO, Henry. Le Syndrome de Vichy: de 1944 à nos jours. 2ªed. Paris: Seuil, 1990.
repertório argumentativo para moldar opiniões – igualmente perigosas – sobre aquele
período.
6
ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. 2ª Ed. Trad. Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo:
Perspectiva, 1988, pp. 298-299.
7
ARENDT, Hannah. Op. Cit. p. 296.
informação e repressão; e o silêncio sobre o apoio de setores da sociedade brasileira ao
regime.8
Vale chamar a atenção para outro aspecto discutido por Hannah Arendt, que diz
respeito à verdade factual que pode ter sua discussão pública transformada em tabu pela
sociedade. Exemplificando seu raciocínio, Arendt coloca que: “(...) Mesmo na Alemanha de
Hitler e na Rússia de Stálin, era mais perigoso falar de campos de concentração e
extermínio, cuja existência não era nenhum segredo, que emitir concepções “heréticas”
acerca de antissemitismo, racismo e comunismo (...)”.10
8
Para uma discussão mais aprofundada sobre estes silêncios, consultar: STARLING, Heloisa. “Silêncios
da ditadura”. Revista Maracanan, nº12. Rio de Janeiro: julho 2015, pp. 37-46. Sugiro, ainda, para uma
discussão específica a respeito dos indígenas durante a ditadura, o recente trabalho do jornalista Rubens
Valente: Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017.
9
Para uma melhor compreensão sobre os entendimentos em torno desse termo, consultar: ELSTER, Jon.
Closing the books: transitional justice in historical perspective. New York: Cambridge University, 2004.
10
ARENDT, Hannah. Op. Cit. p. 293.
11
Sobre a ocultação dos arquivos da ditadura, consultar o trabalho do jornalista Lucas Figueiredo: Lugar
nenhum: militares e civis na ocultação dos documentos da ditadura. São Paulo: Companhia das Letras,
2015.
A busca pela verdade no Brasil relativa a esse passado mobilizou e mobiliza muitas
frentes, sendo um ato claro de oposição à ditadura, no passado e no presente. Sua
importância para a construção da democracia e para a reparação às violações aos direitos
humanos é fundamental. Logo, o que está em jogo não é uma questão de opinião ou a
simples construção de múltiplas interpretações sobre o passado ditatorial, mas o resgate da
verdade factual a fim de descortinar, romper silêncios e permitir que a matéria factual não
seja apagada pelos assédios do poder.
O livro por longo tempo esteve inacessível. Em 1988, Leônidas Pires Gonçalves
procurara o então presidente José Sarney, única pessoa que poderia autorizar a publicação
de Orvil. Sarney, no entanto, o considerou desnecessário e sua publicação acabou sendo
vetada.14 Calcula-se que apenas 15 cópias do documento foram feitas, que ficaram
12
Para uma discussão mais aprofundada sobre os livros Brasil: Nunca Mais e Orvil, consultar o trabalho
do jornalista Lucas Figueiredo: Olho por olho: os livros secretos da ditadura. Rio de Janeiro: Record,
2009.
13
Cf. Idem.
14
Cf. Idem, p. 119.
inacessíveis por quase 20 anos.15 Atualmente, é possível encontrar uma cópia do projeto
para download no site de direita “A verdade sufocada”.16
15
Cf. Idem, p. 11.
16
http://www.averdadesufocada.com/
17
Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL3806-5601,00.html. Acesso: 05/07/2017.
18
http://www.bibliex.ensino.eb.br/?Token=MQ==433537&l=NjQ=452177. Acesso: 05/07/2017.
19
http://www.ternuma.com.br/
20
A título de informação, vale indicar publicação anterior, do Comitê Brasileiro de Anistia do Rio de
Janeiro, organizado por Reinaldo Cabral e Ronaldo Lapa, publicado em 1979. O livro traz artigos,
entrevistas, depoimentos e fotografias: Desaparecidos Políticos: prisões, sequestros, assassinatos. Rio de
Janeiro: Edições Opção, 1979.
1995, com prefácio escrito por Dom Paulo Evaristo Arns.21 Com a liberação dos arquivos
de alguns DOPS estaduais no início dos anos 1990, foi possível incorporar ao dossiê
fotografias de mortos, muitas das quais evidenciam sinais claros de tortura e outras
violências físicas22, colocando em xeque a “verdade” da ditadura ou, em melhores termos, a
mentira organizada de que a tortura fora obra do excesso de poucos ou que sujeitos
morreram em decorrência de “suicídio” e “troca de tiros” com as forças policiais,
sustentada por laudos médicos falsos.23
Por fim, e um dos pontos que tanta polêmica gerou quando anunciado, diz respeito
à criação da Comissão Nacional da Verdade. Grupos de direita e setores das Forças
Armadas acusaram a CNV de ser uma comissão da mentira ou, então, comissão de uma
meia verdade, uma vez que apenas as violências produzidas pelo Estado ditatorial seriam
investigadas, e não as que se deram a partir das ações de grupos armados no campo das
esquerdas.
Seria possível uma comissão, cujo mandato durou pouco mais de dois anos,
apresentar à sociedade brasileira a verdade sobre o período da ditadura militar? Havia o
risco, como acusaram, de a comissão produzir uma meia verdade ou uma mentira? Como
bem sabemos, o objetivo da CNV voltou-se para a recuperação da verdade factual, tal qual
nos apresenta Hannah Arendt, no que diz respeito às violações de direitos humanos.
Creio ser desnecessário, haja vista a natureza deste texto, fazer maiores comentários
sobre a atuação da CNV, suas limitações, suas tensões e resultados. Interessa-me chamar
atenção para o seu papel como instrumento de promoção da verdade factual a partir do
21
COMISSÃO de Familiares dos Mortos e Desaparecidos Políticos. Dossiê dos mortos e desaparecidos
políticos a partir de 1964. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1995.
22
Cf. Anexo I do Dossiê. Op. Cit. pp. 417-426.
23
Sobre denúncias contra médicos que assinaram falsas versões para encobrir os crimes da ditadura,
sugiro a leitura da reportagem feita pela jornalista Luiza Villaméa para a revista Brasileiros: “Os legistas
e a engrenagem da tortura”. Disponível em: http://brasileiros.com.br/2016/07/os-legistas-e-engrenagem-
da-tortura/. Acesso: 05/07/2016.
24
BRASIL Secretaria Especial de Direitos Humanos. Direito à memória e à verdade: Comissão Especial
sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007.
Estado, o que representa algo importante, haja vista que a verdade factual no Brasil
relacionada à ditadura começou a ser promovida apesar do Estado, como vimos com Brasil:
Nunca Mais, e diferentemente do que ocorrera na Argentina, por exemplo, em que a sua
Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) deu-se no âmbito
estatal.
Como historiadores, sabemos das limitações de comissões deste tipo que costumam
apresentar narrativas unívocas. Entretanto, seria desonesto do ponto de vista ético usar tal
argumentação para desencorajar ações nesse sentido, pois sabemos de sua importância
política e da necessidade da verdade contra o esquecimento. Pois a verdade, se é ameaçada
em regimes totalitários como advertira Hannah Arendt, também pode correr riscos em
regimes democráticos quando não há discussão pública e tampouco iniciativas para fazê-la.
O Brasil, em certo período democrático, viveu esses riscos com um Estado inerte que agiu
politicamente para deixar a verdade factual distante de seu lugar que é o espaço público25.
A CNV fora alvo de críticas por não conter entre seus membros nenhum
historiador26. Mas, caberia a um historiador integrar tal comissão27, uma vez que não nos
concerne dizer o que é “a” verdade? Certamente, a questão é mais complexa e não se dá
nesse âmbito. O historiador pode, sim, contribuir para a construção de representações do
passado a partir de evidências factuais, ajudando a desconstruir mentiras organizadas.
Como dissera Hannah Arendt, não se trata de modificar a matéria factual a nosso bel
prazer; ela não pode ser desfeita. A lei que criou a CNV falava em se efetivar o direito à
“verdade histórica”28, e isso causou certa celeuma, pois, soou presunçoso ou, no campo da
História, demasiado positivista se se pensa na verdade com certo objetivismo.
25
Tenho pesquisado esta e outras questões para a minha tese de doutorado, a ser defendida no início de
2020 no PPGHIS da UFMG.
26
Ver posição da Associação Nacional de História (Anpuh) sobre a ausência dos historiadores na
Comissão da Verdade. Disponível em:
http://www.anpuh.org/informativo/view?ID_INFORMATIVO=2486. Acesso: 09/06/2015.
27
As equipes de pesquisa, entretanto, contaram com a presença de historiadores.
28
Creio que esta expressão fora utilizada para marcar posicionamento que deixasse claro não tratar-se da
produção de uma verdade jurídica com consequências persecutórias, uma vez que a CNV só conseguiu
ser aprovada mediante acordos que garantiram a não revisão da Lei de Anistia e a não punição dos
torturadores.
que eles não dirão que a Bélgica invadiu a Alemanha”.29 Arendt também afirma que por
mais que admitamos que cada geração tenha o direito de escrever sua própria história, não
devemos admitir mais nada além do fato de ela poder rearranjar os fatos de acordo com
sua própria perspectiva. Contudo, não devemos permitir que se toque na própria matéria
factual.30
Entendo que o que está em jogo não é apenas uma disputa de versões, da qual o
historiador não deve intervir como dono do tribunal da verdade, mas, sim, uma disputa de
fatos, na qual a matéria factual deve ser preservada contra eventuais mentiras organizadas.
Creio que a atuação da CNV deve ser pensada nesses termos, a despeito da complexidade
que é propor uma narrativa oficial e dos riscos ideológicos que tal empreitada pode vir a
enfrentar.
Para concluir, entendo que as reflexões feitas por Hannah Arendt são importantes
não apenas para a construção da narrativa histórica, como também para problematizarmos
os temas da verdade factual e da mentira organizada no âmbito de regimes autoritários e
ditatoriais, sem nos rendermos a relativismos perigosos, tampouco nos paralisarmos com
receio de sermos tachados como positivistas31.
“(...) nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história”.
A terceira tese de Walter Benjamin em “Sobre o conceito da História”32 me parece
oportuna para encerrar esta reflexão. Tenho considerado desde o início sobre os perigos
que a verdade factual corre, especialmente em determinadas conjunturas. Verdades factuais
relacionadas às violações aos direitos humanos correram e correm o risco de se perderem
na história, pois há quem queira emudecê-las, apagar seus rastros, sufocá-las com mentiras
organizadas ou, então, reduzi-las a uma batalha de versões e interpretações. Em uma
sociedade que ainda pouco conhece sobre a ditadura militar33, cabe manter-se alerta.
29
ARENDT, Hannah. Op. Cit. p.296.
30
Idem.
31
Oportuno consultar discussão feita por: MOTTA, Rodrigo Patto Sá. “História, memória e as disputas
pela representação do passado recente”. Patrimônio e Memória, v.9, nº1. São Paulo: Unesp: janeiro-
junho, 2013.
32
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito da História”. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre
Literatura e História da Cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Vol. I. 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 2012,
p. 242.
33
Sobre pesquisas feitas em 2010 a respeito do conhecimento de setores da sociedade brasileira sobre o
golpe de 1964 e a ditadura militar, consultar: MOTTA, R. P. S.; CERQUEIRA, A. S. L. G. “Memória e
esquecimento: o regime militar segundo pesquisas de opinião”. In: QUADRAT, Samantha;
ROLLEMBERG, Denise. (Orgs.). História e memória das ditaduras do século XX. v. 1. Rio de Janeiro:
FGV, 2015, p. 157-183. Para informações mais atuais, consultar resultados a partir de pesquisa feita pela
Rede Globo em 2017, em virtude da novela “Os dias eram assim”, que teve como pano de fundo a
ditadura militar. A emissora constatou que o brasileiro médio desconhece fatos recentes da vida do país.
Publicado orginalmente no site História da Ditadura em 17/10/17:
historiadaditadura.com.br/destaque/mentira-e-verdade-hannah-arendt/