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Algumas considerações sobre o xamanismo entre os Mbyá-Guarani

Autor(es): DESCHAMPS, Carina Botton; ROSA, Rogério Reus Gonçalves da


Apresentador: CARINA BOTTON DESCHAMPS
Orientador: Rogério Reus Gonçalves da Rosa
Revisor 1: Wilson José Ferreira de Oliveira
Revisor 2: Vera Lúcia dos Santos Schwarz
Instituição: Universidade Federal de Pelotas

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O XAMANISMO ENTRE OS MBYÁ-GUARANI

DESCHAMPS, Carina Botton1; ROSA, Rogério Reus Gonçalves da²


1
Deptº de Sociologia e Política – ISP/UFPEL; ²Deptº de História e Antropologia – ICH/UFPEL
Rua Cel Alberto Rosa, 154 – Cep: 96010-770. carinabd@terra.com.br; rogério_ros@terra.com.br

1. INTRODUÇÃO

Este resumo trata da temática do sistema xamânico entre a etnia ameríndia Mbyá-
Guarani, tendo como foco de estudo o(a) xamã, que na sociedade Mbyá-Guarani são
denominados Karaí (quando homens) ou cuña Karaí (quando mulheres).
O grupo étnico Mbyá-Guarani de dialeto homônimo, tem a sua origem geográfica na
região amazônica onde este, juntamente com outras sociedades ameríndias formavam a
família Tupi-guarani, que ao longo dos séculos se subdividiu dando origem, entre outros, a
etnia Guarani. Esta, por sua vez, também sofreu divisões que se desdobraram em outros
subgrupos, entre eles, os Mbyá-Guarani. (Shaden, 1974; Ladeira, 1994).
O xamanismo pode ser definido como o meio através do qual se entende o mundo.
Através de suas idéias e práticas expressa a cosmovisão de um grupo social. O
xamanismo é um sistema de crenças. A crença em sua eficácia, está associada a
motivação e necessidade das pessoas de entender e explicar o mundo.
Uma abordagem adequada do xamanismo consiste em entendê-lo como um sistema
simbólico e portanto um sistema (complexo) sócio-cultural que deve sempre ser pensado a
partir da coletividade, (Langdon 1992; 1996).
O Karaí, ou a Cunhã Karaí, é a categoria mais alta dentro do xamanismo Mbyá-
Guarani. Esta figura detém o poder da cura - do corpo e da alma - mas não é apenas um
curandeiro, é o líder religioso e também pode ser considerado um profeta na medida em
que antevê o futuro guiando as ações dos Mbyá. Ele é o guardião das “Belas Palavras”
que são designadas por Deus. O Karaí é o mediador entre: o grupo no qual está inserido e
a sua entidade Divina (Ñanderu).

2. METODOLOGIA

O procedimento metodológico central utilizado neste trabalho é o método etnográfico,


metodologia característica das pesquisas antropológicas.
Este trabalho faz uso de uma abordagem qualitativa, que se construiu
fundamentalmente a partir de observação participante e de entrevistas semi-estruturadas
(com roteiro prévio de temas a serem abordados em campo). Visando seguir as
orientações clássicas do trabalho de campo em antropologia, o registro de informações
fez-se via diário de campo.
A partir desses procedimentos metodológicos, se pretendeu, captar e interpretar os
valores e práticas socialmente experimentadas na sociedade estudada, através de uma
ênfase na: exploração de fenômenos particulares; nas entrevistas em profundidade; na
análise do discurso das pessoas entrevistadas; na investigação do contexto histórico; na
decodificação de representações. Ainda se pode destacar no método etnográfico a busca
de uma descrição densa, sendo o conhecimento científico gerado, em certo sentido, pela
visão interna de um fenômeno obtida a partir do ponto de vista da sociedade estudada. A
análise das narrativas foi enfatizada, tendo em vista a importância da oralidade dentro do
grupo abordado.

3. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os Karaí e as cuña Karaí são a principal liderança existente na sociedade Mbyá-


Guarani. O papel exercido por esses líderes está ligado às questões espirituais. As
pessoas que adquirem esse poder são designadas por Ñanderu – o Deus Criador para os
Mbyá Guarani – é, portanto, uma escolha vertical. Torna-se karaí na vida adulta através de
um sonho e não se deixa de ser karaí por uma designação divina, pode-se abandonar esse
poder se a pessoa se afastar da cultura. Quando uma pessoa começa a ser um karaí,
antes mesmo que ela comunique, a comunidade percebe, porque ela começa demonstrar
forças para curar.
Ser um líder dessa ordem é uma designação Divina legitimada pelo grupo, entretanto,
deixar de ser karaí ou cuña karaí faz parte de uma resolução individual. Os poderes divinos
vão se perdendo na medida em que esses líderes se afastam do meio tradicional Mbyá-
Guarani não vivendo de acordo com a moldura espiritual, ou quando não exercitam seus
poderes rezando e permanecendo concentrados em tempo quase integral. Deve-se levar
em conta que muitas vezes não viver adequadamente com os costumes não é uma opção,
mas uma impossibilidade.
As experiências extáticas – possibilidade de se deslocar até outro plano – são
exclusividade da liderança Karaí/cuña Karaí, elas se constituem enquanto um tipo de
comunicação especial com Deus. Os karaí fazem uso dos transes extáticos para pedirem
auxílio, por meio deles os karaí tem a possibilidade concreta de se deslocar ao plano
espiritual e retornar, controlando esse deslocamento e o fazendo de forma voluntária, mas
para conseguir isso o karaí tem que estar muito concentrado e no pleno poder de suas
funções.
Ser um xamã Mbyá exige um esforço muito grande por parte da pessoa que exerce
essa função. Ela deve rezar o dia inteiro o tempo todo, não pode perder o elo com o
mundo espiritual. Cada vez que um karaí sai, se afasta de seus hábitos tradicionais, ele
perde o seu foco que deve ser rezar constantemente, com isso ele vai perdendo a sua
força. Quando está fora do Teko’a (palavra utilizada pelos Mbyá para designar o local onde
vivem) não está rezando. O espírito está percebendo o que está acontecendo. Os karaí
têm muita sabedoria, eles devem procurar a sabedoria espiritualmente porque ela é fruto
do mundo espiritual, e não sair para encontrá-la, porque não irão encontrar uma sabedoria
verdadeira fora do universo espiritual.
Rezar permanentemente por todos é uma das principais funções dos líderes
espirituais Mbyá. A comunidade está bem porque seu karaí está forte, dessa forma, o
enfraquecimento do karaí reflete no enfraquecimento de toda a comunidade, depende da
reza dele a saúde de todos os membros da aldeia, ele tem essa capacidade preventiva,
não permite que a doença se instale, e se ela acontece é porque essa prevenção não está
ocorrendo.
A liderança Mbyá em questão, tem os poderes de: prevenir; diagnosticar e curar as
doenças. Existem as “doenças do mundo” e as “doenças espirituais” (Ferreira, 2001). A
doença configura um estado de desordem na vida dos Mbyá-Guarani, e cabe aos karaí o
restabelecimento da ordem. Os dois tipos de doença têm causas exteriores à pessoa, que
não dependem dela. Mas, a pessoa pode ser responsável por sua enfermidade quando ela
não segue os limites na sua relação com o cosmos ou com o juruá (não-índio).
As categorias de doenças são muito bem delimitadas. Como colocado acima, existem
as doenças que fazem parte do universo Mbyá-Guarani, e aquelas que eles adquirem
através do contato interétnico, e precariedade do modo de vida que nesse caso quer dizer
estar distante das tradições. Se as doenças são de origens diferentes, conseqüentemente
os processos terapêuticos também o são, em virtude disso, o trabalho realizado pala
FUNASA (Fundação Nacional de Saúde), que visita os índios periodicamente, não gera
conflito com os karaí, esse órgão governamental trata das doenças do juruá então só os
médicos podem cuidar, tratar e prevenir essas doenças, não é do conhecimento do karaí,
não depende do seu contato com o mundo espiritual porque não faz parte dele.
Estar doente não implica apenas a questão do contato interétnico, mas implica
também no afastamento da cosmovisão. Viver afastado dos costumes tradicionais, por
opção ou por falta de alternativa, enfraquece espiritualmente um Mbyá-Guarani e
conseqüentemente a sua pessoa como um todo (Vietta, 1992). Os karaí indicam o rumo e
as diretrizes corretas que as pessoas devem seguir durante a sua passagem terrena.
Assim, os Mbyá ficam menos propensos a passarem por problemas de qualquer ordem,
porque os problemas surgem devido ao afastamento do Mbyá da tradição ensinada por
Ñanderú.
Apesar de terem poderes especiais, os Karaí não estão imunes às doenças, a
preocupação é um fator que os leva a enfraquecer e até adoecer, eles não conseguem ter
pensamento positivo, e o pensamento negativo adoece. Quando um karaí está em um
estado de fragilidade ele tem seus pensamentos influenciados pelos espíritos maus que o
ajudam a enfraquecer ainda mais, impedindo a sua capacidade de concentração, seu
contato com Deus e com os bons espíritos que o acompanha.
Nem todos os Karaí são completos, ou seja, podem ter alguns poderes e outros não,
dependendo do quão forte eles estão, em virtude do modo de vida que estão levando.
Alguns karaí têm mais facilidades do que outros. Pode haver mais de um karaí em uma
mesma aldeia, desde que eles convivam em harmonia, sendo que um pode estar mais
forte e outro mais fraco, não havendo conflito entre eles. Quando existe mais de um líder
espiritual na aldeia, cada pessoa é que escolhe a quem quer recorrer.
Ser o mediador entre os homens e os espíritos, é o papel mais importante exercido
pelos xamãs Mbyá. Eles são os mediadores entre os mundos, e por sua vez, são o
símbolo concreto do estado em que se encontra qualquer Mbyá-Guarani na Terra. O
período de vida (terrena) é um período de transição que se configura em uma constante
procura para se alcançar o estado Divino. Ou seja, o Mbyá foi enviado a Terra para fazer
uma passagem (transitória) e retornar ao seu lugar de fato, o mundo das divindades Mbyá-
Guarani.

4. CONCLUSÕES

O sistema xamânico é um sistema simbólico, que se configura enquanto um


fenômeno social que tem como base a crença de todas as partes envolvidas. O xamã por
sua vez é o principal elemento do xamanismo, fazendo a mediação entre o mundo visível e
o mundo invisível, eles têm acesso ao sagrado de uma forma diferenciada dos demais
integrantes da sociedade da qual fazem parte.
O xamanismo para os Mbyá-Guarani, assim como para qualquer outro grupo, é o
complexo cosmológico o qual o grupo compartilha, ou seja, a sua visão de mundo comum.
Esse sistema de crenças Mbyá-Guarani pode ser pensado enquanto uma
territorialidade simbólica que delimita uma fronteira intransponível entre o grupo Mbyá e as
demais sociedades. Ao Mbyá fazem parte de um mundo próprio que pertence aqueles que
nele nasceram, por isso, ou se é um Mbyá-Guarani ou não, é impossível a qualquer
pessoa de outra sociedade tornar-se um, pois a origem não é a mesma.
A liderança karaí/cuña karaí, por sua vez, representa a possibilidade concreta de
diálogo com esse universo xamânico que rege a vida dos Mbyá-Guarani, trazendo para a
esfera humana a possibilidade de acesso a esfera espiritual. Essa liderança tem
modificado a sua forma de atuar mas não deixa de ser a figura mais importante dentro do
grupo étnico Mbyá-Guarani, sendo o principal interlocutor de Deus (Ñanderu) com o grupo
e do grupo com a sua cosmovisão.

5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FERREIRA, Luciane. Mba’e achy: concepção cosmológica da doença entre os Mbyá


Guarani num contexto de relações interétnicas. Dissertação (Mestrado em Antropologia),
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
2001.
LADEIRA, Maria Inês. Os índios Guarani/Mbyá e o complexo Lagunar Estuarino de
Iguape-Paranaguá. Centro de Trabalho Indigenista, 1994.
LANGDON, E. Jean Matteson (Org.).Introdução: Xamanismo – velhas e novas
perspectives. In: Xamanismo no Brasil: Novas Perspectivas. Florianópolis: Editora da
UFSC, 1996.
_____. Shamanism and Antropology. In: Portals of Power. University of New Mexico
Press, 1992.
SHADEN, Egon.. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo: EDUSP, 1974.
VIETTA, Katya. Mbyá: Guarani de Verdade. Porto Alegre: UFRGS, 1992. Dissertação
(Mestrado em Antropologia), Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, 1992.

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