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TRAJETÓRIAS DA RELIGIÃO
E DA MODERNIDADE:
a narrativa histórica de uma objeção*
Joanildo A. Burity
Resumo
Este trabalho discute a emergência de uma narrativa histórica como dimensão
específica do discurso sobre a relação entre religião e modernidade -
enquadrando-a como uma passagem da religião à não-religião, da religião
pública à religião privada, da religião como cimento social à religião como
obstáculo à modernização. Isto dá ocasião a uma revisão do debate sobre
secularização e sobre o lugar da religião nas sociedades contemporâneas, a
partir da discussão de alguns autores-chave e de uma literatura recente que
questiona a formulação clássica da tese da secularização a partir das noções
de desinstitucionalização e deslocamento das práticas e identidades religiosas.
Palavras-chave:
Religião e modernidade. Religião e contemporaneidade. Secularização. Hans
Blumenberg. Walter Benjamin.
Abstract
This article discusses the emergence of an historical narrative as a specific
dimension ofthe discourse on the relation between religion and modernity-
portraying it as a transition from religion to non-religion; public religion to
private religion; religion as a social cement to religion as a hindrance to
modernization. This allows for a review of the debate on secularization and
on the place of religion in contemporary societies, through the discussion of
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some key authors and a recent literature that chaIlenges the classical
formulation of the secularization thesis on the basis of notions such as de-
institutionalisation and dislocation of religious practices and identities.
Keywords
Religion and modernity. Religion and contemporary society. Secularisation.
Hans Blumenberg. Walter Benjamin.
I Note -se que o princípio nem sempre envolveu uma independência institucional entre as
duas partes. Na verdade , o único lugar onde isso era considerado uma questão não negociável
eram os Estados Unidos , e mesmo aí não houve uma evacuação do espaço público pelas
organizações religio sas. As igreja s estatais de muit os paíse s na Europa Ocidental nunca
pressionaram a relação a tal ponto. Ao contrário, elas lutaram para assegurar algum grau de
autonomia, desde que as reivindicações práticas do discurso religioso não ultrapassassem
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qual "o mundo da natureza (enquanto distinto da casa da cultura que a modernidade pretendeu
construir) teve que ser decapitado e assim .privado de sua vontade autônoma e força de
resistência." E, logo em seguida: "O des-encantamento do mundo foi a ideologia de sua
subordinação [oo.]. O mundo era um objeto de ação intencional: matéria-prima de um trabalho
guiado e moldado por desígnios humanos. (oo .] E como a natureza tornou-se progressivamente
' des-animada' , os humanos tornaram-se cada vez mais 'naturalizados' de forma que sua
subjetividade, o ' dado' primevo de sua existência, pudesse ser negada e eles próprios
pudessem tornar-se receptivos a significados instrumentais." (BAUMAN, 1992, p. x-xi,
grifo do autor) .
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3 Esse ponto coincide com o argumento de TocqueviJIe que diz respeito às atitudes para com
a religião durante e após a Revolução Francesa. Em 1856, ele escreve: "É bastante fácil ver
hoje que a campanha contra todas a formas de religião era meramente incidental para a
Revolução Francesa, um fenômeno espetacular mas transitório, uma breve reação às
ideologias, emoções e eventos que levaram a isso - mas de forma alguma básico para o seu
programa." (TOCQUEVILLE, 1955, p. 5-6). E prossegue, para estender o ponto até quase
todas as sociedades européias de seu tempo: "Pois a noção de que os regimes democráticos
são necessariamente hostis à religião é baseada numa total má compreensão dos fatos; nada
na fé cristã ou mesmo no catolicismo romano é incompatível com a democracia e, ao contrário,
parece que um clima democrático é altamente favorável ao cristianismo." (Ibid ., p. 7).
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oculta para conseguir a eficácia que dela se esperava. Bauman toca num ponto
similar quando comenta sobre a "descoberta da contingência", o que para ele
é uma conclusão retrospectiva resultante da busca modema por ordem e
estrutura fora da esfera da legitimação religiosa. Para ele, "[a] contingência
foi descoberta junto com a compreensão de que para se querer que as coisas
e eventos sejam regulares, repetíveis e previsíveis, precisa-se fazer algo a
respeito, ou elas não serão assim por conta própria. A consciência da
contingência do mundo e a idéia de ordem como um objetivo e um resultado
da prática de ordenação nasceram juntas, como gêmeas, talvez até gêmeas
siamesas." (BAUMAN, 1992, p. xii). Ashley observa que esta prática de
ordenação diz respeito ao "problema paradoxal de inscrever um 'paradigma
da soberania''', que seria
uma interpretação específica, historicamente fabricada ,
amplamente circulada, e praticamente efetiva do homem
como um ser soberano. Esparso em seus detalhes, um
paradigma da soberania é uma interpretação que não faz
mais do que privilegiar certas limitações históricas sobre
o que o homem [sic] conhece e faz como os fundamentos
transcendentais do livre uso da razão pelo homem [sic] e,
conseqüentemente, como limitações que o homem [sic],
em nome de sua liberdade, tem a obrigação de nunca
questionar e sempre obedecer. (ASHLEY, 1989, p. 269-
270).
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algo que está sempre presente em qualquer lugar para ser fundado ou revelado,
anteriormente às práticas que o invocam." (ASHLEY, 1989, p. 271).
Há, portanto, um certo número de princípios subjacentes que
determinam uma interrupção, uma interdição, um "princípio de moderação"
ao discurso da modernidade, assim como, através da violência simbólica ou
fisica, aos discursos opositores sobreviventes. Tal princípio também opera
como a base do caráter inclusivo (e vago) do paradigma da soberania, por
isso tomando polissêmico (e, com efeito, hegemônico) ao princípio resultante
da separação entre igreja e Estado.
Deve-se recordar que esse princípio foi inicialmente delimitado tanto
pelo discurso da religião como pelo discurso da emancipação. Há uma estreita
conexão entre, por um lado, a luta dos movimentos pela Reforma contra o
poder centralizado de Roma e a imagem do monarca como símbolo de Deus;
e, por outro lado, a luta por desvencilhar a comunidade política dos grilhões
de formas religiosas de legitimação e controle.
Mais tarde, a separação entre igreja e Estado tomou-se parte integrante
da economia do discurso moderno, significando crescentemente um
impedimento geral contra qualquer interferência mútua sobre questões internas
de cada parte. Não apenas isso, mas, operando uma subordinação da igreja ao
Estado de acordo com a idéia de "Estado laico", o princípio levou ao
estabelecimento de uma tensão entre duas lógicas universalistas que resultaria
em sérios conflitos em finais do século XVIII (para citar apenas um momento:
a Revolução Francesa) e ao longo dos séculos seguintes (registro aqui quatro
momentos: os embates em tomo do ateísmo, cientificismo, liberalismo e
socialismo). Hoje em dia, entretanto, não se pode mais falar em uma separação
pura entre igreja e Estado, porque, embora ela sancione o paradigma da
soberania (seja por intermédio da luta pelo direito de traçar suas fronteiras ou
endossando as implicações 'positivas' do paradigma), a identidade das duas
partes parece profundamente modificada à medida que os conflitos e rearranjos
desdobram-se e multiplicam-se.
Obviamente não se pode ignorar a resistência oferecida pela
Cristandade contra o avanço da modernidade. Minha questão, entretanto, é
que, se é possível para ambos afirmar o lado positivo do projeto emancipatório
da modernidade e transgredir as fronteiras do paradigma da soberania, tal
procedimento revelaria as bases míticas da sociedade modema. Estar-se-ia
no vértice de um poderoso 'retomo do recalcado', em que ou a religião poderia
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5A tal ponto Blumenberg está convicto disso que toda a segunda parte do volume (1983 , p.
125-226) tem a intenção de demonstrar os vínculos entre modernidade e Cristianismo (cf.
Ibid. , p. 30) .
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6Vale notar que Blumenberg não restringe seu argumento a Agostinho e à Escolástica. Ele
não enfrenta o problema desde um ponto de vista estritamente cronológico. Nesse sentido ,
mesmo depois da 'modernidade' já estar em cena, a questão da teodicéia (a saber, a isenção
de responsabilidade de Deus pelo mal do mundo) ainda intriga pessoas como Leibniz, Kant
e Hegel. A diferença é que eles já cruzaram o portal epocal da modernidade - o mesmo
ponto é válido para a teologia 'moderna'. Agora é o "homem" que se apóia em sua
"autonomia", seja relativizando as "coisas ruins" em termos instrumentais, como um mal
inevitável em vista do "bem geral superior" a ser atingido - Leibniz (BLUMENBERG,
1983, p. 55) - , ou absolvendo Deus das aberrações resultantes do livre uso da razão - Kant
e Hegel (Ibid., p. 138-184, e também toda a terceira parte sobre a "curiosidade teórica").
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(i) nenhuma nova posição pode buscar legitimidade sem ter que
contestar a propriedade das idéias do outro;
(ii) isso não pode ser alcançado sem 'herdar' as questões levantadas
pela posição contestada, que não mais pode respondê-las;
(iii) a nova posição reocupa o terreno deixado vago pela crise da
posição prévia, assim fornecendo novas respostas, enquanto ocupa
a mesma/unção da velha posição. Uma vez alcançado este ponto,
poder-se-ia já falar em um movimento autônomo. Embora, num
primeiro momento, o sistema de questões, ou "quadro de
referência", não pudesse ser eliminado, depois do cruzamento
do "portal epocal", toda tentativa de deduzir (ou reduzir) o que
resulta do que se precedeu incorre em interpretação distorcida.
Por esta razão, para Blumenberg, como diz o título de um de
seus capítulos, "a Tese da Secularização [é] um anacronismo na
era modema".
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8 Também registro as excelentes análises de Lõwy (1981, 2005) e Wohlfahrt (1978) , nas
quais muitas nuanças do pensamento de Benjamim sobre religião e modernidade são
ressaltadas.
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9 Mesmo comentadores eminentes de Benjamim, ressalta Balfour, tal como Habermas (1985 ,
inspiração hegeliana da relação entre senhor e escravo (Balfour) ; uma afinidade eletiva
entre judaísmo e materialismo histórico, intricadamente construída por intelectuais radicais
judeus durante a primeira metade do século XX, na Europa Oriental (L ôwy) ; uma deri vação
do devotamento de Benjamim a uma concepção schmitiana (ou weberiana?) de secularização;
e a luta do próprio Benjamim com as duas trad ições de sua formação .
II Embora este argumento também seja feito por Balfour, acho que ele chega a uma conclusão
um pouco diferente, a qual não se coaduna com o ponto que tentaremos desenvolver na
próxima seção. Para ele, a alegoria implica em uma relação interna entre a teologia e a
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filosofia da história , ou mais especificamente sua variante marxista: "o materialismo histórico,
embora pareça negar e superar um pensamento da história sob a influência de categorias
teológicas, no entanto 'secularizou' essas categorias de forma a reconstituir uma escatologia
e um messianismo próprios." (BALFüUR 1991, p. 629). Eu penso, entretanto, que, colocando
o problema dessa forma , Balfour provoca a pergunta sobre até que ponto, e em qual sentido,
tal "secularização" (novamente, atenção para as aspas' ) opera nos discursos do marxismo ,
da filosofia da história, e da modernidade em geral. Daí que seu argumento tenda a repetir
o tipo de vínculo interno expresso por Lõwith, Schimtt e outros , e pressupõe uma certa
reprovação, uma certa acusação implícita de usurpação contra aqueles discursos que não
correspondem exatamente à alternativa que tentam os elaborar.
12 A teologia política alemã contemporânea tem sido bastante sensível ao impulso
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3 O destino da secularização
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15 Admitidamente este argumento tanto serve para chegar à conclusão de que o fundamental
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Legítimas conclusões , diga-se de passagem. Duas ressalvas , porém, precisariam ser feitas:
primeiro, tais conclusões carecem de qualquer perspectiva comparativa e privam-se de
perceber (ou visam a ocultar o fato de) que a modernidade se disseminou por diferentes
caminhos. Cobram ou exaltam assim uma 'coerência ' que é controversa mesmo para cientistas
sociais dos países ditos avançados. Não há uma única direção para a modernização, nem um
único modelo, de que a secularização - tal como se deu no Ocidente europeu - tivesse que
ser componente inseparável. Segunda ressalva: estaríamos falando da mesma coisa ao chamar ~
de "a religião" o tipo de experiência e organização da religião que emerge da partição entre
esfera pública e esfera privada, entre autoridade secular e autoridade eclesiástica, entre
religião como substrato cultural compulsório e religião como adesão voluntária e individual
(cf. Derrida, 1997)? Não carecemos pateticamente de um referencial analítico alternativo,
que reinscreva as relações entre religião e ordem social no contexto da modernidade e de
sua crise? Outra 'religião' - mesmo quando os nomes (significantes) não mudem ou as
fórmulas rituais não inovem radicalmente - que poderia ser lida à luz do ' corte' dado pela
expansão dos modelos modernizantes dos séculos 19 e 20 para todas as regiões do mundo
(tematizamos essa hipótese numa discussão sobre a questão do nome na análise da religião
- cf. Burity, 2001b).
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Referências
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FERRY, Luc. 1996. Secularity does not spell the end ofthe sacred.
Humanities, n. 25, Sept. Disponível em: <http://www.france.diplomatie.fr/
label_francelENGLISH/IDEESIFERRYIferry.html>.
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HOLE, Robert. 1989. Pulpit, politics and public order in England, 1760-
1832. Cambridge: Cambridge University.
lSIN, Engin F.; WOOD, Patricia K 1999. Citizenship and identity, London:
Sage.
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TOCQUEVILLE, Alexis de. 1955. The Old Régime and the Revolution.
Garden City, NY: Doubleday Anchor Books.
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VELHO, Otávio. 1998. O que a religião pode fazer pelas ciências sociais.
ln: JORNADAS SOBRE ALTERNATIVAS RELIGIOSAS NA AMÉRICA
LATINA, 8., São Paulo.
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